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Afinal, ainda há futuro para a viola e a música caipira?

Artistas e estudiosos da cultura popular dizem que está crescendo no país o número de jovens interessados em aprender a tocar viola — instrumento que, trazido pelos portugueses, surgiu no Brasil na época da catequização indígena pelos jesuítas. A expectativa de alguns grupos tradicionalistas é a de que esses músicos novatos não deixem morrer a arte da música caipira, também conhecida como música de raiz.

No entanto, “é irreal manter a arte da primeira geração da música caipira”, pondera o jornalista José Hamilton Ribeiro, autor do livro Música Caipira. Para ele, existem três vertentes distintas desse gênero musical. Uma delas é o resultado do trabalho dos “patriarcas” que compunham poesia tirada do dia a dia numa fazenda ou num sítio, lugar onde esses artistas viviam.

A outra faceta é a da segunda geração, do chamado sertanejo universitário, formada por músicos que migraram ainda jovens para as cidades. A última vertente diz respeito à safra atual de músicos, que já nasceram nas cidades e não têm o convívio com o meio rural.

Ribeiro lembra que a Universidade de São Paulo (USP) tem uma cátedra para o ensino da viola e que surgem por todos os cantos novas orquestras elegendo esse instrumento. Porém, está convicto de que são outros gêneros, frutos da evolução socioeconômica.

Em seu livro, o autor selecionou o que considera as 270 maiores músicas caipiras. Entre as dez melhores modas de viola estão A Morte do Carreiro, do Zé Carreiro e Carreirinho; Rei do Gado, de Teddy Vieira; e Moça Boiadeira, de Raul Torres. A última edição da obra traz um DVD em que músicos da segunda geração, como Dino Franco, Zé do Rancho e Cacique e Pagé, fazem homenagem ao mais antigo representante vivo da música de raiz: Tinoco, da dupla Tonico e Tinoco.

José Perez, nome de batismo de Tinoco, nasceu em Botucatu, no interior de São Paulo, e está com mais de 90 anos. O irmão dele, João Salvador Perez, nascido em São Manuel, também no interior paulista, que ficou conhecido como o Tonico, morreu em 13 de agosto de 1994. A dupla gravou mais de 80 discos e se apresentou em milhares de shows pelo país afora.

Com as mudanças no meio rural, na maioria das pequenas propriedades, a casa rústica iluminada por lamparinas é coisa do passado. Em muitas delas, vivem pessoas com telefones celulares, o que encurtou a distância com a área urbana. Antes do celular e da chegada da energia elétrica, a maioria dos moradores da roça tinha como única opção o rádio de pilhas para saber notícias de um parente hospitalizado, por exemplo, ou outra informação urgente. O locutor da emissora de rádio da cidade mais próxima se encarregava de mandar os recados.

O cotidiano isolado das grandes cidades, o dia a dia na lavoura, o trato com os animais e a rica natureza davam boas histórias para a composição de milhares de canções que se espalharam pelo país. A mesma inspiração vinha do sentimento do caboclo recém-saído da roça para a vida urbana.

Uma das maiores intérpretes da música de raiz e uma das vanguardista da participação de mulher nesse gênero musical, Inezita Barroso, nome artístico de Ignez Magdalena Aranha Lima, reconhece que o cotidiano da roça e a figura do caipira saíram das letras das músicas. Para ela, entretanto, o talento e o modo de compor permanece iguais, mas com novos elementos de inspiração.

“Agora eles contam a história de bandido que assaltou o carro, que matou a mulher, contam um monte de coisas modernas”, analisa. Segundo ela, os cantores do passado eram meio “nômades” — “penduravam aquela violinha no arreio e iam cantar em outra cidade um fato que aconteceu na cidade dele. Eram modas compridas, contavam tudo minuciosamente”, disse Inezita, que é instrumentista, folclorista e formada em biblioteconomia pela USP.

“Tem muita gente aprendendo viola, têm surgido as orquestras de viola e até estão fabricando violas pequenas para a criançada. Acho que a viola não vai morrer. A gente deu um impulso e, agora, ela está pegando o jeito”, disse Inezita, no fim de maio, pouco antes de um bate-papo com jovens sobre o livro A Menina Inezita Barroso.

Escrito pelo jornalista, Assis Ângelo, que também é formado em artes plásticas na Paraíba, o livro traz uma biografia da artista, além de abordar a trajetória dessa intérprete com quase 60 anos de carreira. Mas o próprio autor, ferrenho nacionalista e defensor da preservação da música de raiz, não é otimista quando o assunto é o espaço reservado hoje à música caipira.

“Essa parafernália eletrônica, essas novidades loucas, de coisas imediatas que estão chegando em todo canto e a toda hora numa velocidade do raio estão servindo para acabar com o que há de bom no tocante à moda de viola, às músicas do campo. Tudo isto está indo embora”, critica Ângelo. “O que está prevalecendo e o que vai prevalecer é a transformação para pior das composições musicais e da arte em geral.”

Na avaliação dele, o caminho é o da educação, com a inclusão da disciplina da “boa música” nas escolas municipais, estaduais e federais. “As leis de incentivo podem ajudar neste processo, mas nós precisamos ter professores capacitados com conhecimento do folclore brasileiro para que se descubra o Brasil desconhecido de muitos.”

Embora também lamente a “perda da pureza” das antigas modas de viola, o surgimento de novos talentos é comemorado pelo cantor Léu (Walter Paulino da Costa) da dupla Liu (Lincoln Paulino da Costa) e Léu. Com 53 anos de carreira, a dupla vem de uma família da música caipira.

“Hoje a gente vê muitos jovens aderindo e tocando viola e tocando bem, inclusive meninas, moças. Há também muitas duplas cantando música raiz. Acho que apesar de a gente não ter nenhuma ajuda da mídia e de alguns apresentadores falarem tirando um ‘sarrinho’, querendo fazer gozação, a música de raiz sobrevive”, disse.

Para Léu, um dos traços da música caipira é que ela “tem uma história com começo, meio e fim”, enquanto as outras produzidas de estilo mais recente são marcadas apenas por “um refrãozinho, não tem história, não tem vida”. Consistem em “cantar a mesma coisa 500 vezes pra ficar fácil para a juventude repetir”.

Já na avaliação da dupla Célia & Celma, a valorização da música de raiz ainda é forte. “Quando fomos apresentadoras do programa Célia & Celma, pelo Canal Rural por quase dez anos, pudemos ver os jovens que começavam a fazer a verdadeira música de raiz surgindo e aparecendo e ficamos impressionadas com a quantidade de gente. E isso continua, principalmente por causa da viola, instrumento símbolo da música de raiz”, relata Celma .

Versáteis, essas cantoras lutam pela preservação do folclore brasileiro e têm orgulho de terem tido um de seus trabalhos reconhecido fora do Brasil. Em abril de 2007, elas foram a Pequim receber o prêmio Gourmand World Cookbook Awards, oferecido pelo governo chinês com o livro Do Jeitinho de Minas — uma coletânea da culinária mineira e da sabedoria popular. Algumas das receitas foram depois musicadas em um CD.

Para Jean Carlo Faustino, doutorando em sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), autor da tese em desenvolvimento O Êxodo Cantado, é grande hoje o interesse pela música caipira, tanto por parte de acadêmicos especializados quanto de novos compositores. Ele observa que os circos, as emissoras de rádio e os discos permitiram que um público cada vez maior pudesse conhecer os clássicos da música de raiz com os dilemas e sentimentos do homem do campo com relação às migrações para as cidades.

“Desprovidos do seu maior bem [a terra] e do antigo meio [o rural] no qual eles se formaram e no qual realizavam sua humanidade, os camponeses de repente se viram obrigados a se adaptar a um mundo diferente e, não raro, hostil [o urbano] no qual chegavam normalmente em condições precárias”, diz. Em sua tese, defende que, por força de exigências do mercado, “muita coisa de mau gosto foi produzida, gerando também uma vertente brega ou expressões da conhecida dor de cotovelo, normalmente, associada ao que veio a ser chamada de música sertaneja”.

“Surpreendentemente, esta nova vertente fez muito sucesso, às vezes a ponto de ofuscar a música caipira de raiz de conteúdo e sensibilidade admiráveis”, afirma. Apesar disso, Faustino considera que há um público fiel tanto para a música de raiz quanto para a música erudita, citando o fato de a dupla Tião Carreiro e Pardinho ter vendido discos mesmo após a morte deles. “E isto ocorria até poucos anos atrás, antes do advento da distribuição de músicas pela internet.”

Da Redação, com informações da Agência Brasil