Nágyla Drumond – Reflexão sobre mulheres e a eleição de Dilma

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A festa

Na madrugada do dia primeiro de novembro o que mais me chamou atenção foi a alegria estampada nos rostos das mulheres que chegavam à sede do PCdoB, das mulheres que transitavam pela Avenida da Universidade, das mulheres que cantavam os jingles de Dilma como se fossem hinos de fé e de amor por um país e por um povo que decidiu seguir mudando.

Gerações de mulheres de todas as cores, muito jovens frente ao que ainda temos por viver; trabalhadoras, chefes de família, donas de casa, lideranças políticas, sindicais, feministas de todos os jeitos e crenças. Nossos corações estavam e estão em festa. E parecia que todas nós, estávamos nas muitas festas da vitória que aconteceram em todos os cantos deste país. Juntas com o povo, tomamos as ruas e fizemos o que sabemos fazer de melhor: lutar! Chorávamos de alegria, nos abraçávamos. Gritamos a vitória que o machismo institucionalizado e revigorado em um conservadorismo quase fundamentalista tentou impedir.

Fomos chamadas de incapazes, de hereges, de marionetes, de terroristas, de assassinas, de covardes, de destemperadas, de ladras e mentirosas. Só não nos condenaram a queimarmos em praça pública ou nos guilhotinaram por impedimento dos novos tempos, ainda que as trevas tenham mandado seu recado. Se pudessem nos condenar teriam feito, sim! Vontade não faltou! Fariam como caçaram e mataram mulheres acusadas de bruxaria na Idade Média; queimaram trabalhadoras em Nova Yorque, torturaram e estupraram no Araguaia e nos porões das ditaduras latino-americanas. Em todos estes momentos históricos, a convicção/ motivação era a mesma: as mulheres não podem ousar decidir, as mulheres não podem ousar construir um mundo diferente, as mulheres não podem ocupar os espaços de poder e decisão com a ousadia de transformar a sua vida e a vida dos homens; as mulheres não podem ser protagonistas de uma nova história; não para substituir a história dos homens, mas para compartilhar e refundar novos marcos de cultura, de civilização, de política.

No auge, da festa das mulheres e do povo, sem abrir mão de comemorar com tudo que merecemos, é necessário pontuar que a campanha eleitoral de cunho fundamentalista-religioso que vivenciamos, a mesma de sempre com especial conservadorismo, ceifou a participação mais efetiva das mulheres e dos movimentos feministas de uma intervenção necessária e fundamental neste momento histórico. Não pudemos nos mostrar com todas as nossas forças e armas, embora tenhamos nos empenhando, diuturnamente, para enfrentar a onda de achincalhamentos da qual Dilma e todas nós, mulheres brasileiras, fomos alvo durante os últimos meses.

E o que faltou na festa?

Faltou a pauta nacional das mulheres com Dilma, faltaram as cores mais fortes do feminismo, faltaram as históricas bandeiras femininas explicitadas e melhor explicadas. Tivemos que burlar o preconceito e pactuar um novo jeito de fazer campanha e de nos mostrar na campanha, algumas vezes até ficando nos bastidores assistindo como os artistas, os sindicalistas, os ecologistas, os professores e professoras universitárias se articulavam e se mostraram com cara própria e nos emocionavam a todo instante. As mulheres, inclusive as feministas, estavam em todos estes momentos, ressaltando a importância de eleger a primeira mulher presidente do maior país da América Latina. Sob este ponto de vista, acredito que realçamos a necessidade de compreender a luta das mulheres e seu entrelaçamento com a luta do povo.

No Brasil, apesar de todos os avanços, o movimento feminista ainda padece de solidão política. Principalmente em tempos de campanhas eleitorais acirradas, os discursos feministas e dos movimentos de mulheres defrontam-se com forte oposição social, partidárias e religiosas o que faz com que o campo formal de alianças dos feminismos e das feministas fique muito reduzido.

É inegável que a atuação dos movimentos de mulheres tem sido decisiva para o surgimento de direitos no campo da reprodução e da sexualidade. Temos dado importantes subsídios para a construção de um novo direito, uma nova linguagem, ainda considerada um corpo estranho na cultura e na legislação, que ainda têm como registro forte componente de moral religiosa, com a conseqüente punição da sexualidade. A trajetória de luta do movimento de mulheres nos levaria a reconhecer, de um lado, o acerto de suas estratégias e, de outro, seus limites e a necessidade de novos avanços e maiores investimentos, inclusive no campo conceitual e político.

E faltou entregar o manifesto das Mulheres com Dilma em grande estilo, faltou transformar toda a nossa eloqüência e convicção presentes no mundo virtual em matéria de primeira hora, nos programas de rádio e televisão, por exemplo; faltou enxergar e tomar as devidas providências à conquista do voto feminino, ainda no primeiro turno. Longe de transformar a eleição da Dilma em coisa de mulher, galvanizá-la em torno do conjunto das forças aliadas. Faltou deixar que o Estado e os candidatos a dirigentes do Estado pudessem discutir o aborto, a eutanásia, a união civil entre homossexuais no âmbito do Estado.

Algumas lições da vitória

Apesar de brutalmente criminalizado, o aborto se tornou tema da sociedade e seu debate no Brasil se mostrou como um campo político de debate específico nas questões relativas à sexualidade e à reprodução. Ainda não podemos mensurar a força que este campo apresenta e apresentará. Talvez, ainda estejamos insistindo num debate dualista/ mecanicista que aparta direitos individuais e sociais num abismo teórico e político irreconciliável. Talvez este seja o terreno fértil para a nossa ardorosa defesa de que não poderíamos fazer nada que atrapalhasse ou manchasse a imagem de nossa candidata. Resta saber se isso sobreviverá às eleições e ao debate mesquinho travado contra as mulheres e a sociedade ou se isso, de fato, foi apenas uma sofrível tática para enfrentar os sabujos da Direita perniciosa.

Apartamos direitos individuais e sociais, apartamos liberdades sociais e subjetividades. Sabemos – e como sabemos – que longe de se apartarem; estes se complementam dialéticamente. E nosso papel é o de reinvindicar uma nova subjetividade feminina , não a domesticada pelos feminismos liberais e burgueses, mas, uma subjetividade calcada na real valorização – e não apenas, tolerância – às mais diversas diferenças que longe de ser um impedidor na concretização de projetos mais unitários e gerais, é característica peculiar para construção/ concretização da nova sociedade que sonhamos.

Não quero cometer o possível equivoco político de dizer que estávamos desarticuladas, longe de mim dizer ou acreditar nisso. Mas acho que no auge do debate enviesado sobre o aborto ficamos muito receosas com a possibilidade dessa questão atrapalhar a campanha de nossas (os) deputadas (os), governadores (as), senadores (as) e futuros (as) candidatos (as) aos próximos pleitos. Fato que fez com que fôssemos impedidas de ir às ruas, assumindo nossa identidade feminista. Foi uma violência contra os movimentos feministas e nós assumimos o ônus!

Os movimentos feministas, nessas últimas décadas, vêm dando muitas contribuições para a elaboração do aborto, como novo direito: a produção teórica de feministas; o trabalho de juristas democráticos; os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos; a ação política dos movimentos de feministas e de mulheres, dos partidos políticos progressistas e de outros movimentos sociais que se associam nas questões referentes à equidade de gênero.

Fizemos campanha, sem abrir mão de nossas convicções, mas, também sem alardeá-las. Talvez tenhamos nos tornado até mais feministas depois de tudo que sofremos nestes últimos meses. Recuamos no discurso, encobrimos nossas opiniões mais concretas sobre o aborto, as religiões e o Estado laico para que nada pudesse impedir a eleição da primeira mulher, presidente deste imenso país.

O que virá depois da vitória?

Acredito que fizemos o correto. Mas, temos que analisar como agir e contribuir para que Dilma possa governar. E se posicionar mediante do receituário anti-aborto que tramita no Congresso Nacional. Como o Governo brasileiro e a base aliada, da qual fazemos parte, se posicionarão frente a série de projetos – coroado pelo malfadado Estatuto do Nascituro – que tramitam no Congresso Nacional? Como compartilhar com os (as) legisladores (as), juristas, lideranças nacionais o incômodo de falar sobre o aborto, este invisível, murmurado e grande tabu? Colocaremos a cara a bater? Muitas mulheres colocam! Perdem até eleições ganhas para mensagens no celular dos (as) eleitores (as) na noite anterior ao dia da eleição.

Erro político-tático das mulheres? Supremacia dos direitos individuais frente aos projetos nacionais? O projeto nacional que construímos, ao longo de décadas, não dá conta de direitos individuais desta natureza? Não incorpora as demandas, a ética e a lógica das mulheres, construídas individual e coletivamente?

Não será, apenas, a maioria absoluta no Congresso Nacional que dará à Dilma e ao nosso projeto condições de governabilidade. Precisamos ocupar, ainda mais as ruas, precisamos fazer agora e nos próximos anos o que o processo eleitoral do estado burguês de direito nos impediu de fazer. Aprofundar a agenda política junto às mulheres e aos movimentos sociais e sindicais. O mesmo povo na rua que garantiu a eleição, será o povo que garantirá a consolidação deste projeto de milhões de brasileiros e brasileiras e que contribui, de maneira fundamental, para a consolidação da democracia e do desenvolvimento latino-americano.

Minha impressão é, que apesar de vitoriosas e vitoriosos, o tema do aborto, longe de ser conversa de feminista que não tem o que fazer e não sabe como fazer política; se associa também aos demais temas centrais das lutas feministas que se entrelaçam às lutas mais gerais de nosso povo e de nossas mulheres e meninas e meninos. Quando os movimentos feministas, brasileiro e internacional conferem ao aborto o título de questão de saúde pública, fica claro que fazem uso de um instrumento político-tático de tornar, ao mesmo tempo, o tema palatável aos setores mais populares e conservadores, pois a temática que une os mais diferentes feminismos – dos sexistas aos emancipacionistas – separa os movimentos sociais, os partidos políticos, a militância política e religiosa; separa as próprias mulheres.

E foi com os olhos voltados para esta peculiar característica que a Direita foi capaz de jogar uma bomba de efeito moral no povo brasileiro, desqualificando tudo e todas (os) que se aproximassem do discurso e dos movimentos feministas e estes ficaram impedidos de promover uma pauta política nacional, diferente do que vínhamos fazendo ao longo de nossa recente democracia. O machismo mostrou sua face mais cruel. Através da violência simbólica de que as mulheres devem se subalternizar ao mando do machismo, do patriarcalismo, do racismo, do homofobismo, dos fundamentalismos, uma aliança preconceituosa de interesses tentou fincar suas garras e manchar a vida de uma mulher que revolucionou, que foi duramente torturada pelos porões da ditadura militar e que não se curvou, não deletou companheiros (as) e, principalmente, não abriu mão de suas convicções. Esta é Dilma Vana Rousseff, a primeira mulher presidente do Brasil!

Não nos iludamos, viveremos anos de uma intensa correlação de forças; complexa, de muitos conflitos. A direita institucionalizada e capitaneada pelo PSDB e pelo DEM , a chamada Opus Dei brasileira, a TFP, a burguesia mais conservadora em sua pior face moral, política e econômica detém uma receita secular de fazer oposição ao que não lhe é espelho. Com certeza não conseguirão fazer uma oposição programática, pois, neste caso, não cabe ódio, não cabe a desqualificação pessoal e machista e não cabem a difamação e a calúnia, armas poderosas quando operadas por quem as utilizou tantas vezes.

Nós, mulheres, amanhecemos o dia primeiro de novembro, com a auto-estima política elevada e falando às nossas filhas, mulheres de hoje e de amanhã, que assim como nós, chegará o dia, debaixo de muita luta e de muita garra, que elas também poderão ser o quiserem ser, amarem quem quiser, decidir sobre os seus corpos e o momento de se tornarem mães com a garantia de um Estado Laico, protegido por uma sociedade avançada, justa e democrática.

Chegará o dia em que todas as mulheres, indubitavelmente, obterão o direito que ninguém gostaria de usar, mas, que nos é direito devido. Nenhuma mulher engravida para experimentar o aborto. Nenhuma! Não queremos ter direito ao aborto para abortar inexoravelmente. Queremos ter direito sobre o nosso corpo, inclusive, ao aborto, quando necessário. Pois quando necessário, exercendo nossa liberdade de escolha, ninguém poderá nos impedir.

É com as forças do povo que Dilma e as mulheres contam para seguir adiante. E tenho a convicção de que não as abandonaremos!

Viva Dilma! Viva as mulheres! Viva o povo brasileiro!


Nágyla Drumond é Socióloga, Professora substituta (UECE) e Secretária Estadual de Mulheres do PCdoB/CE 

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