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Celso Lungaretti: Marinha ordenou execuções no Araguaia

De vez em quando a Folha de S. Paulo se lembra de que é um jornal e cumpre a função da imprensa, revelando a seu público aquilo que as autoridades tentam ou tentaram esconder.

Por Celso Lungaretti*

Caso do excelente trabalho de jornalismo investigativo de João Carlos Magalhães, Maria Clara Cabral, Matheus Leitão e Rainer Bragon, autores da reportagem Marinha ordenou a morte de militantes no Araguaia em 1972.

Se já não havia dúvida nenhuma de que a ordem nas 2ª e 3ª campanhas do Araguaia era matar os guerrilheiros mesmo quando eles fossem aprisionados com vida, agora também ficou definitivamente provado que tal ordem partiu dos altos escalões e não foi nenhuma iniciativa autônoma de aloprados no palco da ação.

Eis os trechos principais (os grifos são todos meus):

"Documentos escritos pelo Comando da Marinha revelam que havia a determinação prévia de matar os integrantes da Guerrilha do Araguaia, e não apenas derrotar o maior foco da luta armada contra a ditadura militar.

Os papéis, de setembro de 1972, relatam a preparação da Operação Papagaio, uma das principais ofensivas das Forças Armadas contra o grupo criado pelo PCdoB entre Pará, Maranhão e a região norte de Goiás, que hoje é o Estado do Tocantins.

A documentação a que a Folha teve acesso faz parte do acervo da Câmara dos Deputados. Era confidencial até 2010, mas foi liberado para consulta pública.

'A FFE [Força dos Fuzileiros da Esquadra] empenhará um grupamento operativo na região entre Marabá e Araguaína para, em ação conjunta com as demais forças amigas, eliminar os terroristas que atuam naquela região', afirmam duas 'diretivas de planejamento'.

Uma delas é assinada por Edmundo Drummond Bittencourt, comandante-geral do Corpo de Fuzileiros Navais. A outra foi escrita pelo contra-almirante Paulo Gonçalves Paiva. Nas duas, a ordem de 'eliminar' os guerrilheiros surge no item 'conceito das operações".

Os textos também dizem que seriam feitas ações para 'impedir os terroristas que atuam na margem daquele rio de transporem-no para a margem leste, eliminando-os ou aprisionando-os'.

A oposição entre 'eliminar' e 'aprisionar' confirma que o primeiro se refere à morte dos militantes, disse o historiador Jean Rodrigues Sales, autor de A Luta Armada Contra a Ditadura Militar (ed. Perseu Abramo).

'No episódio de repressão à militância armada, a política deliberada de assassinatos jamais foi admitida de forma oficial', disse Sales.

Segundo Criméia Schmidt de Almeida, ex-guerrilheira e estudiosa do conflito, 'realmente [ainda] não havia registro disso [determinação prévia para matar]'.

Para Taís Morais, coautora com Eumano Silva de Operação Araguaia (Geração Editorial), 'militar não escreve ordem que não deve ser cumprida'.

As 'diretivas' corroboram relatos de testemunhas do conflito, segundo as quais, nos anos seguintes, comunistas foram mortos mesmo depois de serem presos.

Ainda não foi produzida uma narrativa oficial sobre a luta armada durante a ditadura — um dos objetivos da Comissão da Verdade,
que o governo quer instituir.

Procurado na terça-feira, o Ministério da Defesa afirmou que, por não ter tempo de encontrar os documentos, não os comentaria".
 

Resumo da opereta: acaba de ser pulverizadas, espetacularmente, todas as objeções das viúvas da ditadura, dos discípulos do totalitarismo e das avestruzes por conveniência, contra as investigações da Comissão da Verdade. Há mesmo muito que o povo brasileiro precisa saber sobre um dos períodos mais infames da História deste país.

E, para se ter uma idéia das monstruosidades perpetradas no Araguaia, eis um interessante relato colocado no ar pelo Folha.com em agosto de 2008 (não saiu na edição impressa), quando ex-recrutas, que participaram por obrigação daquelas operações, contaram o que ocorreu. Os grifos, claro, são meus:

"'Logo que chegamos lá, fomos avisados de que ou matávamos ou morríamos. Não tivemos escolha', diz o presidente da Associação Brasileira dos Ex-Combatentes do Araguaia no Piauí, João Batista de Oliveira, 59. 'Fomos vítimas, até mais do que os guerrilheiros, porque fomos enganados', afirma. 'Que reconheçam que não somos carrascos. Os carrascos eram os generais'.

"…[os recrutas] pensavam que iriam fazer apenas mais uma manobra regular. Só no meio da viagem até Xambioá (TO), quando passavam por Grajaú (MA), é que ficaram sabendo que se tratava de um combate real. (…) 'Só soube quando entregaram munição real para a gente. Se fosse só uma manobra, aquilo não era necessário', diz Raimundo Pereira dos Santos, 56.

"…os ex-militares dizem ter ficado em grupos separados, de 13 a 15 homens cada um, interconectados por um sistema de rádio, de onde vinham as ordens. 'Ainda hoje lembro os dizeres da transmissão: 'É para calcinar o cipó'. Calcinar era matar, cipó eram os guerrilheiros', afirma Guilherme Xavier Neto, 60

"…os ex-combatentes entrevistados (…) dizem que a violência era produzida pelos oficiais de carreira do Exército.

'Vi muitos que ficavam sem as unhas, sem parte da orelha, fracos de tanto perder sangue nos interrogatórios', diz Oliveira. 'Quando um era morto, o corpo era pendurado no helicóptero num saco de estopa e exibido na cidade, para fazer medo. Depois, enterrado numa cova rasa ou jogado no rio. Com certeza, a maioria dos que ainda buscam corpos de parentes não vai encontrar nada'."

* Jornalista, escritor e ex-preso político.

Fonte: http://naufrago-da-utopia.blogspot.com