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Neusa Jordem Possatti: Inimigo meu

Não consegui dormir. Deve ter sido alguma coisa que comi. Levanto-me inquieta, sem lugar. Vou ao banheiro, volto, e sem sono deito-me novamente. Três horas da madrugada, escuto o relógio na parede avisar. Ouço um barulho dentro do meu quarto. Um homem de olhar estranho se move em meio às sombras, vindo em minha direção.

Por Neusa Jordem Possatti*

O estranho que me olha sem amor, sem afeto, que segura meus pulsos, que me cobre a boca com sua mão enorme para eu não gritar, o faz desnecessariamente – meus filhos dormem no quarto ao lado, eu não quereria acordá-los.

O estranho que me assalta não perde tempo em tirar minhas roupas. Talvez seja um conhecido de longa data que não queira envolvimento. Ele não me beija a boca. Tento detê-lo, empurro seu peito que me sufoca com sua respiração entrecortada e acelerada. Não consigo, inútil fugir, ele é forte, é dono do lugar, não tem o hábito de ver seus desejos insatisfeitos. O grito fica preso em minha garganta. Fecho as pernas, mas ele não quer saber, vira-me de costas e meu corpo frágil gira rápido em suas mãos. Sinto meu peito doer. De olhos fechados recuso-me a encarar tamanha vergonha. Choro silenciosamente, violentada em minha vontade, perdida em minha agonia, traída em meu leito. Será que se morre de tristeza?

Sei que as marcas das minhas unhas estarão por todo o corpo dele amanhã. Pena não deixarem marcas em sua alma insensível. Nesse momento minha angústia é tão grande que seria capaz de um gesto insano. Busco na escuridão algum objeto que corte a carne. Preciso de ajuda. Não quero engravidar. Não do homem estranho em minha cama. Ele se demora dentro do meu corpo. Sou apenas o objeto de sua satisfação. Não adiantaria dizer ao estranho que não estou bem fisicamente. Ele não me ouviria. Espero que termine logo e saia de cima de mim.

O homem com quem me casei não se encontra em casa. O pai dos meus filhos de nada suspeita. Não percebe, pior, se isenta do que se passa entre as quatro paredes. Ele foge de mim há um longo tempo. Eu o procuro, ele se esconde, se esvai, se exime.
Penso que, se sobreviver, irei à polícia. Darei queixa da violência ocorrida em minha casa. Mas já antevejo o descrédito dos policiais de plantão na delegacia quando perguntarem se alguma vez já teria me deparado com aquele sujeito. E eu, que não saberia mentir, me veria obrigada a dizer que ele entra em minha casa todo o final de noite. Cambaleando, às vezes, é verdade, mas ele tem suas próprias chaves. Há dezoito anos… um inimigo meu.

* Neusa Jordem Possatti é formada em Letras