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Celso Amorim: diário de uma boa década

Nos últimos dias, a imprensa internacional tem discutido a liderança do Brasil na região, com conceitos e expressões que denotam ignorância das nossas motivações e do contexto político em que estamos inseridos. É hora de provar que os céticos de lá e de cá estão errados e de não decepcionar aqueles que, como o grande escritor sul-africano, viram na nossa região o “ponto brilhante” em um cenário mundial pouco animador.

Por Celso Amorim*

Em um dos capítulos do seu Diário de Um Mau Ano, publicado em 2007, quatro anos após haver conquistado o Prêmio Nobel da Literatura, J. M. Coetzee contempla com desesperança a tendência de países desenvolvidos, como a Austrália e o Canadá, escolherem governos de direita (a Austrália viria, alguns anos mais tarde, contrariar essa tendência, enquanto o Canadá a confirmaria), apesar de terem diante de seus olhos o espetáculo (sic) nos Estados Unidos de George W. Bush, de para onde um governo com essa característica pode levar. Para o autor, travestido em personagem de si próprio, os eleitores desses países se comportam como “ovelhas assustadas”.

O julgamento de Coetzee não é menos severo em relação ao que observa na Europa, sobretudo nos países do Leste, que teriam trocado a dominação de Moscou pela de Washington, fato especialmente evidenciado pela colaboração/submissão dos seus serviços de inteligência em relação à CIA. O único aspecto animador nesse “quadro sombrio” seria dado pelo surgimento de um punhado de governos progressistas/populistas na América Latina.

Coetzee – ou o escritor que é o personagem do livro – teria o que comemorar com a vitória de Ollanta Humala nas eleições presidenciais no Peru. E todos aqueles interessados em aprofundar a integração sul-americana também. Independentemente de saber se a sua conversão ao “lulismo” teve fins eleitorais ou correspondeu a um processo de amadurecimento político, propiciado em parte pela derrota no pleito anterior, parece claro que Humala vai dar prioridade à relação com seus vizinhos, a começar pelo Brasil.

Essa é uma oportunidade a não ser desperdiçada. A integração da América do Sul tem sido um eixo fundamental da nossa política externa, desde que os presidentes Sarney e Alfonsín resolveram enterrar as velhas rivalidades herdadas do século 19. Com graus diferentes de intensidade, ela vem sendo perseguida por vários governos brasileiros, inclusive o comandado por Fernando Henrique Cardoso, que teve o mérito de convocar a primeira cúpula de chefes de Estado de toda a América do Sul.

O tratado constitutivo do Mercosul foi assinado por Collor e a institucionalização viria a ocorrer, em Ouro Preto, com Itamar Franco. Aliás, é no governo Itamar que pela primeira vez se discute a possibilidade de uma área de livre–comércio da América do Sul, uma ALCSA, em contraposição à Alca. Sarney, Collor e Itamar são senadores e FHC continua a exercer grande influência para além do seu partido.

Coube ao presidente Lula tirar, com determinação, as consequências desse processo. A Unasul, ao contrário do que se diz com frequência, não é fruto de mero voluntarismo, embora, evidentemente, a vontade política tenha tido um forte papel na sua construção. Desde o início, o projeto da Casa (a “comunidade” que depois daria lugar à “união”) fundamentou-se em acordos comerciais, que na prática vieram realizar a ideia de uma área de livre-comércio, proposta dez anos antes. Esta não é nem deve ser uma questão partidária.

É fundamental, agora, trabalhar pelo aprofundamento dos acordos de associação que já unem o Peru ao Mercosul. Mesmo que o acordo de livre-comércio já existente entre o Peru e os Estados Unidos torne tecnicamente difícil uma adesão do peruano ao Mercosul como membro pleno, entendimentos nas áreas de serviços, investimentos e livre movimentação de pessoas, além de cooperação em programas sociais e obras de infraestrutura, podem contribuir para superar essa limitação.

Base para isso já existe. Hoje, os países que constituem a Aladi, em seu conjunto, já suplantaram tanto os Estados Unidos quanto a União Europeia como parceiros comerciais do Peru, o que evidencia o potencial da integração econômica da América do Sul (embora o México seja membro da Aladi, sua participação no total do comércio Peru-Aladi é relativamente pequena, quando comparada à dos países sul-americanos).

O mesmo raciocínio deve orientar o relacionamento com a Colômbia, mesmo que o TLC com os Estados Unidos seja efetivamente ratificado pelo Congresso de Washington. E é fundamental completar a adesão da Venezuela ao Mercosul, que depende ainda da aprovação do Parlamento paraguaio. Em um mundo cada vez mais marcado pela competição entre blocos (a China e os Estados Unidos são blocos em si mesmos), o nosso bloco é e tem de ser a América do Sul.

Nos últimos dias, a imprensa internacional tem discutido a liderança do Brasil na região, com conceitos e expressões que denotam ignorância das nossas motivações e do contexto político em que estamos inseridos. É hora de provar que os céticos de lá e de cá estão errados e de não decepcionar aqueles que, como o grande escritor sul-africano, viram na nossa região o “ponto brilhante” em um cenário mundial pouco animador.

* Celso Amorim é ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula