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Política soberana e progresso social pelo novo Brasil

São grandes os desafios com que se defronta o Brasil às vésperas de mais uma sucessão presidencial. A decisão do povo de avançar ou retroceder depende de consciência sobre os grandes temas em debate. Neste artigo, um breve balanço da política externa de Lula e um levantamento de temas das lutas nacionais, democráticas e populares da atualidade.

Por José Reinaldo Carvalho

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva termina seu segundo mandato gozando de imenso prestígio internacional. Projetou-se como líder pelo combate que moveu à pobreza e o esforço para minorar as desigualdades sociais. Nas últimas semanas ele fez o Brasil entrar definitivamente na grande política internacional ao desafiar os Estados Unidos e promover, junto com a Turquia, um acordo com o Irã em torno da controvertida questão nuclear. Indubitavelmente foi uma contribuição para a paz.

O Acordo de Teerã deixou claro que valem mais o diálogo e as tratativas diplomáticas do que as sanções ou a preparação de terreno para agressões militares. E que é possível, à margem de uma linguagem e de atitudes beligerantes do imperialismo estadunidense, construir uma ordem mundial em que os países emergentes desempenhem papel importante.

A movimentação de Lula criou uma saia justa para o governo Obama. Embora o presidente dos Estados Unidos houvesse semanas antes enviado uma carta ao brasileiro estimulando a realização de conversações com o presidente iraniano, os resultados obtidos por Lula desagradaram a Casa Branca. A desenvoltura e a eficácia com que o Brasil atuou acabaram desmascarando a Casa Branca, pois logo se viu que esta não quer acordo. A tônica da sua orientação são as sanções, prelúdio de guerras de agressão. O imperialismo estadunidense não se conforma com o fato de que países soberanos e que exercem seu direito à independência cooperem entre si, entabulem acordos e concertem tratados à margem dos seus ditames. O presidente Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, que tudo fazem para isolar o Irã, estão inconsoláveis, pois o “campônio” Ahmadinejad deu-lhes o desdobro, ampliou suas próprias alianças e os Estados Unidos é que ficaram sozinhos.

No Brasil e em toda a América Latina a ação do presidente Lula sobre a questão nuclear iraniana tem sido vista como o coroamento de uma política externa de afirmação da soberania nacional e de seu engajamento com a paz mundial. Na campanha eleitoral que se inicia, o tema divide opiniões. A candidata apoiada por Lula, a ex-ministra do seu governo, Dilma Roussef, promete dar continuidade ao seu legado também na política externa, enquanto seu oponente, José Serra, candidato das forças neoliberais, questiona o ativismo diplomático presidencial e as opções que têm sido feitas como algo que põe em risco a credibilidade do país.

A política externa do governo Lula granjeou amplo apoio interno. O Itamaraty tem sido bem sucedido na busca de um novo lugar e um novo papel no mundo para o Brasil, num quadro internacional carregado de ameaças de espoliação econômica e imposições políticas pela globalização financeira e a política das grandes potências, principalmente do imperialismo norte-americano.

Novo papel no mundo

O governo Lula consolidou e aprofundou os traços de uma política externa autônoma, pacifista e democrática, universalista, multilateral e ideologicamente vinculada ao nacional-desenvolvimentismo, às melhores tradições da diplomacia brasileira, que incorporou há décadas os princípios da autodeterminação e da não intervenção, princípios aliás inscritos no artigo IV da Constituição da República, promulgada em 1988.

Baseado na percepção do papel do Brasil no mundo não mais como país dependente e subordinado aos ditames dos Estados Unidos, mas como nação soberana, embora ainda vulnerável, com vontade e interesses próprios, em transição para o status de potência emergente, o Itamaraty no governo Lula formulou e põe em prática uma política exterior “ativa e altiva”, na expressão do seu condutor, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.

O vetor principal da política externa é o projeto de desenvolvimento nacional, hoje concebido nos marcos de uma política de integração continental e de formação de bloco alternativo ao hegemonismo da grande potência. Nas condições do mundo contemporâneo, o Brasil fez a opção, simultaneamente ideológica e pragmática, pelo universalismo e o multilateralismo, rejeitando na prática uma espécie de “destino manifesto” de país eternamente amarrado pelo pan-americanismo imperialista. Em lugar da passividade e da expectativa das decisões das grandes potências, o Brasil optou pela assertividade, compreendendo como a ação internacional pode condicionar o êxito de um novo projeto nacional de desenvolvimento, ainda em seus primeiros passos.

Onde mais se observou o universalismo e o multilateralismo do governo do presidente Lula foi na postura política geral, no que se refere ao discurso e à agenda adotada, na eleição de novas parcerias estratégicas, na prioridade à integração continental e nos novos enfoques para o comércio internacional, combatendo o protecionismo, assim como na defesa da paz e do direito internacional. Nesses pontos concentra-se o feixe de contradições com a política dos EUA e demais potências imperialistas.

O universalismo e o multilateralismo da política externa brasileira ganharam fôlego com o estabelecimento de parcerias estratégicas com a China, a Rússia, a Índia e a África do Sul e a atenção dedicada ao Oriente Médio. É forte a percepção de que a hegemonia estadunidense está em crise e de que é inexorável a tendência a mudanças na correlação de forças no mundo. Nesse quadro, novas parcerias e alianças são indispensáveis como novo âmbito de coordenação política. Abrem-se com isso novas oportunidades para as relações do Brasil com outros povos e nações. A África, em particular os países lusófonos, mas não só, constituiu um novo foco da presença internacional do Brasil. Aqui entrecruzam-se importantes aspectos sócio-culturais e históricos. Trata-se de um âmbito para o exercício da solidariedade internacional que não deve ser subestimado, sem descurar os aspectos estratégicos envolvidos nessa relação, haja vista que o Brasil e todo o ocidente africano, estendendo-se até a área austral, são banhados pelo Oceano Atlântico.

Prioridade para a América Latina

A opção estratégica mais importante e eficaz do governo Lula em política externa dirigiu-se para a América Latina e especialmente para o sul do continente. Foram inúmeras as iniciativas do Brasil para fortalecer as relações com os países do entorno, como para levar adiante e consolidar o processo de integração em curso, especialmente o Mercosul. Já no início do primeiro mandato, o Brasil desempenhou papel importante para inviabilizar o projeto neocolonialista da ALCA. Lula incrementou as relações bilaterais com os países da região, visitando ou recebendo todos os chefes de Estado sul-americanos, sendo inúmeras as iniciativas postas em prática nesse sentido – Mercosul fortalecido e ampliado, Unasul, Conselho de Defesa, Banco do Sul, Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, entre outras. Nesse marco cresceu o protagonismo brasileiro na luta contra as ingerências externas, a instalação de bases militares estadunidenses, os golpes, assim como estreitaram-se os laços com países revolucionários e antiimperialistas, nomeadamente Cuba, Venezuela e Bolívia.

Para a esquerda e o movimento popular que atuam na frente externa com uma perspectiva antiimperialista, continua sendo uma tarefa central apoiar e reforçar o caráter independente, assertivo, solidário e multilateralista da política externa brasileira, além da vigilância e da crítica quando se manifestarem ambigüidades e vacilações. O Brasil pode e deve ser um aliado das forças revolucionárias e antiimperialistas mundiais e dar uma rica contribuição para a mudança da correlação de forças no mundo e o combate por uma nova ordem política e econômica internacional, baseada na soberania dos povos e nações, na defesa da paz e na solidariedade internacionalista entre as forças progressistas.

A política externa de Lula e a que as forças progressistas desejam construir para o futuro governo é um degrau a mais no esforço para focar a ação internacional do país na luta pelo desenvolvimento nacional, com caráter democrático e popular, nas condições atuais do Brasil, da América Latina e do mundo. Trata-se de uma evolução e um aprofundamento de uma diplomacia patriótica, correspondente ao amadurecimento do Estado nacional brasileiro, que consolida a inserção do país no mundo com profissionalismo, realismo, boa dose de pragmatismo e autonomia, combinando a defesa dos interesses nacionais com as aspirações da humanidade por um mundo melhor, uma política externa que adicione elementos progressivos no processo de acumulação de forças da luta pela emancipação nacional e social do povo brasileiro.

Tudo o que foi descrito acima exemplifica uma experiência original e inovadora da esquerda brasileira e justifica o ativo apoio que esta proporcionou ao governo Lula. A política externa simbolizou a luta entre a mudança e o retrocesso, entre os esforços pela implementação de um projeto nacional de desenvolvimento democrático, popular e patriótico e a contra-ofensiva conservadora para voltar ao modelo neoliberal, sob a égide da burguesia financeira e monopolista associada ao imperialismo.

Democracia e participação

Mas a caracterização positiva dos dois mandatos presidenciais de Lula não se restringe ao âmbito da política externa. Este rico período da vida nacional também pode ser considerado como de maior democracia, de busca da integração regional e esforços para combater as desigualdades sociais, através de políticas públicas para favorecer a população mais pobre, de uma política de valorização progressiva do salário mínimo e pela universalização dos direitos sociais. Mesmo sem ainda ter rompido com os cânones das políticas macroeconômicas ditadas pelo capital financeiro internacional, Lula tentou por caminhos tortuosos retomar o crescimento, retirar o país da estagnação e promover o desenvolvimento.

É significativo o aprofundamento da democracia e que o movimento social esteja exercendo protagonismo na cena política. Isto se revela principalmente nas articulações unitárias das centrais sindicais de trabalhadores para as lutas pela redução da jornada de trabalho sem redução do salário, pela valorização do trabalho, contra as propostas do patronato de reformas regressivas no sistema previdenciário, pela manutenção das conquistas das leis laborais. Revela-se ainda nas ações da Coordenação dos Movimentos Sociais, das organizações estudantis, juvenis e femininas por suas reivindicações próprias e por uma maior participação do povo nos destinos do país. Nos últimos oito anos desenvolveu-se original experiência de democratização da elaboração das políticas públicas, com a realização das conferências nacionais sobre saúde, educação, esporte, urbanização, direitos humanos, direitos da mulher, direitos das crianças e adolescentes, questões da juventude, combate ao trabalho degradante, etc., em cuja preparação e realização participam centenas de milhares de pessoas. Não poucas vezes, o presidente participou nas plenárias finais de ditas conferências, assumindo oficialmente compromissos com os movimentos sociais organizados.

Reformas estruturais

Em face do embate eleitoral de 2010, o Brasil encontra-se diante de grandes desafios, destacadamente alcançar um elevado nível de desenvolvimento, com valorização do trabalho e distribuição de renda. Este objetivo está associado a outro, ainda mais significativo, qual seja o de transformar o Brasil numa grande e forte nação soberana, progressista e justa.

São muitas as mazelas provocadas pelo neoliberalismo e ainda não superadas, são fortes os condicionamentos impostos pelo capital financeiro internacional, cujos organismos ainda pretendem impor um modelo macroeconômico que assegure a dependência e mantenha o país no atraso, pagando dívidas, restringindo seu mercado interno, contendo o investimento público, adaptando-se aos ciclos econômicos dos países capitalistas desenvolvidos. Mais do que nunca é necessário combater o dogma de que o mercado decide tudo e acreditar na capacidade indutora do desenvolvimento de um Estado soberano nacional, democrático e popular, em sua capacidade de planejamento e regulação. É indispensável compreender que não pode haver estabilidade macroeconômica em detrimento da justiça social, da valorização do trabalho, da universalização dos direitos, da preservação e aperfeiçoamento das conquistas laborais, valorização permanente do salário mínimo e adoção da jornada de trabalho de 40 horas semanais sem redução dos salários.

Outro dogma a superar diz respeito à confusão que se faz entre estabilidade macroeconômica e arrocho fiscal, metas rígidas de inflação, taxas de juros elevadas, câmbio totalmente flutuante e independência do Banco Central.

Os dois mandatos presidenciais de Lula constituíram o primeiro passo na direção do desenvolvimento. O povo brasileiro percebe que pode ir mais além, avançar, no sentido de obter mais conquistas e abrir caminho para sua emancipação nacional e social.

Reformas estruturais estão na ordem do dia. Reforma política ampla e democrática, que assegure o pluralismo partidário, através do voto proporcional, universal, direto e secreto, que combine democracia representativa e democracia direta, com a adoção de mecanismos de consulta popular para a decisão sobre os grandes temas de interesse nacional. O financiamento público das campanhas eleitorais é essencial para afastar a influência do poder econômico; reforma educacional que priorize a educação pública e gratuita, garantindo elevada qualidade e seu caráter científico, crítico e laico; reforma agrária, novo modelo de desenvolvimento da agricultura, combate ao latifúndio, aos especuladores e reforma urbana, que humanize a vida nas cidades; reforma dos meios de comunicação de massas, combatendo o monopólio exercido pelas grandes redes de comunicação nacionais e internacionais. Reforma do sistema de saúde, defesa do meio ambiente, combate às desigualdades regionais, defesa da cultura nacional e popular, prática dos desportos em massa são reivindicações que aparecem com força nas plataformas e propostas dos movimentos sociais no período que antecede o embate eleitoral.

A efervescência política e social que vive o Brasil não está desvinculada de todo o processo de intensas transformações políticas e sociais em curso na América Latina. Corresponde a uma etapa do seu desenvolvimento político que uma vez completada poderá abrir caminho para novos saltos na trajetória histórica, acumular consciência, força, mobilização e organização no rumo da emancipação nacional e social do seu povo, o rumo do socialismo.

*José Reinaldo é jornalista, editor do Portal Vermelho