Acre na mira dos arapongas da ditadura

 Documentos secretos revelam a movimentação de guerrilha na região até a entrada de Ernesto Che Guevara no Brasil, pela fronteira com a Bolívia, disfarçado de oficial brasileiro

 Em fevereiro de 1970, o serviço secreto brasileiro relata a presença de guerrilheiros na então Vila Plácido de Castro, no Acre, e cita que o guerrilheiro e um dos principais líderes da revolução cubana, Ernesto Che Guevara, entrou, anos antes, no Brasil pela fronteira com a Bolívia. Não define exatamente por onde mas dá a entender que pode ter ocorrido pelo Acre. Além de movimentações de guerrilheiros em território acreano, faz um relato sobre a região de fronteira do Estado e de Rondônia com o país vizinho onde Che atuou de novembro de 1966 até outubro de 1967 quando foi morto naquele país.

O fato mostra que nos primeiros anos do golpe militar, não apenas regiões como o Centro-Oeste do país e o Pará eram alvos de vigilância cerrada para evitar o aparecimento de guerrilhas e combater o comunismo, mas o Acre também estava sob vigilância dos órgãos de informação da ditadura. Informes secretos e confidenciais mostram que desde autoridades, políticos, membros de associações a cidadãos comuns até pes-soas da Bolívia eram vigiados. Alguns apareciam em mais de um relatório da ditadura classificados como “atividades suspeitas”, “subversão no estado do Acre” ou como “informe de inteligência”.
Os documentos relatam, ainda, casos de pessoas presas, narcotráfico, tráfico de armas e movimentações de guerrilha no Estado. É uma parte da história do Acre que poucas pessoas conhecem e que está em documentos secretos, confidenciais e sigilosos dos órgãos de informações. A GAZETA teve acesso a esses documentos e mostra os detalhes na série de reportagens especiais que começa a publicar, a partir de hoje.

Documento

      
O informe que fala de Guevara, intitulado apenas como Região de Xapuri – Estado do Acre, faz parte de um acervo do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), que está sob a guarda do Arquivo Nacional, em Brasília, e que foi aberto em abril deste ano. Eles mostram que o Acre esteve, durante vários anos, sob o olhar atento da comunidade de informações do regime militar. Mas por que esse foco num estado tão pequeno, na época com uma população de apenas 218 mil habitantes, enquanto os militares tentavam sufocar a guerrilha armada que lutava contra a ditadura em locais maiores como São Paulo e Rio de Janeiro?

Os informes evidenciam que isso ocorria pela preocupação com possíveis focos de subversão, disseminação do comunismo e pela suspeita de que a guerrilha sul-americana também pudesse se instalar no estado, principalmente por fazer fronteira com a Bolívia. Além de ser, por um período, área de atuação do guerrilheiro e um dos principais líderes da revolução cubana Ernesto Che Guevara, os militares consideravam a Bolívia novo refúgio de guerrilheiros exilados de vários países.

A suspeita começou em 1966 – dois anos após o golpe militar – e durou até depois de 1985, período da redemocratização do país. Os militares centralizavam suas atenções na capital do Estado, Rio Branco, e nos municípios de Brasiléia e Xapuri, além da vila e hoje município de Plácido de Castro, todos na fronteira com a Bolívia. Por esses três municípios se daria a passagem de guerrilheiros, muitas vezes vistos pelos moradores locais, como revelam documentos do serviço secreto.

Disfarce
A organização de guerrilha na Bolívia já é citada em informe do serviço secreto ainda em 1966. Outro relatório de 1969 relata interligação entre o movimento subversivo no estado com o partido comunista boliviano, e a citação específica da entrada de guerrilheiros no Brasil está no documento confidencial do então Serviço de Informações e Segurança da Aeronáutica (Sisa), de 6 de fevereiro de 1970. Ele dá informações sobre a região bolivia-na que faz fronteira com o Brasil via Acre e Rondônia. Relata a movimentação de guerrilheiros na fronteira com o Acre e cita a possível passagem de Che pela região.

“A região boliviana com-preendida pelas localidades de Porvenir, Filadélfia, Puerto Rico e San Lorenzo, que formam um triângulo cujos lados são o Acre e Rondônia, é quase toda habitada por brasileiros, de onde vem 23 da produção da borracha de Xapuri (AC). Consta que todos os filhos de brasileiros que tenham ou não nascidos na Bolívia, são obrigados a ser registrados como bolivianos”, revela o documento.

O relato é baseado em informação passada por uma pessoa da região que estava a serviço dos órgãos de inteligência, classificada pelo Sisa como “de excelente cultura”. Ele já havia repassado o informe para o Serviço Nacional de Informações (SNI) em Brasília e ao 4º Batalhão de Fronteiras em Rio Branco. Mais adiante, depois de descrever a região, o informante dá a notícia sobre Guevara.

“Consta que a região foi ocupada por Che Guevara, o qual penetrou em território brasileiro disfarçado de oficial brasileiro, por ocasião da Operação Rondon 67. O oficial boliviano que deu combate aos guerrilheiros de Che, ten-cel De Latorre, foi há pouco promovido a coronel e afastado, tendo sido classificado em uma guarnição do interior do país”, descreve o informe da Aeronáutica.

Pouco antes, em 20 de janeiro de 1970, relata o mesmo informe, “doze (12) homens armados, provavelmente guerrilheiros bolivianos, armados com metralhadoras leves e pesadas, granadas, etc., desceram pelo Rio ABUNAM e estiveram em VILA PLÁCIDO DE CASTRO (Acre), onde se reabasteceram”. O informante diz ainda que logo após os guerrilheiros “desceram pelo mesmo rio até onde este recebe o nome de MANU (não figura no mapa da DS), de onde levaram (não se sabe se prisioneiros) 1 (um) Sargento e dois (2) Soldados bolivianos”.

Esses guerrilheiros, “ao subirem o rio MANU foram metralhando as propriedades da região, todas de brasileiros, embora o território seja boliviano, tendo tomado rumo de PORVENIR”, região boliviana. Há relato de que na passagem pela região eles “destruíram propriedades e animais domésticos, levando, ao que parece, mulheres e moças”, conforme relato de um morador local.

Infiltração
O informe também evidencia preocupação com possíveis infiltrações de comunistas entre participantes do Projeto Rondon, que na época era denominado Operação Rondon. Além de citar a entrada de Che Guevara no Brasil “por ocasião da Operação Rondon 67”, mais adiante diz haver informação de que um médico que participou do grupo “estabeleceu-se em Xapuri”. O projeto foi uma iniciativa dos militares que, em 1967, começaram a levar universitários para a Amazônia para desenvolver trabalhos sociais em suas áreas de atua-ção. O lema era “Integrar para não entregar”.

 

 

Municípios de Xapuri, Brasiléia e Plácido de Castro, na fronteira com a Bolívia, preocupavam o governo militar

Bolívia era refúgio da subversão

No início dos anos 70, foi firmada aliança entre os governos militares do Brasil, Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia, conhecida como Operação Condor, para repressão aos seus opositores. Em 15 de março de 1984, documento do Ministério da Aeronáutica aponta a Bolívia como o “novo refúgio para a subversão”.

“Elementos subversivos argentinos e de outros países do CONE SUL, que estavam exilados no México e na Europa, estão se deslocando para a Bolívia após a assunção do novo governo. A Bolívia é atualmente o refúgio para a subversão na América Latina, semelhante ao que ocorreu no CHILE à época de ALLENDE e na Argentina nos anos 70”, afirma.

O documento relata o surgimento em La Paz, capital da Bolívia, de um Comitê para o Cone Sul, da Junta de Coordenação Revolucionária (JCR), um organismo que visava coordenar os movimentos esquerdistas que se insurgiam contra regimes militares. Conforme o documento, o JCR havia sido criado com o apoio de um “líder trotskista boliviano do Secretariado Unificado da Quarta Internacional”, definido como “um dos principais dirigentes da Central Operária Boliviana – COB” que se opunha ao governo do então presidente boliviano Siles Suazo.

O documento relata que a JCR estaria introduzindo armas na Bolívia pelo Brasil, utilizando ligações do comandante do movimento para o Cone Sul, um ex-major boliviano, que seria o comandante do JCR pelo Cone Sul, em São Paulo. “O tráfico de armas está sendo feito por Corumbá-MT”, relata.

Var-Palmares

Na época, a preocupação dos militares também se voltava para a guerrilha urbana. Uma delas era a possibilidade de a organização armada Vanguarda Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), grupo esquerdista armado que lutava contra o regime militar, se instalar no Centro-Oeste, principalmente em Brasília.

O grupo – ao qual pertencia a atual presidente Dilma Rousseff – estava planejando se instalar na capital do país, segundo documentos produzidos pelo Centro de Informações do Exército (CIE), de abril de 1970. Entre os integrantes da organização estavam padres e militares, que foram presos depois da detenção de esquerdistas no Rio de Janeiro e São Paulo, onde a VAR-Palmares já estava em plena atividade.

Rádios divulgavam comunismo

A preocupação com a divulgação dos regimes políticos da Rússia, Cuba e China, dirigidos por partidos comunistas, e o monitoramento de meios de comunicação aparecem em documento do Serviço de Informações e Segurança da Aeronáutica (Sisa), de 1969, e da Polícia Federal, de 1970. “Foi apurado, ainda, que em Brasiléia, somente rádios de grande potência conseguem captar Estações Nacionais, pois, as estações radiofônicas que mais se ouve são as de Moscou, Pequim e Havana, que transmitem propaganda na língua portuguesa”, diz o do Sisa intitulado “Subversão no Acre”.

Os relatos revelam até a existência de uma rádio clandestina divulgando o regime comunista. “Consta que na região entre Xapuri e Rio Branco teria sido localizada uma estação de rádio cubana”, diz o documento. Em outro ponto afirma: “a não ser aos domingos, na hora do futebol, não se consegue sintonizar na região (Xapuri e adjacências) nenhuma estação brasileira; entretanto entram com ótima clareza a Rádio de Havana e da China”.

Che Guevara rondava a fronteira do Brasil
Este informe é um dos poucos documentos que relata oficialmente a suposta presença de Che Guevara no Brasil. Outro informe do SNI e datado de agosto de 1967 revela a presença do guerrilheiro em Pirizeiro, no Mato Grosso, próximo a San Ma-tias, na Bolívia. Diz que em virtude de denúncias sobre a presença dele naquela região, em maio daquele ano, o Batalhão enviou ao local um oficial que interrogou moradores e trabalhadores e “todos foram unânimes na afirmação de que um elemento branco, alto, barbudo, trajando marrom com platinas e portando arma (não se conseguiu apurar o tipo de arma), tendo um cavalo como montada, esteve naquela região em fins de março, dizendo-se comprador de couros”.

Em um trecho diz que “o elemento considerado era alto, cabelos aloirados, permanecendo dois dias no local, dizendo que seguia para San Ma-tias e Robone – Bolívia; falava português bastante arrastado. Ao ser mostrada a fotografia de “Che Guevara” aos depoentes, mesmo sendo “a priori”, esclarecido que só afirmassem com plena convicção, todos foram unânimes em apontá-lo como o verdadeiro elemento que lá estivera”.

Outro documento, do Ministério da Aeronáutica, de 12 de dezembro de 1974, também mostra a preocupação com a entrada de guerrilheiros em território brasileiro. Refere-se a informações de uma autoridade da Bolívia sobre guerrilheiros escondidos na região boliviana chamada Exaltación, próximo à fronteira do Estado de Rondônia, conforme relato de um ribeirinho. Dizia que “seis indivíduos armados e estranhos, parecendo ser argentinos, estavam escondidos na região e pareciam ser guerrilheiros”. Ainda que “um certo indivíduo da região estava desaparecido e acreditava estar auxiliando aos estranhos e que eles estariam aguardando outros indivíduos para se juntarem a eles”.

Há controvérsias
A passagem de Che Guevara pelo Acre sempre mexeu com o imaginário da população local e, talvez, por isso tenha induzido os serviços de informação da ditadura militar a produzir relatos sobre o episódio.

Até hoje, ouvem-se histórias não só sobre a presença do líder guerrilheiro em municípios da região de fronteira do Acre com a Bolívia como há quem diga que alguns membros de organizações de esquerda no Estado chegaram a ter contatos pessoais com o Che. Não só. Contam que esses ativistas políticos chegaram a fornecer alimentos para o líder guerrilheiro. Um desses ativistas seria o professor Hélio Cury, que morreu há três anos.

Outro que jurava ter certeza sobre a passagem de Che Guevara pelo Acre era o padre José Carneiro Lima, da Ordem dos Servos de Maria, que também já morreu. Padre José seria, conforme foi descrito acima pelo Serviço de Informações e Segurança da Aeronáutica (Sisa), a pessoa de “excelente cultura” que passava informes para o Serviço Nacional de Informações (SNI) e para o 4º Batalhão de Fronteira, sediado em Rio Branco.

Teria sido da lavra do padre o relato sobre a ocupação da fronteira do Acre com a Bolívia por Che Guevara e um grupo de 12 guerrilheiros, conforme se lê:

“…doze (12) homens armados, provavelmente, guerrilheiros bolivianos, armados com metralhadoras leves e pesadas, granadas etc., desceram pelo Rio ABUNAM e estiveram em PLÁCIDO DE CASTRO (Acre), onde se reabasteceram”.

Esses guerrilheiros, acrescenta o padre, “ao subirem o Rio MANU foram metralhando as propriedades da região, todas de brasileiros, embora o território seja boliviano, tendo tomado o rumo de Porvenir”. Por onde passavam “destruíram propriedades rurais e animais domésticos, levando, ao que parece, mulheres e moças”.

Que o padre José Carneiro Lima fosse uma pessoa de “excelente cultura” não se duvida. Formado em Filosofia e Teologia em Roma, falava cinco idiomas e conhecia como poucos a região amazônica, os segredos da floresta. Contador de histórias, gabava-se de ouvir o esturro de uma onça de dentro de um Boeing, nas alturas.

Que tivesse municiado os serviços de informação da ditadura militar também procede. Ele mesmo fazia questão de narrar com detalhes o episódio da presença de Che Guevara no Acre enquanto exibia uma suposta “carteira” de informante do SNI. Um dos motivos, aliás, que teria levado, anos depois, o bispo progressista da diocese de Rio Branco, dom Moacyr Grechi, a suspendê-lo de suas atividades pastorais.
Outro dado a se levar em conta era o de que o raio de sua ação pastoral e incursões na floresta abrangia, justamente, os municípios acreanos mais visados pelos serviços de informação – Xapuri e Brasiléia, do qual era vigário, e Plácido de Castro, cujo pároco era seu irmão, padre Peregrino Carneiro Lima.

Contudo, é preciso ter o devido cuidado sobre esses relatos da passagem de Che Guevara pelo Acre. Tanto da parte de membros de organizações de esquerda quanto do padre José Carneiro Lima.
O escritor mexicano Jorge Caldera, considerado o melhor biógrafo entre tantos sobre a vida e a obra de Ernesto Che Guevara, descarta, primeiro, qualquer possibilidade de o líder guerrilheiro ter entrado na Bolívia pelas fronteiras do Acre. Segundo Caldera, Che chegou à Bolívia por avião vindo de São Paulo.

Na mesma biografia, Caldera afirma que Che estabeleceu sua base de guerrilha nos altiplanos da Bolívia e jamais teria feito incursões na região da Amazônia boliviana. Por vários motivos. Entre outros, pelas distâncias e dificuldades de locomoção, caçado pelas tropas do general-presidente boliviano René Barrientos Ortuño e agentes da CIA. Na vasta planície seria uma presa mais fácil do que nas escarpas dos altiplanos.

Outro motivo era o de que, na época, a Amazônia boliviana se constituía em uma imensa região desocupada e inóspita. Mais ocupada, de fato, por famílias de seringueiros brasileiros, que atravessavam a fronteira, do que por bolivianos Por isso mesmo, adversa para atividades de grupos guerrilheiros que teriam que enfrentar todo tipo de doenças, como a malária, a beribéri e hepatites. Com um índice de umidade de até 90º no período das chuvas ou do chamado “inverno amazônico” seria fatal para um asmático incurável como Che Guevara.

Por fim, o escritor mexicano afirma que essas especulações sobre incursões de Che Guevara em território brasileiro foram usadas por ele, Che, para tentar ludibriar os serviços de inteligência.

O que há de certo é que Ernesto Che Guevara foi preso, em 1967, em La Higueras, na Bolívia, a quase 3 mil quilômetros do Acre. E fuzilado por uma soldadesca do exército boliviano, sob o protesto de um dos seus poucos e fiéis guerrilheiros, Simon Cuba, codinome Willi, que pediu mais atitude diante da indecisão dos soldados:
– Caralho, este é o comandante Guevara, merece mais respeito”.  

Fonte: A Gazeta do Acre