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Mário Lago: o tempo não cumpriu o acordo

Mário Lago dizia ter feito “um acordo com o tempo. Nem ele me persegue, nem eu fujo dele". Nascido em 26 de novembro de 1911, ele esperava completar 100 anos, o que aconteceria em 2011. Não deu: faltaram quase dez anos para isso. Ele deixou de viver em 20 de maio de 2002, com pouco mais de 90 anos de idade.

Mas foram 90 anos bem vividos, que deixaram uma forte marca na música, no teatro e na poesia de nosso país. E também na política: Mário Lago se tornou marxista na década de 1930 e foi, durante décadas, um dedicado militante comunista, tendo sido preso, por isso, inúmeras vezes, em 1932, 1941, 1946, 1949, 1952, 1964 e 1969. Experiência que contou num livro de memórias cujo bom humor aparece já no título. Reminiscências do sol quadrado, publicado em 1979, onde relata cenas de tietagem explícita de carcereiros e agentes da repressão quando se deparavam com o preso famoso, ao lado das costumeiras violências e arbitrariedades das prisões, particularmente políticas.

Mário Lago foi ator, poeta, radialista e letrista, autor de alguns sambas antológicos como "Ai, que saudades da Amélia" (eu virou símbolo da mulher submissa) e "Atire a primeira pedra" (junto com Ataulfo Alves). O primeiro sucesso veio em 1938, quando Orlando Silva gravou “Nada além” que imediatamente caiu no gosto do público e tornou célebres os autores Mário Lago e Custódio Mesquita. Mas a música era pouco, e Mário Lago participou de radionovelas, peças de teatro, filmes, novelas de televisão. Algumas de muito sucesso, como "O Casarão", "Nina", "Brilhante", "Elas por Elas" e "Barriga de Aluguel", na rede Globo. No cinema, entre inúmeros filmes, esteve por exemplo, em "Terra em Transe", de Glauber Rocha, e “São Bernardo”, de Leon Hirzman, baseado no romance de Graciliano Ramos. Em 1985, foi o “Compadre Quelemem” na minissérie “Grande Sertão: Veredas”, inspirada no romance de Guimarães Rosa.

Artista múltiplo, Mário Lago conquistou a alma brasileira principalmente – sem dúvida – pelas canções que são tão repetidas há décadas que muitos chegam a supor que nem têm autor reconhecido. Elas têm, mas o autor – por opção e também por sua trajetória – nunca repudiou sua ligação com os brasileiros. Daí não haver problema em supor que foram compostas por Mário Lago ou por um autor perdido na multidão. É como se fosse a mesma coisa – estão unidos no coração do povo (José Carlos Ruy).

Músicas

Atire a primeira pedra
(Ataulfo Alves e Mário Lago)

Covarde sei que me podem chamar
Porque não calo no peito essa dor
Atire a primeira pedra, ai, ai, ai
Aquele que não sofreu por amor
Eu sei que vão censurar meu proceder
Eu sei, mulher
Que você mesma vai dizer
Que eu voltei pra me humilhar
É, mas não faz mal
Você pode até sorrir
Perdão foi feito pra gente pedir

Nada além
(Custódio Mesquita e Mário Lago)

Nada além
Nada além de uma ilusão
Chega bem
E é demais para o meu coração
Acreditando em tudo que o amor
Mentindo sempre diz
E vou vivendo assim feliz
Na ilusão de ser feliz
Se o amor
Só nos causa sofrimento e dor
É melhor
Bem melhor a ilusão do amor
Eu não quero e não peço
Para o meu coração
Nada além de uma linda ilusão

Aurora
(Mário Lago e Roberto Roberti)

Se você fosse sincera
Oh, oh, oh, Aurora
Veja só que bom que era
Oh, oh, oh, Aurora

Um lindo apartamento
Com porteiro, elevador
Um ar refrigerado
Para os dias de calor
Madame antes do nome
Você teria agora
Oh, oh, oh, Aurora

Devolve
(Mário Lago)

Devolve toda a tranqüilidade
Toda a felicidade
Que eu te dei e que perdi
Devolve todos os sonhos loucos
Que eu construí aos poucos
E te ofereci
Devolve, eu peço, por favor
Aquele imenso amor
Que nos teus braços esqueci
Devolve, que eu te devolvo ainda
Esta saudade infinda
Que eu tenho de ti

Enquanto houver saudade
(Custódio Mesquita e Mário Lago)

Não posso acreditar
Que algumas vezes
Não lembres com vontade de chorar
Daqueles deliciosos quatro meses
Vividos sem sentir e sem pensar

Não posso acreditar
Que hoje não sintas
Saudade dessa história singular
Escrita com as mais suaves tintas
Que existem pra escrever o verbo ama

Enquanto houver saudade
Pensarás em mim
Pois a felicidade
Não se esquece assim
O amor passa mas deixa
Sempre a recordação
De um beijo ou de uma queixa
No coração

Leva o meu coração que ele é teu
(Mário Lago e Roberto Martins)

Leva meu coração que ele é teu
Leva que está pesando em meu peito
Pesa mais que a saudade
Do nosso amor que morreu
Pois não te vendo a meu lado
Meu coração não é meu
Mas tem cuidado, por Deus
Com meu coração
Não deixes o pobrezinho
Sem proteção
Talvez um dia eu te esqueça
Alguém me vire a cabeça
Pra amar de novo eu preciso do coração

Salve a preguiça meu pai
(Mário Lago)

Com meus pés, não vou
Venha me buscar
Mas só vou de colo
Pra não me cansar
O meu passo faz caminho
Mas se alguém não se agradou
Pra mudar vai dar trabalho
Com meus pés, não vou
Espinho não me amedronta
Nem pedra vai me assustar
Quem quer que eu saia da estrada
Venha me buscar
Com meus pés, não vou
Venha me buscar
Mas só vou de colo
Pra não me cansar
Oi, com meus pés não vou
Venha me buscar
Mas só vou de colo
Pra não me cansar
Com tristeza não me abalo
Com ameaça não me amolo
Pra brigar não tenho força
Mas só vou de colo
Quem quer, caminhe comigo
Vai ver que é bom de se andar
Quem não quiser me carregue
Pra eu não me cansar
(Salve a preguiça, meu pai
A preguiça é nossa
Já o português dizia que
O índio era preguiçoso
Porque não queria trabalhar pra ele
E se metia no meio do mato
Salve a preguiça, meu pai!)

Número um
(Mário Lago e Benedito Lacerda)

Passaste hoje ao meu lado
Vaidosa, de braço dado
Com outro que te encontrou
E eu relembrei comovido
O velho amor esquecido
Que o meu destino arruinou
Chegaste na minha vida
Cansada, desiludida
Triste, mendiga de amor
E eu, pobre, com sacrifício
Fiz um céu do teu suplício
Pus risos na tua dor
Mostrei-te um novo caminho
Onde com muito carinho
Levei-te numa ilusão
Tudo porém foi inútil
Eras no fundo uma fútil
E foste de mão em mão
Satisfaz tua vaidade
Muda de dono à vontade
Isso em mulher é comum
Não guardo frios rancores
Pois entre os teus mil amores
Eu sou o número um