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Criado 'para durar um ano', Corinthians festeja centenário

Há cem anos, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, alguns operários fundavam mais um clube de futebol, inspirados por um time inglês que veio excursionar no Brasil. Era mais um time que se formava, como centenas de outros, no rastro da passagem de algum time estrangeiro que vinha para cá fazer exibições. Em poucos meses o time morria, desaparecia da várzea. Mas esse clube fundado por operários sobreviveu e tornou-se um gigante. 

Em 1910 o movimento operário na Europa vivia um momento de refluxo. Vladímir Ilitch Lênin, exilado na França, escrevia "As Lições da Revolução", sobre a derrota sofrida pelos trabalhadores em 1905 na Rússia. O livro, editado pela primeira vez em 30 de outubro (12 de novembro no calendário atual) de 1910 discorria sobre os grandes avanços que o proletariado russo obteve em 1905, assim como advertia que "as grandes vitórias do proletariado revelaram-se meias vitórias porque o poder tsarista não foi derrubado".

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O capitalismo na Europa desenvolvia as contradições que viriam a gerar a Primeira Grande Guerra, iniciada quatro anos depois, em agosto de 1914.

Longe da Rússia, da França, da Europa, os paulistanos viviam a expectativa de testemunhar mais uma passagem do cometa Halley. A sua aproximação, em 19 de maio, causou pânico no mundo inteiro. Diziam que o mundo estava chegando ao fim. Os 375 mil paulistanos iam às ruas à noite para espiar o espetáculo celeste, uns com pânico, outros com curiosidade.

Milhares deles eram operários. Muitos eram estrangeiros, imigrantes que estavam começando uma nova vida no Brasil. Já viviam a exploração cotidiana feita pelos capitalistas locais. Lutavam pela jornada de trabalho de oito horas, por melhores salários e por melhores condições de trabalho.

O futebol de então era coisa de elite. Foi trazido por filhos de burgueses que estudavam na Europa, embora muitos já o conhecessem a partir das visitas dos navios ingleses aos portos brasileiros. Copiava-se no Brasil a estrutura do futebol do Reino Unido, que serviu de espelho para a criação de clubes e ligas. Amador, o esporte atraia muita gente, que frequentava os pequenos estádios vestida até de fraque e cartola.

São Paulo tinha sua liga, formada por clubes de elite. Clubes como AA das Palmeiras, Internacional, São Bento, Paulistano, Mackenzie, Germânia e São Paulo Athletic Club eram os donos da bola de então. Eram todos clubes dos barões do café, dos donos de indústrias. O futebol pertencia a eles, não ao povo e não se permitia que negros jogassem bola. Negros só jogavam bola na várzea.

No mês de agosto de 1910, pouco depois de se apagar o último rastro da passagem do Halley, um time inglês veio se exibir no Brasil, a convite do Fluminense do Rio de Janeiro. Esse time era o Corinthian Football Club, equipe famosa por toda a Europa, que se orgulhava de jogar apenas por amor ao esporte, de forma amadora.

A vitória por 2 a 0 do Corinthian's Team sobre a Associação Athletica das Palmeiras, um dos mais fortes times da elite na época, deu em alguns operários da estrada de ferro São Paulo Railway a ideia de criar um novo clube de futebol.

Às 20h30 de 1º de setembro, sob a luz dos lampiões de gás que iluminavam fracamente as ruas de São Paulo, os pintores de casa Joaquim Ambrósio, Antônio Pereira e César Nunes; o sapateiro Rafael Perrone, o motorista Anselmo Correia, o fundidor Alexandre Magnani, o macarroneiro Salvador Lopomo, o trabalhador braçal João da Silva e o alfaiate Antônio Nunes fundaram um novo clube .

Sem nome de início, seus novos pais pensaram em batizá-lo com o nome de Santos Dumont ou Carlos Gomes. Ambrósio, em uma reunião dois dias depois, sugeriu que se fizesse uma homenagem ao Corinthian Football Club, por ter sido ele a fonte que inspirou a criação do clube. Tomava vulto assim o clube do povo, que traria o futebol para o povo.

O Sport Club Corinthians Paulista entrou em campo pela primeira vez na várzea, em 10 de setembro de 1910, um sábado, pouco dias depois de ganhar um nome. Valente, Perrone (capitão), Atílio, Lepre, Alfredo, Police, João da Silva, Jorge Campbell, Luís Fabbi, César Nunes e Joaquim Ambrósio participaram da derrota por 1 a 0 para o União da Lapa, na casa do adversário.

As primeiras camisas tinham sido compradas no centro da cidade e os calções fabricados por costureiras do Bom Retiro, a partir de sacos de farinha doados por comerciantes. As cores do uniforme são desconhecidas. Alguns historiadores dizem que as primeiras camisas eram creme e os calções brancos.

O falecido jornalista e escritor Lourenço Diaféria, corinthiano fanático, sustentou em um de seus livros que as camisas eram brancas — mais fáceis de se encontrar e mais baratas, além de serem iguais à do Corinthian inglês — e os calções eram creme, pois eram feitos com sacos de farinha doados pelos comerciantes do mercado central de São Paulo.

A primeira vitória do time aconteceu no dia 14 de setembro, uma quarta-feira. Com gols de Luís Fabbi e Jorge Campbell, o time venceu o Estrela Polar por 2 a 0, na várzea do Bom Retiro.

Vários dos primeiros jogadores do Corinthians, entre eles Amílcar e Francisco Police, defendiam a Associação Athletica Botafogo, time de várzea do Bom Retiro fechado pela polícia. Foi desse time que veio Neco, o primeiro grande ídolo do time, irmão de um de seus fundadores, Carlos Nunes.

Entre 1910 e 1912, a equipe jogou apenas na várzea e mandou seus jogos no Lenheiro, um terreno alugado de um vendedor de lenha e capinado pelos próprios jogadores, entre as ruas José Paulino e Prates, diante do Parque da Luz.

As treze pessoas que sacramentaram a fundação do Sport Corinthians Paulista não imaginavam que o clube se transformaria em um gigante. Muitos dos sócios e torcedores do Corinthians eram imigrantes da Itália, Espanha e Portugal, o que era muito comum no bairro do Bom Retiro no começo do século.

O processo imigratório no início do século 20 estava em grande velocidade: milhares de imigrantes europeus chegavam em São Paulo para trabalhar na crescente indústria paulista, e alguns se instalavam no bairro do Bom Retiro. O primeiro presidente do Corinthians foi o alfaiate italiano Miguel Bataglia.

O primeiro troféu foi o Unione Viaggiatori Italiani (União dos Viajantes Italianos), conquistado por Batista Boni, João Collina e André Lepre em uma corrida de 10 quilômetros, realizada no Parque Antártica, que viria a ser no futuro o local da sede de seu rival.

No futebol, a primeira conquista oficial aconteceu no Campeonato Paulista de 1914, com 100% de aproveitamento e 12 gols de Neco, artilheiro do certame e primeiro grande herói corinthiano. O Galo da Várzea extrapolava seus limites e iniciava assim sua trajetória de glórias.

O time sofreu um forte preconceito nesta época, devido à sua origem social. Os clubes da elite não aceitavam ver o Corinthians levar os trabalhadores para ver seus jogos. Isso deu origem já naquela época ao termo "anti-corinthianismo" e, provavelmente, foi o que fez o clube sobreviver ao momento mais amargo da sua história, quando em 1915 foi impedido de jogar os campeonatos tanto da Liga Paulista de Football quanto o da recém criada Associação Paulista de Sports Athleticos.

O clube hoje exibe em sua sala de troféus milhares de conquistas do futebol e de outros esportes. As mais valorizadas são as taças do campeonato mundial de clubes, dos 4 campeonatos brasileiros, das 3 copas do Brasil, dos 26 campeonatos paulistas e de 15 conquistas internacionais. Apelidos como o Galo da Várzea, Campeão dos Centenários, Campeão dos Campeões marcam a passagem do clube na história do futebol brasileiro. Seus rivais elitistas feneceram.

O distintivo atual foi desenhado pelo artista plástico Francisco Rebolo — que também jogou futebol pelo clube —  nos anos 1930, quando foi fundado o departamento de remo, um dos esportes mais vitoriosos do Corinthians. Os remos e a âncora, vermelhos com a cor do sangue dos atletas, denotam o clube como um espaço poliesportivo importante do Brasil.

Além de Neco, levou aos gramados craques como Domingos da Guia, Baltazar, Casagrande, Sócrates, Carlitos Tevez, Del Debbio, Tuffy, Gilmar, Filó, Dida, Roberto Carlos, Luizinho, Teleco, Gamarra, Idário, Neto, Basílio, Mané Garrincha, Cláudio, Marcelinho Carioca, Oreco, Rincón, Wladimir, Cabeção, Zenon, Biro-Biro, Ronaldo goleiro e Ronaldo atacante. Seu maior craque, Rivelino, jogou em um período ruim do clube, vencendo apenas um torneio Rio-São Paulo.

O zagueiro William, capitão e titular da equipe do Corinthians desde a sua chegada ao clube no início de 2008, aproveitou o centenário para, em carta à torcida, descrever o que considera ser envergar a camisa do Timão:

"É extremamente emocionante você colocar o pé no gramado, olhar para os lados e ver aquela pluralidade de pessoas que naqueles próximos noventa minutos terão só uma missão: a de empurrar seu time. A fiel me ensinou uma lição que levarei para resto da minha vida, a perseverança, ou seja, nunca desistir de um objetivo por mais difícil que ele pareça", diz um dos trechos da carta assinada pelo capitão.

De São Paulo,
Humberto Alencar