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Brizola Neto: A derrota de Obama é a que Lula evitou

Ia escrever este texto antes, mas as inúmeras coisas que ficaram pendentes no pós-eleição me impediram. Mas não podia deixar de fazê-lo, porque os dois episódios quase simultâneos nos obrigam a refletir o que significaram a vitória de Lula, com a eleição de Dilma Rousseff e a derrota sem precedentes sofrida por Barack Obama e seu Partido Democrata.

Lógico que a avaliação de um Governo, depois de oito anos de mandato e a de uma administração como a norteamericana, que tem apenas dois, teria mesmo de ser diferente. Mas é interessante notar que, quando um Governo eleito sob a égide da mudança se limita a repetir – mesmo com uma tonalidade mais branda, ou “social” – as práticas daqueles a que a população rejeitou e quis substituir, o resultado é, mais do que a perda de popularidade, a perda da capacidade de mobilizar a vontade coletiva para um projeto de mudanças que ele próprio, em suas vacilações, foi incapaz de perseguir ao preço do risco.

Em uma indagação reduzida: se o líder, ele próprio, entendeu que as mudanças eram impraticáveis, diante das circunstâncias, por que a população deveria achar que tais transformações são viáveis?

A eleição de Barack Obama, é evidente, representou um momento – talvez o maior da história recente – de afirmação do desejo de mudança da sociedade americana. Mudar internamente, é claro, mas também de mudar o papel dos EUA no mundo e a visão que o mundo tem dos Estados Unidos. Ninguém, em sã consciência, podera deixar de ver a segurança e até a alegria que provocou em grandes parcelas do povo americano a esperança mundial que se tornou Obama, que chegou ao ponto de reunir centenas de milhares de pessoas em “comícios” realizados na Europa e de obter, poucos meses depois de eleito e ainda sem nenhuma ação concreta que o justificasse, o Prêmio Nobel da Paz.

Obama era a expectativa de que os EUA pudessem substituir a hegemonia militar que exercem sobre o mundo por uma hegemonia política e moral, que conservasse naquele grande país a mesma posição de poder, revestida, porém, de algo mais que caças, mísseis e ogivas nucleares.

O presidente negro, porém, nunca teve a coragem de avançar de forma visível e simbólica nesta direção: sua ação foi tíbia no fim da guerra do Iraque e do Afeganistão, decepcionou o planeta na questão climática e, a nós, latinoamericanos, ceifou grande parte de nossas simpatias com um incompreensível programa de bases militares em nossos continentes.

Se a direita dos EUA jamais deixou de odiar Obama, ele próprio não cuidou das simpatias que granjeava mundo afora e que eram um poderoso inibidor da ação dos falcões americanos.

Sejamos justos, porém: Obama, até agora, não apelou para o clássico “tenho um problema aqui dentro, faço uma guerra lá fora” que marca a triste história dos governos norteamericanos anteriores ao seu. Mas, igualmente, foi incapaz de demonstrar que os Estados Unidos não desejavam mais ser “a polícia do mundo”, os “donos da terra”.

Claro que foi decisivo que, no plano interno, sua administração não tenha conseguido reverter o quadro de crise gerado em 2008 – como aconteceu aqui – e que os EUA sigam com taxas de crescimento baixíssimas e com o desemprego em situação diametralmente oposta, em níveis que lembram o Brasil de FHC. Mas também aí revela-se a incapacidade do Governo Obama de romper com os ícones do liberalismo e, como Roosevelt, promover com a máquina do estado uma reativação da economia, no “New Deal” dos anos pós-depressão.

O Governo Obama, ao contrário, foi cúmplice de um processo de desvalorização da sua moeda, na tentativa – inútil – de recuperar mercados comerciais para os quais a economia americana não tem mais – e não terá – a exclusividade e o vigor de outros tempos. Mas não é a economia o ponto central deste comentário.

Até porque a economia, que nos dois primeiros anos de Governo Lula, nenhuma alteração significativa em relação ao período Fernando Henrique. O crescimento do PIB – de apenas 0,5% em 2003 e, por causa desta baixa taxa, 5% em 2004.

A questão é que Lula teve a percepção – mais que o planejamento – de uma inflexão política em seus rumos. Progressivamente – e de maneira muito mais acentuada depois que promoveu – impelido pela crise política – a mudança na equipe e na política econômica de seu Governo. O Estado brasileiro fugiu, pouco a pouco, da lógica neoliberal de que os agentes econômicos privados poderiam e fariam a properidade econômica – conceito que perderia sua arrogância de “verdade absoluta, embora siga menos explícito com a crise de 2008.

Chegamos a este abalo mundial com dois “handcaps” inigualáveis. O primeiro, é que já vínhamos trilhando um caminho de redistribuição de renda e elevação dos padrões de consumo interno, cuja construção restaurou, passo a passo, o imenso prestígio político que Lula vira erodir-se em parte nos três primeiros de seu mandato. O segundo, que a crise nos encontrou em condições de manter e até elevar o investimento público com a ação do Estado e o estímulo ao consumo dos setores industriais mais sensíveis.

Mas, sobretudo, com a lição, aprendida nas eleições de 2006, que era com o povão e o sentimento de nacionalidade que Lula podia contar.

A ameaça da volta da política econômica neoliberal de privatização e arrocho, somadas ao seu carisma e significado como líder popular deram a Lula uma vitória que, em parte, independeu dos apoios políticos convencionais.

Lula adquiriu uma estatura como estadista que a população percebe – e isso se expressa nos seus níveis de aprovação pública – e que é muito maior do que o sentido eleitoral e político que se avalia nas análises jornalísticas sobre seu governo, quase que invariavelmente restritas a primarismos como atribuí-la essencialmente ao Bolsa-Família ou ao bom desempenho da economia.

O prestígio de Lula, é claro, advém em boa parte destes fatores, mas eles são apenas expressões da percepção – mesmo que inexpressa – da população de que esse passou a ser um país onde se pode progredir, conquistar, ascender, trabalhar e viver.

Talvez Lula tenha tido em comum com Obama, além de encarnar na própria pele os segmentos da população historicamente excluídos, a ilusão que um Governo voltado para as mais básicas necessidades dos pobres, mas que não gravasse os ricos para atendê-las, pudesse “anular” a fúria da direita conservadora.

Cá e lá isto provou-se falso.

Nos EUA, o movimento “Tea Party” está aí para provar que um governo progressista – mesmo que muito mais simbólica do que efeituvamente, por assumir posições extremamente concessivas ao poder econômico – cria um processo de radicalização que a direita não promove quando há no poder um governo conservador.

Aqui, vimos a cosmopolita “inteligensia” tucana entregar-se a uma campanha em que só faltou envergar o estandarte da TFP. E não adiante que os empresários, os financistas, os investidores, os homens de negócio tenham ganhado, sob o governo Lula, dinheiro como poucas vezes ganharam na história.

Porque às elites que se julgam superiores não basta terem tudo o que têm e até ter mais do que já têm. Para serem superiores, precisam de massas “inferiores”. Para serem inimigas de um processo político que mal não lhes faz, basta que faça o bem aos contingentes imensos da população cuja miséria e embrutecimento fica sendo o testemunho de suas posses e falso refinamento.

Um governo das elites não precisa significar nada, não precisa de um programa. Suas bandeiras são apenas duas, embora disfarçadas por dez mil discursos econômicos: a modernização excludente e o saque colonial do país.

Um governo popular, ao contrário, é vítima de todos os desafios: a ele cabe ser ético, eficiente, estável,hábil, concessivo e, sobretudo, desenvolvimentista e justo. Pouca coisa, não é?

Mas, perseguindo todos estes objetivos, tem um maior a buscar: esclarecer a população, identificar-se claramente com ela, elevar seu nível de compreensão de que uma nova vida não é somente possível, mas indispensável para que sejamos um país.

Ainda que isso lhe custe o ódio dos que amam a “velha vida” de atraso e exclusão social, sentimento mesquinho que nem mesmo a afluência econômica lhes é capaz de tirar, a um Governo do povo brasileiro é indispensável que haja na população a sensação de que pertence e é a razão de ser deste governo.

O risco é indispensável ao enfrentamento de um grande desafio. Certeza e segurança completos só na mediocridade se encontram, ainda assim de forma ilusória, como tentou o Governo Obama e, cá nestas plagas, muitos intelectuais e políticos que integraram o Governo Lula desejaram também.

De forma ilusória, porque se a direita arreganha os dentes para um governo politicamente forte por suas posições e identidade com as massas populares – aquilo a que eles pejorativamente chamam de populismo ou messianismo – a um governo que perca esta força, esta ligação quase atávica com o povo ela não apenas mostra as presas: ela o destrói.

Talvez seja esta a lição que se deva fixar na compreensão profunda do que deve ser o Governo Dilma. Muitos falam que seu maior desafio é o de repetir o sucesso econômico do final do Governo Lula. É verdade e é possível, embora haja muitos fatores a interferir neste processo.

Eu, porém, modestamente arriscar-me-ia a dizer que o maior desafio ao Governo Dilma, não é este, mas o de manter o elevado nível de compreensão, que atingimos nestas eleições (e que nos tornou resistentes ao ponto de vencer toda a sordidez que contra nós se ergueu) de que há um projeto de país e que ele se funda em dois pilares que jamais se separam: desenvolvimento e justiça social.

E que este governo tem lado. Ter lado não é exterminar o outro, mas possuir um olhar, um compromisso e uma ação que faça a imensa massa de brasileiros para os quais a vida passou a ter sentido e destino e olhar para ele e dizer: este é o Governo do meu país, este é o meu Governo.

Fonte: Tijolaço