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Carlos A. Lungarzo: caso Battisti; a arena internacional

Na quinta 16 de junho, o estado italiano fez conhecer sua decisão de desenterrar um antigo instrumento diplomático bilateral para ver se, desta vez, consegue atingir Cesare Battisti. A movida é um passo na direção de justificar sua entrada na Corte Internacional de La Haia, onde, (como foi admitido até por alguns dos mais devotados algozes italianos, como Massimo d’Alema), as esperanças de sucesso da Itália são praticamente nulas.

Por Carlos A. Lungarzo*

Se a Itália “se sentir obrigada” a entrar com reclamações em Haia, este primeiro passo de discutir sobre uma antiga convenção entre ambos os países poderia servir de pretexto para simular que o estado peninsular mostrou boa vontade, e não lhe ficou outra alternativa que a de recorrer à Corte Internacional.

Acrescentar um novo episódio nesta saga doentia, é também é uma maneira de dissimular o desinteresse da população italiana em tornar-se parte ativa de interminável vendetta, como pode comprovar qualquer pessoa que visite algumas das grandes cidades da península. Fora dos militantes em grupos neofascistas, partidos neostalinistas e grupos confessionais e revanchistas, a maior parte da população não externa nenhum sentimento evidente contra a sentença do STF da quarta-feira (8). Até a “agressão” contra os jogadores de vôlei com laranjas foi apenas uma manifestação de mal humor já que, como reconhecem os mesmos alvos, os atiradores não miraram antes de atirar.

Não é preciso grande agudeza para perceber que se repetem de maneira cíclica as mesmas bufonadas já utilizadas, como a ameaça de boicotar a Copa do Mundo. Num país onde, além da benção dominical do Papa e o acúmulo de dinheiro pelos magnatas, o futebol é o único interesse nacional sério, privar a população desse espetáculo prejudicaria os próprios linchadores.

Afinal, para qualquer pessoa racional, o estado Italiano recorreu ao STF várias vezes e manifestou seu entusiasmo pelas decisões da Corte que denegriam o governo brasileiro, como a revogação da condição de refugiado de Battisti em 9 setembro de 2009. O recurso à justiça de um estado contra seu próprio governo, por uma questão estritamente interna desse estado, é um ato extremo, que só podia ter algum sucesso pela conivência de setores do judiciário. Nesse momento, era natural que a Itália estivesse grata aos inquisidores togados, desprezando quase metade de juízes que se posicionava de maneira oposta.

Houve não apenas um ato de pobreza moral e de perversão política, mas uma amostra de escassa inteligência: nem o estado nem o governo italiano perceberam que, apesar do conservadorismo de quase todo sistema jurídico, o STF não estava formado apenas por genuflexos, mas tinha algumas figuras muito respeitáveis, lúcidas e honestas que poderiam criar um polo de atração para os magistrados menos definidos, isolando os típicos arquétipos inquisitoriais.

Eles não pensaram nisso e apostaram na cumplicidade permanente da maioria da Corte, sem atentar para as sutilezas e contradições de países coloniais como o nosso, que ainda carregam a marca da escravocracia. Por causa desse ufanismo, se gerou aquele alvoroço que fez o parlamento italiano em novembro de 2009 (brindando alguns pela morte de Battisti e zombando da sua família), e o louvor dispensado ao então presidente do STF pelos alcoviteiros do Quirinal no Brasil. Mas, o mesmo tribunal se pronuncia agora num sentido que favorece Battisti e, quaisquer que sejam as razões dos que votaram contra a reclamação italiana (nem todos os votos tiveram a mesma motivação), o certo é que a opção NÃO ganhou por 50% a mais que o sim, o que é uma derrota muito clara da vendetta. O que dizer agora aos eternos familiares das “vítimas”, que se movimentam permanentemente?

O mesmo tribunal que decidiu agora, com apenas a substituição de um juiz, colocar um obstáculo à vetusta vingança, foi quase o mesmo que tinha viabilizado essa vingança com menos de 20% de vantagem. Será que é possível repudiar amargamente a mesma instituição, que, salvo por um membro (que não foi decisivo neste caso), foi louvada pelo governo delinquencial tanto quando aceitou a extradição de Battisti, como quando sua cúpula tentou distorcer, na ilegal moção de ordem de dezembro de 2009, a autorização para decidir dada ao chefe do estado brasileiro?

Então, não cabe seguir pressionando um tribunal cuja cúpula se mostrou maravilhosamente fiel, cujos proxies da Itália lutaram duramente até o último momento para enforcar o exilado e, ao mesmo tempo, enlamear o governo. A única saída que o estado italiano encontra agora é pressionar o governo, se utilizando de algo que simula ser o direito internacional.

Convenção sobre conciliação

A Convenção sobre Conciliação e Solução Judiciária redigida em 24 de outubro de 1954 é um documento assinado pelo chanceler brasileiro na Itália, Raul Fernandes, e pelo embaixador italiano no Brasil, Giovanni Fornari, como método de arbitrar problemas que não se pudessem resolver pela via diplomática normal. A Convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo Nº 129, de 15 de novembro de 1955 (Vide), e promulgada para efetiva vigência em 1957.

O uso desta convenção não é (como foi difundido pela mídia brasileira, com base em informações de diversas fontes jurídicas) uma quarta alternativa que possibilite uma ação no Tribunal da Haia (vide), sendo as outras três: (a) aceitação de um acordo específico, (b) inclusão de cláusula jurisdicional no tratado que é motivo do contencioso, (c) declaração das partes de estar em conformidade com o caráter compulsório da Corte para dirimir seus contenciosos. De fato, optar pela Convenção Fernandes-Fornari (CvFF) de 1954 (1955, 1957) significa optar pela alternativa (a). Não é uma quarta possibilidade, pelo menos sob uma interpretação objetiva do texto, que é bastante claro. É um caminho para se acolher sob a primeira condição, quando as outras duas não são aplicáveis.

As condições (b) e (c), como foi dito pelo magistrado Celso de Mello, numa longa entrevista a uma pequena rádio local de sua cidade natal (que mereceu pouco interesse da grande mídia), não são aplicáveis, porque a ausência da cláusula no tratado torna impossível a condição (b) e porque o Brasil nunca aceitou o caráter compulsório da jurisdição do Tribunal (condição c), e seria impensável que decida aceita-la justamente agora.

Portanto, a CvFF servirá apenas para dar um pretexto a Itália para recorrer unilateralmente ao Tribunal da Haia, o que eles podem entender que não será necessário no caso em que, durante as sessões de conciliação enquadradas na CvFF, o Brasil decida se render e entregar Battisti.

A CvFF é aplicável por causa do artigo 3º, que permite a qualquer uma das partes reclamar por uma decisão que fora tomada pelos órgãos administrativos ou judiciais da outra, dentro dos seis meses de produzida. O resultado do pleito será monitorado pela Comissão criada pelo artigo 4º, e pelo artigo 8º, a Comissão indicará algumas propostas com o intuito de conciliar as partes para resolver o contencioso.

Esta Comissão tem atributos copiados da Convenção de La Haia de 1907. Há alguns elementos novos que na época não tinham sentido, pois o Tribunal Internacional de Justiça de Haia ainda não tinha sido criado. A principal novidade é que, se a decisão da Comissão não fosse aceita por uma das partes, o assunto poderá ser levado a esse Tribunal. (Art. 16º) Mas, pode acontecer, como a mesma CvFF prevê, que o Tribunal Internacional não considere a questão de caráter jurídico.

Nesse caso, chegar-se-ia a um impasse, que deveria ser resolvido, ex aequo et bono, ou seja de acordo com a equidade e o bem. É divertido pensar que estas pomposas frases em latim são incluídas nos textos jurídicos pensando que com elas se resolvem problemas que eram insolúveis na língua vernácula. Haja fetichismo! No fundo, nossos avós diriam exatamente o mesmo com a frase “vamos fazer as coisas com bom senso, galera!”

Por outras palavras, se volve ao ponto de partida, já que a Itália considera o máximo de mal senso e de iniquidade dar refúgio a um perseguido durante 32 anos por crimes não provados.

A comissão

Cada país elege seu vogal. Então, esta parte do processo não oferece dificuldade. O problema destas comissões sempre foi nomear o presidente. Quem seria o candidato neste caso, já que ambos os países devem ter unanimidade pelo menos neste ponto?

Itália poderia sugerir os chefes de estado da Argentina ou dos Estados Unidos, os únicos países das Américas, além do Brasil, onde a influência da Itália é sensível, mas ambos poderiam serem objetados por Brasil por razões evidentes. Uma opção fora da Europa ou das Américas pode ser suspeita e imagino que as partes tentarão evitá-la.

Uma figura muito procurada para este rol é geralmente o pitoresco Rei da Espanha. Itália poderia propor esta alternativa, confiando em que a Espanha daria um parecer em seu favor em troca de algo, por exemplo, o apóio da Itália para a chefia da FAO por Moratinos. Entretanto, este parece muito seguro de sua vitória sobre o brasileiro Graziano, e o fato de existir esta situação suspeita afastaria a Espanha do interesse por mediar na absurda questão. Sem dúvida, a Espanha e a Itália compartilham muitas coisas, como sua tradição inquisitorial, sua falta de legislação em direitos humanos e a de ter ambas um arremedo de “centro-esquerda”, mas me parece uma opção difícil.

Qualquer escolha do Brasil lhe será claramente favorável. Os países latino-americanos terão pouco interesse em prejudicar um membro da OEA. Contrariamente às opiniões da antiga esquerda, segundo a qual os Estados Unidos estariam perseguindo Battisti em cumplicidade com a Itália, o único documento sobre o caso descoberto por WiKileaks, mostra que o embaixador americano no Brasil não parece nada preocupado por Battisti, e apenas comunica a seu governo sua prisão, inclusive sem mencioná-lo pelo nome.

Isto é natural: a perseguição contra Battisti é uma vendetta particular da Itália, e sua vinculação com o terrorismo internacional foi forjada pelos mesmos italianos para ganhar a simpatia internacional das pessoas com déficit de neurônios. Os Estados Unidos, apesar do imperialismo, possuem muitos bons especialistas, e nenhum deles engoliria uma coisa como o caráter “terrorista” de Battisti. Aliás, nem mesmo para a propaganda antiterrorista, colaborar com a Itália faria sentido para os americanos. Ninguém paga um preço político apenas para satisfazer os revanchismos de aliados corruptos e alienados. Então, os EUA certamente não influiriam no pleito, mesmo se o árbitro fosse escolhido de seus países mais subservientes como Honduras, Dominicana ou Colômbia.

Fica Europa. Mas, quem gosta realmente da aliança fascio-stalino-cato-mafiosa na Europa? Pergunto isto porque ninguém que não goste muito da atual situação italiana prejudicará seu prestígio apoiando algo que vai contra o direito internacional mais básico, que agride o bom senso dos mais conservadores e infradotados diplomatas europeus. No Brasil, os linchadores tentam convencer a opinião pública de que Europa está contra o Battisti, porque seu pedido de revisão da extradição desde França não foi atendido pela Corte de Direitos Humanos. Mas poucos sabem que a Corte rejeita o 96,4 dos pedidos, salvo os que têm recomendação de governos.

Há duas coisas que devem ser diferenciadas: (1) Modificar uma decisão de países membros, ou que equivale neste caso a se abster de fazer justiça; e (2) forjar explicitamente um ato claramente injusto, num contexto neutro, para favorecer uns fanáticos que nada importante podem dar em troca. Vejam, por exemplo, o microscópico quórum (menos de 8% num caso e de 12%) em outro, que os italianos obtiveram na suposta “queixa contra o Brasil” no Parlamento Europeu.

É difícil, aliás quase impossível, que um candidato europeu ou latino-americano que pertença a um país razoavelmente sério (Costa Rica, Uruguai, Panamá, ou Alemanha, UK, os países Escandinavos, Holanda) diga que os italianos estão certos, ao questionar que o presidente do Brasil, aprovado pela Suprema Corte, não tem direito a recusar uma extradição.

Com certeza, nenhum dos dignitários que sejam eleitos, terá visto nem o 10% do que já aconteceu neste grotesco caso. Ninguém poderá lembrar-se de que, se o chefe de estado de seu país negou a extradição de alguém, seu poder judiciário tenha metido seus narizes no assunto. É provável que a conciliação aconselhada pelo presidente da Comissão seja deixar tudo como está, e que os italianos se esforcem nestes 3 anos próximos em preparar uma seleção de futebol decente, que possa pelo menos empatar com seu odiado anfitrião.

Conclusão

A grande mídia brasileira (com a exceção daquele 5% que devemos respeitar) tem apavorado um pouco os grupos de solidariedade de Battisti propagando mentiras alarmistas. Por exemplo, por causa de Battisti, o Brasil dará um vexame no campo internacional, e isso prejudicará aos quase 200 milhões de brasileiros (e aos estrangeiros que moramos no Brasil.)

Quando alguém pensa serenamente na coisa, invariavelmente acaba percebendo como todas essas ameaças são doentias. Nenhum fugitivo, nem que fosse bin Laden, pode provocar a crise de um país do tamanho do Brasil. Além disso, é ridículo pensar que as atividades diplomáticas do país afetam a alguém mais que à reduzidíssima elite que controla a economia, a política e a justiça no país.

Entretanto, a desinformação é muito forte e sempre fica algum temor. Por exemplo, há alguns meses, a Globo News entrevistou Rezek, ex-magistrado, diplomata e figura destacada do governo Collor. Ele pintou uma derrota radical para Brasil em La Haia, com argumentos que fariam rir a um vestibulando de direito. No dia seguinte, uma especialista escreveu num jornal uma matéria onde confirmava aquelas predições apocalípticas.

Poucos dias depois, como disse acima, Celso de Mello, cuja posição no caso Battisti é confusa, mas que, sem dúvida, está bem informado e sabe raciocinar, demonstrou, durante uma hora de entrevista, que o recurso a La Haia pode ter dois destinos: (1) que o tribunal o ignore (assim como o STF ignorou a reclamação da Itália), ou (2) que o estude e o indifira.

Que acontecera, afinal?

Se a CvFF for aplicada e a Comissão for constituída, a Itália se ofenderá por não ter sido entendida em seu elevado espírito: marxistas e progressistas não entendem como o grande berço do cristianismo tenta salvar a humanidade um perigoso escritor que há 32 anos que escreve livros!. Quem cuidará dos tesouros que Battisti roubará, das meninas que seduzirá, dos exércitos que ele poderá destruir com seu raio do mal?

Uma vez ofendida, a Itália terá um pretexto para ir a Haia, e aí acontecerá o que Celso de Mello está anunciando.

Mas, a história pode não acabar aqui. A Itália disse que usará todos os meios legais, que acabaram na Haia, mas não disse se usará os outros métodos, que já usou muitas vezes nos últimos 100 anos. Então, não há nenhum motivo para a paranóia, mas tampouco se podem fechar os olhos.

* Carlos A. Lungarzo é professor aposentado da Unicamp e militante da Anistia Internacional