Carnaval de Salvador virou espetáculo, diz Albergaria

Todos os anos no carnaval o debate sobre a suposta descaracterização da folia de rua, em Salvador está presente. Nesta entrevista ao Vermelho Bahia, o antropólogo Roberto Albergaria*, fala da polêmica sobre a modernização da festa, que, segundo ele, desde a década de 1980 ganhou ares de espetáculo para ser visto através da televisão para quem está fora da cidade. Confira a íntegra da conversa.

Vermelho – Para o senhor, o carnaval de Salvador se descaracterizou ou se modernizou?

Roberto Albergaria – Ele se modernizou em dois sentidos: na mercantilização, se tornando uma festa negócio, e também no sentido da espetacularização, virando um espetáculo para ser visto através da televisão pelas pessoas que estão em casa ou fora da Bahia. A modernização teve este sentido do capitalismo pós-moderno, onde as imagens e os sons viraram uma grande mercadoria. O carnaval tomou o sentido muito empresarial, seguindo a lógica do capitalismo, que hoje não vende mais coisas palpáveis, mas imagens e sons. E a festa foi tomada a partir dos anos 80 toda por isso, tornando-se uma coisa muito injusta, pois privatizou todo o espaço da folia. Todo o espaço dos grandes circuitos – Barra/Ondina e Centro – foi tomado por este formato de trio elétrico seguido por um carro de apoio, que tem bar, banheiro e outra mordomias e eles ocuparam todo o espaço útil da cidade e os foliões tradicionais, aqueles que pulavam sem cordas e com as fanfarras atrás foram escanteados. O folião pipoca foi perdendo espaço. Hoje ele fica esprimido entre os tapumes dos camarotes, que hoje também cresceram muito, e as cordas dos grandes blocos.

V – Quem são os foliões que brincam o carnaval em Salvador?

RA – Tem uma coisa extremamente interessante, pois foi feita uma pesquisa pela Secretaria de Cultura sobre os foliões da rua. Entre os resultados, está a constatação de que 60% das pessoas que vão para as ruas ficam na pipoca e só 15% estão nos blocos. Sendo que dentro destes 15%, 70% a 80% são turistas. Então você veja que injustiça, eles ocupam quase que 100% do espaço físico da rua, ocupam todo o espaço sonoro, pois com um trio elétrico potente, ninguém consegue ouvir mais nada a um quilômetro de distância e ocupam também o espaço visual da cidade, pois não tem mais decoração de rua, porque os grandes patrocinadores – os grandes bancos e cervejarias – colocam a propaganda nas ruas e proíbem a Prefeitura de colocar decoração para não tirar a visibilidade da propaganda deles. Então é um carnaval muito injusto, porque esta modernização levou à privatização do espaço físico, ocular e auditivo, através da privatização do trio elétrico, que antes circulavam livremente no mio da multidão, e por fim a do espaço visual.

V – E o povo como é que fica nisso? 

RA
– O povo se viciou no espetáculo, da mesma forma que o povo brasileiro se viciou em BBB e em televisão. Muita gente vai para as ruas para apreciar as grandes atrações. Ao invés de se revoltar contra isso, como o povo do Oriente Médio está fazendo, eles vão para a rua ver as grandes atrações. Outros ficam zanzando e os mais jovens ficam brigando. A briga é uma forma de se resgatar o lado lúdico, a brincadeira do carnaval, então eles ficam brigando. Engraçado, que a espetacularização é tão forte, que os meninos mais fortes (os malhados e pobres da periferia), eles preferem brigar em frente às câmeras para aparecer de alguma forma. Então a imagem deles aparece na televisão e isso dá o maior Ibope, pois a cultura brasileira é machista. Mas, não é uma violência, é uma coreografia mais solta, de jogar os braços e se mexer muito e daí de vez em quando, o braço acaba pegando em alguém e ai começa a pancadaria, que não vai para frente, pois chega a turma do deixa disso, vem a polícia para reprimir. É esta cultura machista ao invés de diminuir, está aumentando, porque as mulheres estão reproduzindo o comportamento dos homens e estão indo para as ruas brigar. E não é mais brigar de puxar os cabelos não, é de muro, de tapa e também de desnudar a parte de cima da outra, ou desnuda ou joga no chão, então é a humilhação da outra. 

V – O folião pipoca então seria a maior vítima desta mudança? 

RA
– Os mais oprimidos não são os foliões pipocas (os excluídos dos blocos), são os cordeiros (aqueles que puxam as cordas dos blocos), pois eles ganham R$ 30 por dia e três garrafas de água mineral para puxar cordas e privatizar os espaços para os pagantes. Eles ganham muito pouco e ainda são vítimas de empresas terceirizadas, que muitas vezes deixam de pagar pelo serviço. Abaixo dos cordeiros tem ainda os ambulantes ilegais – os legalizados pelo governo pagam taxas extorsivas, que vêm do interior e criam um núcleo proletariado nas ruas adjacentes ao carnaval. É o outro lado do carnaval. Eles acampam na rua na quarta-feira antes do carnaval para guardar o espaço, e só saem de lá, na outra quarta-feira. Então eles moram na rua, urinam na rua, não tomam banho. Então eles são muito oprimidos. Até mais que os cordeiros, que são o lado visível da coisa. Os cordeiros são os escravos pós-modernos. Geralmente são negros pobres, que puxam a corda para que os mais claros, pois na Bahia não tem branco, e os turistas se divertirem. 

V – Então o senhor confirma que o carnaval de Salvador se descaracterizou mesmo? 

RA – Essa palavra descaracterização eu não sei. Porque se imagina que as coisas poderiam ficar como eram antes. Se você escrever que eu disse que se descaracterizou, vão dizer que é saudosismo, que é porque eu sou um velho de 60 anos. Mas, mudou. Não sei se mudou para melhor. A economia do carnaval é uma economia muito próspera. Com esta mercantilização e espetacularização todas as televisões passaram a transmitir a festa. Os camarotes estão cada vez maiores e mais caros e hoje dia já tem camarotes para todas as classes, inclusive para a classe D. Da mesma forma que tem bloco de gente bonita, gente feia e gente média. Então quem vai para a rua sem bloco na Bahia leva este estigma de ser gente lascada, lenhada. E ai prejudica uma das coisas mais importantes do carnaval, que é a paquera. Então quem não tem um abadá de bloco, seja do Gandhi, do Cheiro, seja de um bloco black ou de um bloco branco, não pega ninguém. As meninas não dão bola para quem não tem abadá e é por isso que eles ficam brigando.

Antigamente, se dizia que o carnaval da Bahia era o carnaval da participação, onde todo mundo vai para as ruas, brinca, mexe e beija todo mundo. Isso é uma coisa da década de 70 do século passado, quando todo mundo brincava na Praça Castro Alves, quando todo mundo ia atrás do trio elétrico, hoje para ir atrás do trio elétrico é preciso pagar. Então aquele carnaval democrático, participativo, que fazia um contraponto com o carnaval do Rio de Janeiro não existe mais. Agora a Salvador vive de fama. A cidade está mal cuidada, a festa entregue aos barões da indústria cultural e a cidade entregue às construtoras.

A Bahia é a sombra do que já foi, da sua imagem. O carnaval dos novos baianos não existe mais. Mudou, como tudo no Brasil. O capitalismo mudou as coisas em todas as áreas. A Bahia está perdendo sua característica básica da baianidade. O carnaval é só mais um negócio. 

V – O senhor acha que o Rio de Janeiro ou Recife mantêm as tradições. Alguém ocupou o lugar deixado pelo carnaval da Bahia?

RA – Não. Se você for mais para o norte, você ainda encontra o modelo mais tradicional em Olinda e algumas cidades do interior. Agora, o que todo mundo está falando, inclusive do Rio de Janeiro, é a volta do tradicional. No Rio, Ipanema e outros bairros estão fazendo um carnaval de rua participativo, como era antigamente, antes que os jornais e a televisão tivessem espetacularizado o carnaval do Rio e o aprisionado no sambódromo. Então você encontra cada vez mais, antigos blocos que fazem um carnaval com banda de sopro, charangas. De três a quatro anos para cá eles vêm fazendo muito isso. 

V – O senhor acha que pode acontece algo parecido aqui em Salvador? 

RA -É possível. Na quarta-feira antes do carnaval, vários grupos antigos, como o Jacu e o Concentra Mas Não Sai, vão fazer um carnaval de charangas na Barra. Atualmente se prefere a espetacularização, a coisa de aparecer na televisão, a mordomia.. Aquela coisa livre da rua. Afinal a carnaval é a fantasia de negação do que você faz o ano inteiro. Não acredito no resgate do carnaval de antigamente.

* Roberto Albergaria, 60 anos, é professor aposentado do Departamento de Antropologia e Etnologia da UFBA, onde trabalhou por mais de 20 anos. Graduado em História pela mesma universidade, possui DEA em Antropologia, Etnologia e Ciências das Religiões pela Universidade de Paris VII, Jussieu, em Sociedade e História Americanas pela Universidade de Paris I – Sorbonne, e doutorado em Antropologia pela Universidade de Paris VII – Jussieu.

De Salvador,
Eliane Costa