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Pacto Brasil-Irã seguiu todos os itens propostos pelos EUA

O jornal Folha de S. Paulo obteve a íntegra da carta que o presidente norte-americano Barack Obama enviou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A comparação da carta com o teor do acordo formalizado recentemente entre Brasil, Turquia e Irã, revela que o acordo segue todas as solicitações do documento assinado por Obama. A constatação aumenta ainda mais a desconfiança sobre os reais motivos que estariam levando as potências ocidentais a persistir na política de sanções ao Irã.

O acordo nuclear entre o Brasil, a Turquia e o Irã segue, ponto a ponto, todas as solicitações que o presidente Barack Obama havia exposto em carta a seu colega Luiz Inácio Lula da Silva, datada de 20 de abril, apenas três semanas antes, portanto, da viagem de Lula ao Irã, da qual resultou o acordo.

A Folha obteve, com exclusividade, cópia integral da carta, na qual Obama escreve que o objetivo era oferecer "explicação detalhada" de sua perspectiva "e sugerir um caminho a seguir". Brasil e Turquia seguiram o caminho, conforme se comprova pela comparação entre os itens expostos por Obama e os que constam do acordo.

É natural, por isso, que haja perplexidade na diplomacia brasileira com a reação negativa de Washington ao acordo, antes e depois de o Irã ter formalizado o entendimento por meio de carta à AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica).

Primeira coincidência: Obama refere-se elogiosamente à proposta que a AIEA apresentara ao Irã, em outubro passado. "A proposta da AIEA foi modelada para ser justa e equilibrada, e para que ambos os lados ganhem confiança", escreve Obama.

O acordo Brasil-Turquia-Irã segue o molde proposto pela AIEA. Prevê, tal como especificava Obama na carta, que o Irã transfira 1.200 quilos de LEU (iniciais em inglês para urânio levemente enriquecido) para outro país.

"Quero enfatizar que este elemento é de fundamental importância para os EUA." A carta de Obama pede, ainda, um "papel central para a Rússia", o que também consta do acordo, na medida em que Moscou será responsável pelo enriquecimento do urânio a ser enviado ao Irã, em troca de seu LEU.
O presidente dos EUA queixa-se de que o Irã havia rejeitado a proposta da agência tanto em janeiro como em fevereiro deste ano e insistia em reter o LEU no próprio território iraniano. O acordo com Brasil e Turquia prevê o envio do LEU à Turquia, em vez de retê-lo no Irã.

Porta Aberta

Mais: o Irã deixou de exigir a simultaneidade entre a entrega de seu urânio levemente enriquecido e o recebimento do urânio enriquecido a 20%, suficiente para reatores de pesquisa, mas insuficiente para fabricar a bomba.

A carta de Obama, aliás, era específica e forte na menção à Turquia: "Gostaria de estimular o Brasil a deixar claro ao Irã a oportunidade representada por esta oferta [da AIEA] de depositar seu urânio na Turquia, enquanto o combustível nuclear está sendo produzido".
É rigorosamente o que consta do acordo de Teerã. Por fim, Obama cobra que, "para começar um processo diplomático construtivo, o Irã tem que transmitir à AIEA um compromisso construtivo de engajamento por meio de canais oficiais". Foi o que Irã fez na segunda-feira, ao encaminhar à AIEA a carta em que se compromete a cumprir o acordo firmado com Brasil e Turquia.

O compromisso com a AIEA, a entidade que pode dar validade jurídica ao acordo, constava também do documento Brasil/Irã/ Turquia. A carta afirma ainda que os EUA, "enquanto isso" [enquanto durarem as gestões turco-brasileiras], continuariam a buscar sanções ao Irã, mas deixa claro que o presidente americano "manterá a porta aberta para o engajamento com o Irã".

A primeira afirmação correspondeu aos fatos: no dia seguinte ao anúncio do acordo em Teerã, Washington divulgava na ONU pacote de sanções com apoio dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (Rússia, China, França e Reino Unido, além dos EUA). Mas a porta não foi mantida aberta, pelo menos não até agora.

Leia abaixo a íntegra da carta de Obama a Lula:

"Gostaria de agradecê-lo por nossa reunião com o primeiro-ministro Erdogan, da Turquia, durante a Conferência de Cúpula sobre Segurança Nuclear. Dedicamos algum tempo ao Irã, à questão da provisão de combustível nuclear para o Reator de Pesquisa de Teerã (TRR), e à intenção de Turquia e Brasil quanto a trabalhar para encontrar uma solução aceitável. Prometi responder detalhadamente às suas ideias, refleti cuidadosamente sobre a nossa discussão e gostaria de oferecer uma explicação detalhada sobre minha perspectiva e sugerir um caminho para avançarmos.

Concordo com você em que o TRR representa uma oportunidade para abrir caminho a um diálogo mais amplo no que tange a resolver preocupações mais fundamentais da comunidade internacional com respeito ao programa nuclear iraniano em seu todo. Desde o começo, considerei a solicitação iraniana como uma oportunidade clara e tangível de começar a construir confiança mútua e assim criar tempo e espaço para um processo diplomático construtivo. É por isso que os Estados Unidos apoiaram de forma tão vigorosa a proposta apresentada por Mohamed El Baradei, o ex-diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

A proposta da AIEA foi preparada de maneira a ser justa e equilibrada, e para permitir que ambos os lados ganhem confiança. Para nós, o acordo iraniano quanto a transferir 1.200 quilos de seu urânio de baixo enriquecimento (LEU) para fora do país reforçaria a confiança e reduziria as tensões regionais, ao reduzir substancialmente os estoques de LEU do Irã. Quero sublinhar que esse elemento é de importância fundamental para os Estados Unidos. Para o Irã, o país receberia o combustível nuclear solicitado para garantir a operação continuada do TRR a fim de produzir os isótopos médicos necessários e, ao usar seu próprio material, os iranianos começariam a demonstrar intenções nucleares pacíficas. Não obstante, o desafio continuado do Irã a cinco resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas que ordenam o final de seu programa de enriquecimento de urânio, estávamos preparados para apoiar e facilitar as ações quanto a uma proposta que forneceria combustível nuclear ao Irã usando urânio enriquecido pelo Irã uma demonstração de nossa disposição de trabalhar criativamente na busca de um caminho para a construção de confiança mútua.

No curso das consultas quanto a isso, reconhecemos também o desejo de garantias, da parte do Irã. Como resultado, minha equipe se concentrou em garantir que a proposta da AIEA abarcasse diversas cláusulas, entre as quais uma declaração nacional de apoio pelos Estados Unidos, a fim de enviar um claro sinal do meu governo quanto à nossa disposição de nos tornarmos signatários diretos e até mesmo potencialmente desempenharmos um papel mais direto no processo de produção do combustível; também ressaltamos a importância de um papel central para a Rússia e da custódia plena da AIEA sobre o material nuclear durante todo o processo de produção de combustível. Na prática, a proposta da AIEA oferecia ao Irã garantias e compromissos significativos e substanciais da parte da AIEA, dos Estados Unidos e da Rússia. O dr. El Baradei declarou publicamente no ano passado que os Estados Unidos estariam assumindo a vasta maioria do risco, na proposta da AIEA.

Como discutimos, o Irã parece estar seguindo uma estratégia projetada para criar a impressão de flexibilidade sem que concorde com as ações que poderiam começar a gerar confiança mútua. Observamos os vislumbres de flexibilidade transmitidos pela Irã a você e a outros, enquanto reiterava formalmente uma posição inaceitável à AIEA, por meio dos canais oficiais. O Irã continuou a rejeitar a proposta da AIEA e insistiu em reter em seu território o urânio de baixo enriquecimento até a entrega do combustível nuclear. Essa é a posição que o Irã transmitiu formalmente à AIEA em janeiro e uma vez mais em fevereiro de 2010.

Compreendemos pelo que vocês, a Turquia e outros nos dizem que o Irã continua a propor a retenção do LEU em seu território até que exista uma troca simultânea de LEU por combustível nuclear. Como apontou o general [James] Jones [assessor de Segurança Nacional da Casa Branca] durante o nosso encontro, seria necessário um ano para a produção de qualquer volume de combustível nuclear. Assim, o reforço da confiança que a proposta da AIEA poderia propiciar seria completamente eliminado para os Estados Unidos, e diversos riscos emergiriam. Primeiro, o Irã poderia continuar a ampliar seu estoque de LEU ao longo do período, o que lhes permitiria acumular um estoque de LEU equivalente ao necessário para duas ou três armas nucleares, em prazo de um ano. Segundo, não haveria garantia de que o Irã concordaria com a troca final. Terceiro, a "custódia" da AIEA sobre o LEU no território iraniano não nos ofereceria melhora considerável ante a situação atual, e a AIEA não poderia impedir o Irã de retomar o controle de seu urânio a qualquer momento.

Existe uma solução de compromisso potencialmente importante que já foi oferecida. Em novembro, a AIEA transmitiu ao Irã nossa oferta de permitir que o Irã transfira seus 1,2 mil de LEU a um terceiro país especificamente a Turquia- no início do processo, onde ele seria armazenado durante o processo de produção do combustível como caução de que o Irã receberia de volta o seu urânio caso não viéssemos a entregar o combustível. O Irã jamais deliberou seriamente quanto a essa oferta de "caução" e não ofereceu explicação confiável quanto à sua rejeição. Creio que isso suscite questões reais quanto às intenções nucleares iranianas. Caso o Irã não esteja disposto a aceitar uma oferta que demonstre que seu LEU é para usos pacíficos e civis, eu instaria o Brasil a insistir junto ao Irã quanto à oportunidade representada por essa oferta de manter seu urânio como "caução" na Turquia enquanto o combustível nuclear está sendo produzido.

Ao longo do processo, em lugar de construir confiança o Irã vem solapando a confiança, na forma pela qual abordou essa oportunidade. É por isso que questiono a disposição do Irã para um diálogo de boa fé com o Brasil, e por isso eu o acautelei a respeito em nosso encontro. Para iniciar um processo diplomático construtivo, o Irã precisa transmitir à AIEA um compromisso construtivo quanto ao diálogo por meio de canais oficiais algo que até o momento não fez. Enquanto isso, continuaremos a levar adiante nossa busca de sanções, dentro do cronograma que delineei. Também deixei claro que as portas estão abertas para uma aproximação com o Irã. Como você sabe, o Irã até o momento vem recusando minha oferta de um diálogo abrangente e incondicional.

Aguardo ansiosamente a próxima oportunidade de encontrá-lo e discutir essas questões, levando em conta o desafio que o programa nuclear iraniano representa para a segurança da comunidade internacional, inclusive no Conselho de Segurança da ONU.

Sinceramente,

Barack Obama"

Tradução de Paulo Migliacci