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FHC elogia a si e ataca Lula sobre a 'celeuma' do Irã

Em outro de seus inefáveis artigos mensais no Estado de S. Paulo e outros jornais, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirma neste domingo (6) que, "se há setor no qual o Brasil ganhou credibilidade e, portanto, o respeito internacional foi no das relações exteriores". Não, internauta, não se assuste. Não é um elogio ao governo Lula, mas a… FHC. E se conclui com um pequeno serviço à diplomacia americana, contra a brasileira, sobre a crise iraniana.

Por Bernardo Joffily

Reproduzo abaixo o novo artigo do ex-presidente, Política externa responsável. Assim, o internauta poderá verificar pessoalmente a entusiástica admiração do autor pelo governo FHC. E também sua ojeriza às "bazófias" e à "demagogia presidencial", que "não passa de surto de ego deslumbrado" – ainda que, pelo andar das pesquisas, vá eleger sua sucessora.

Além de elogiar a si próprio, FHC constata que "temos credenciais de sobra para exercer uma ação mais efetiva na condução dos negócios do mundo" e "é natural que o Brasil insista em sentar-se à mesa dos tomadores de decisões globais". Mas trabalha contra a diplomacia brasileira ao abordar "a celeuma causada pela tentativa de acordo entre Irã e a comunidade internacional empreendida pelo governo brasileiro".

O veneno do ex-presidente, como o do escorpião, está na cauda. No derradeiro parágrafo, FHC sai-se com esta:

"O levantar de mãos de Ahmadinejad e Lula, à moda futebolística, e as declarações presunçosas do presidente brasileiro, passando a impressão de que havíamos dado um drible nas "grandes potências", digno de Copa do Mundo, reforçaram a sensação de que estaríamos (no que não creio) nos bandeando para o "outro lado". E em política internacional, mais do que em geral, cosi è (se vi pare) ['assim é, se assim parece']."

De que 'lado' está o Brasil

É de fato uma dádiva para o Brasil contar desde 2003 com um presidente cujo "bordão" é que "hoje não nos agachamos mais". E é uma lástima ter tido um presidente que, oito anos depois de deixar o Planalto, continua a se agachar.

Que história é essa de se bandear para o outro lado? De que "lado" está o Brasil? E FHC?

Em um artigo que flerta com a crítica ao unilateralismo (a pretenção dos Estados Unidos pós-Guerra Fria de decidir sozinho os rumos do planeta), essa conclusão deixa entrever o apêndice caudal venenoso de um defensor do alinhamento automático com a grande potência do norte.

O Brasil, o presidente Lula e o Itamaraty deixaram cristalinamente claro de que "lado" estão na crise iraniana. Perfilam do lado da paz, no mundo e no Oriente Médio, do direito das nações ao uso da energia nuclear com fins pacíficos, da condenação dos arsenais atômicos, da busca de uma solução negociada para o contencioso entre o programa nuclear do Irã e as renitentes desconfianças do bloco de países polarizado pelos EUA. Não perfilam com os que desejam o Irã confinado em um leprosário. Foram a Teerã e, com a inestimável contribuição da Turquia, firmaram com o governo iraniano um acordo que persegue estes valores e objetivos.

As voltas que a crise deu

Em um primeiro momento, a reação desfavorável de Washington, com a secretária de Estado Hillary Clinton à frente, pareceu fechar as portas abertas pelo Brasil e a Turquia. No dia seguinte ao Acordo de Teerã, os EUA arrastaram os demais membros-permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Reino Unido, França, Rússia e China) na apresentação de um pedido de sanções – embora mitigadas – contra a nação persa.

Porém o mundo continuou a dar voltas, e na segunda-feira passada (31) os incondicionais porém sôfregos aliados israelenses dos EUA no Oriente Médio (possuidores de 100 a 400 ogivas nucleares, no que é um segredo de Polichinelo) entornaram o caldo. Atacaram com sua marinha de guerra uma pacífica flotilha do Movimento Gaza Livre, assassinando pelo menos nove ativistas desarmados, sob a alegação de que eram "apoiadores do terrorismo" desejosos de transformar a faixa de Gaza em "uma base do Irã".

Com sua agressão gratuita e estúpida, Israel jogou por terra a maior parte dos esforços de Hillary. E retonificou as esperanças no futuro do Acordo de Teerã, sem sanções, improcedentes e improdutivas, e visando fazer de toda a região um território livre de armas atômicas.

Quanto a FHC, prefere ficar onde sempre esteve nos seus oito anos de governo: do 'lado' do imperialismo americano e seus pitbull israelense, contra os governos e povos amantes da paz. Problema dele. Para a alegria geral, sua influência parece hoje confinada ao exercício de fel que pratica nos seus artigos mensais.

Veja o que diz o artigo de FHC:

Política externa responsável

A despeito das bazófias presidenciais, que, vez por outra, voltam ao bordão de que "hoje não nos agachamos mais" perante o mundo, se há setor no qual o Brasil ganhou credibilidade e, portanto, o respeito internacional foi no das relações exteriores. Elas sempre foram orientadas por valores e estiveram intransigentemente fincadas no terreno do interesse nacional. A demagogia presidencial não passa de surto de ego deslumbrado, que desrespeita os fatos e mesmo a dignidade do País.

Com exceção dos flertes com o totalitarismo europeu durante o Estado Novo, sempre nos orientamos pela defesa dos valores democráticos, pela busca da paz entre as nações, por sua igualdade jurídica e pela defesa de nossos interesses econômicos. Com toda a dificuldade do período da guerra fria – quando os governos militares se opuseram ao mundo soviético e a seus aliados -, não nos distanciamos do que então se chamava de Terceiro Mundo. Se não nos juntamos propriamente ao grupo dos "não-alinhados", dele sempre estivemos próximos. Terminada a guerra fria, restabelecemos relações com os países do campo socialista, Cuba e China à frente, voltamos a estar mais ativamente presentes na África, apoiamos o Conselho de Segurança da ONU nos conflitos entre Israel e a Palestina, sustentamos a posição favorável à criação de "dois Estados" e o respeito às fronteiras de 1967 e nunca nos solidarizamos com o grito de "delenda Israel" nem com as afrontas de negação do Holocausto.

Seguindo esta mesma linha, assinamos o Tratado de Não-Proliferação de armas atômicas (TNP), com ressalvas quanto à manutenção dos arsenais pelos "grandes", fomos críticos das invasões unilaterais no Iraque e só aceitamos a intervenção no Afeganistão graças à supervisão das ações bélicas pela ONU. A reação ao unilateralismo foi tanta que em discurso na Assembleia Nacional da França cheguei a aludir à similitude entre o unilateralismo e o terrorismo, provocando certo mal-estar em Washington. Procedemos de igual modo na defesa de nossos interesses como país em desenvolvimento. No dia em que se publicarem as cartas que dirigi aos chefes de Estado do G-7 se verá que predicávamos desde então maior regulação financeira no plano global e maior controle do FMI e do Banco Mundial pelos países emergentes. Reivindicamos nossos direitos comerciais na OMC, a começar pelo caso do algodão, e, no caso das patentes farmacêuticas, defendemos vitoriosamente em Doha o ponto de vista de que a vida conta mais que o lucro. Todas estas políticas tiveram desdobramentos positivos no atual governo.

Temos, portanto, credenciais de sobra para exercer uma ação mais efetiva na condução dos negócios do mundo. A hegemonia norte-americana vem diminuindo pelo fortalecimento econômico dos Brics (metáfora que abrange não só os quatro países, mas vários novos atores econômicos), especialmente da China, pela presença da União Europeia e também vem sendo minada pelas rebeliões do mundo árabe e muçulmano, como o próprio governo Obama reconhece. É natural, portanto, que o Brasil insista em sentar-se à mesa dos tomadores de decisões globais. Sendo assim, por que a celeuma causada pela tentativa de acordo entre Irã e a comunidade internacional empreendida pelo governo brasileiro? Há duas ordens distintas de questões para explicar o porquê de tanto barulho. A primeira é a falta de clareza entre a ação empreendida e os valores fundamentais que orientam nossa política externa. A segunda é a forma um tanto retórica e pretensiosa que ela vem assumindo.

Quanto ao primeiro ponto, como compatibilizar o repúdio às armas nucleares com a autonomia decisória dos povos? Esta abrange inclusive o direito ao conhecimento de novas tecnologias, mesmo as "duais", que tanto podem ser usadas para a paz como para a guerra. Em nosso caso, conseguimos, por exemplo, dominar a técnica de foguetes propulsores de satélites (e quem lança satélite pode lançar mísseis). Ninguém desconfia, entretanto, de que a utilizaremos para a guerra, até porque obedecemos às regras do acordo internacional que regula a matéria. Do mesmo modo, dominamos o ciclo completo de enriquecimento do urânio. Mas não cabem dúvidas de que não estamos fazendo a bomba atômica, não só porque nossa Constituição proíbe, mas porque inexistem ameaças externas e porque submetemos o enriquecimento do urânio (guardado o sigilo da tecnologia usada) ao duplo controle de um tratado de fiscalização recíproca com a Argentina e da Agência Internacional de Energia Atômica.

É precisamente isto que falta no caso do Irã: a confiabilidade internacional nos propósitos pacíficos do domínio da tecnologia. E é isso que o governo americano alega para recusar a intermediação obtida, ao reafirmar que a quantidade de urânio já disponível, mesmo descontada a quantidade a ser remetida para enriquecimento no exterior, permitiria a fabricação da bomba. O xis da questão, portanto, seria a obtenção pelo Brasil e pela Turquia de garantias mais efetivas de que tal não acontecerá. Deixando de lado as alegações recíprocas sobre se houve o estímulo americano à ação intermediadora (que para quem quer ter uma posição independente na política externa é de somenos), uma ação eficaz para evitar o confronto e as sanções – posição coerente com nossa tradição negociadora – deveria buscar desfazer a sensação da maioria da comunidade internacional de que o governo iraniano está ganhando tempo para seguir em seus propósitos nucleares.

Neste ponto a retórica dos atores brasileiros parece ter falhado. O levantar de mãos de Ahmadinejad e Lula, à moda futebolística, e as declarações presunçosas do presidente brasileiro, passando a impressão de que havíamos dado um drible nas "grandes potências", digno de Copa do Mundo, reforçaram a sensação de que estaríamos (no que não creio) nos bandeando para o "outro lado". E em política internacional, mais do que em geral, cosi è (se vi pare).