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Olhar estrangeiro sobre região cria caricaturas latino-americanas

A cidade de São Paulo tem mais de 300 salas de cinemas, mas apenas três delas estão exibindo uma única produção latino-americana, não nacional. O dado é um bom exemplo da falta de espaço que a cultura da região enfrenta no país. E ajuda a explicar o porquê do Brasil saber tão pouco sobre seus vizinhos. Afinal, qual foi a última vez que você ligou o rádio – ou o ipod – e escutou uma música latino-americana?

Por Joana Rozowykwiat, em TAL – Televisão América Latina

O argentino “Dois Irmãos” sucede nas salas paulistanas “O segredo dos teus olhos”, que, possivelmente, só teve espaço por uma simples razão: foi o vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, o que mostra que não falta qualidade à produção de nossos hermanos.

O professor Sidney Ferreira Leite, doutor em história social pela USP e autor do livro “Cinema brasileiro: das origens à retomada”, destaca que nem sempre foi assim. Segundo ele, nos anos 40 e 50, ainda era comum ter salas exibindo filmes latino-americanos, em especial, mexicanos.

“Isso mudou a partir da década de 70, com a morte dos cinemas de bairro e a adoção do modelo de cinema norte-americano, com os blockbusters e os filmes catástrofe invadindo as salas. Os latino-americanos ficaram, então, restritos a um pequeno grupo de iniciados”, conta Ferreira Leite.

Depois da Europa, os EUA

O professor explica que a dominação cultural dos Estados Unidos – que não se restringiu apenas aos cinemas – data dos anos 20, com a chegada às telonas verde-amarelas das primeiras estrelas de Hollywood.

Tal processo ganhou maior dimensão na década de 30. Mas só se consolidou durante a segunda guerra mundial, quando o Brasil faz a opção de lutar ao lado dos Estados Unidos, firmando assim uma parceria não só militar, mas político-cultural.

Ferreira Leite lembra que esse período coincide também com a decadência da Europa, que, por causa do passado colonial, ditava os padrões de comportamento no Brasil. “Na última foto do escritor Machado de Assis, ele estava usando um casaco de veludo, mesmo estando nos trópicos”, exemplifica o professor.

Depois da década de 50, com a popularização da televisão, a invasão norte-americana só se acentuou, reduzindo os espaços de manifestação de uma cultura regional e local.

E hoje poucos brasileiros seriam capazes de enumerar três ou quatro livros de escritores latino-americanos que tenham lido – apesar de seis autores da região terem recebido reconhecimento mundial, com o Nobel da Literatura.

Sidney Ferreira Leite diz que não há como avaliar, hoje, o grau de interesse do público pela cultura latino-americana, uma vez que não existe acesso a essa produção. “O público é construído pela indústria. Não temos como aferir o que cairia no gosto do povo, se não há o acesso”.

Caricaturas latino-americanas

Para o professor, o Brasil nunca olhou atentamente para os seus vizinhos, desde a política externa, até a absorção da cultura. “Não há simetria entre a aproximação geográfica e a identidade cultural, que em uma sociedade de mercado, é uma opção política. Apesar de termos as condições históricas de uma formação comum, construiu-se um distanciamento por causa de decisões das elites políticas”, avalia.

Sem acesso ao olhar latino-americano sobre si mesmo, os brasileiros têm tido que se contentar com a imagem que o estrangeiro cria sobre a região. E esse retrato, em geral, não corresponde à realidade, reproduz preconceitos e acentua o caráter periférico da região, resultando, na maioria das vezes, em caricaturas.

“A gente hoje lê a América Latina de forma enviesada, filtrada pela mídia norte-americana, que ignora a realidade latino-americana. Então, para eles, abaixo do Rio Grande, é tudo mexicano. Não conseguem distinguir as especificidades. Todos somos cucarachas”, diz Ferreira Leite.

De acordo com ele, “a América Latina é vista como ‘aqueles que não deram certo’, um povo supersticioso e violento”. Como exemplo, ele cita o projeto de um produtor americano que pretende fazer um filme sobre Carmen Miranda. Intitulada "Maracas: The Carmen Miranda Story" (Maracas: a história de Carmen Miranda), a produção nem estreou e já provoca receios a respeito de como a cantora será representada.

“Será tratada como uma dançarina cubana ou mexicana, que falava espanhol e cantava rumbas”, previu o escritor Ruy Castro, biógrafo da cantora, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. A maraca, espécie de chocalho que aparece no título do filme, não costumava ser usada por Carmen Miranda. “O próprio título já mostra que, para eles, o Brasil é apenas um México ou uma Cuba mais ao sul", declarou Ruy Castro.

O mundo real

Em tempos de globalização, saber mais sobre quem está ao redor e observar semelhanças é redescobrir o local e a si mesmo, dizem alguns analistas. Afinal, muitos são os pontos em comum entre o Brasil e seus vizinhos. Desde as raízes indígenas, a imposição da cultura europeia, a migração dos negros africanos, a saída acelerada do campo para as cidades, até a trágica experiência das ditaduras.

“Na medida em que reconhecermos essa identidade, estaremos mais próximos do mundo real do que de uma cultura que nos ignora. A grande vantagem desta redescoberta é poder se libertar desse olhar do ‘turista’, desse olhar ‘exótico’ sobre a região”, conta Ferreira Leite.

Fonte: www.tal.tv