Mileide Flores destaca atuação dos comunistas na área cultural

Durante Seminário do Coletivo Estadual de Cultura do PCdoB/CE, que aconteceu entre os dias 15 e 16 de maio, a livreira Mileide Flores falou sobre a trajetória da cultura, da arte, literatura e as ações dos comunistas nestas áreas. “Acredito que este Seminário de instalação do Coletivo Cultural do PCdoB contribuirá em diversos sentidos para a ação dos comunistas no campo da Cultura, considerando-se inclusive a questão das políticas públicas e as formas pelas quais devem ser pensadas”, afirma.

O Vermelho/CE reproduz a seguir a íntegra da intervenção de Mileide Flores.

A capacidade humana de pensar, ordenar pensamentos e ações, criar e transmitir experiências às gerações futuras, tanto quanto as expressões materiais e imateriais destes afazeres, são denominadas de cultura. Deduz-se daí que cultura se insere num processo histórico de produção, que inscreve o ser humano em outra e própria natureza. Então cultura é capacidade, é criação, é produção histórica e natureza específica da humanidade. Em sentido mais estrito, cultura representa a imensa diversidade dialética de documentos, visões de mundo e de classes, organização de crenças, depoimentos e expressões de arte.

No final do século XX vivenciamos mudanças culturais muito rápidas, devido ao avanço tecnológico, na chamada era da informação. As transformações econômica, tecnológica, política e cultural, num mundo globalizado, têm nos levado a mudanças radicais na agenda de temas e problemas prioritários, alterando estilos e comportamentos sociais, elaborando novas linguagens, gerando novas relações sociais, transformando os insumos da cultura e colocando novos desafios e necessidades ao campo da educação.

“No debate político contemporâneo sobre a globalização da economia, fica cada vez mais claro que não se trata apenas de uma nova forma de divisão internacional do trabalho, ou de uma simples ampliação do mundo das trocas comerciais. A globalização é um novo sistema de poder, que exclui e inclui, segundo as conveniências do lucro; que destrói a cultura e cria continuamente novas formas de desejo no setor do consumo. Com isto gera novas formas de dominação, principalmente de ordem cultural. Ao destruir por meio do mercado, os sistemas de controle da economia, os direitos sociais dos trabalhadores, e cria-se um novo modo de desenvolvimento”.

“Os efeitos da crise da economia globalizada e a rapidez das mudanças na era da informação levaram a questão social para o primeiro plano, e com ela o processo da exclusão social, que já não se limita à categoria das camadas populares, historicamente excluídas de condições condignas de renda/salário, saúde, educação, moradia, transportes etc. O indivíduo é excluído não apenas por ser desigual ou diferente, mas por ser considerado como não-semelhante, um ser expulso, não dos meios modernos de consumo, mas do gênero humano”. (Glória Gohn , Educação Não-formal e Cultura Política, 2001, Editora Cortez)

No cenário anterior, as lutas sociais aconteciam em busca da inclusão de grandes setores excluídos do sistema pela situação de desigualdade mais diretamente econômica, pois elementos sociais de raça, sexo e origem migratória surgiam apenas como pretexto para a super-exploração. Agora, no novo cenário, o econômico se traveste, se camufla, num jogo de exclusão muito mais claramente sócio-cultural. Cada pequena diferença é hierarquizada como retirada de valor ou agregação de valor, num ambiente onde ter celular, fazer academia de fitness, saber inglês, ser jovem e rico, concluir MBA, vestir roupa de griffe ou usar gírias de moda, podem fazer toda a diferença entre o sucesso e o fracasso no mercado de trabalho.

As políticas passaram a ser formuladas para clientelas específicas (negros, mulheres, índios, crianças de rua, juventude, terceira idade etc.), deixando de ser universalistas para ser particularistas. E aqui vale uma reflexão, acredito eu. Tais políticas sequer existiam no período dos capitalismos mercantil e industrial, até o século XIX. Passaram a existir, como prerrogativa, domínio do Estado, no século XX, período de transição do capitalismo industrial para o financeiro, em guerra fria contra a ascensão do comunismo, quando então são experimentadas modalidades social-democratas ou trabalhistas de prática do Estado.

Agora, dentro da lógica de estado mínimo do neoliberalismo, sob a égide da globalização financeira e da especulação universal, o domínio público é disputado pela cultura como negócio na engrenagem do mercado. Uma das consequências nesta nova ordem é a expansão da economia informal e nela as atividades do terceiro setor. Esta expansão se dá, preferencialmente, no setor terciário da economia (prestação de serviços).

Estas atividades passaram a ser realizadas por organizações sociais privadas, numa combinação entre as associações voluntárias com um modelo onde se articula o trabalho voluntário com o trabalho assalariado (outra reflexão a respeito deva ser feita, ao meu ver, sobre este assunto). Estes novos atores, independentes e democratizadores nas economias centrais, transformam-se no comércio possível, francamente dependentes do estado, nas economias periféricas, com escassos mercados internos e extraordinárias desigualdades econômicas. O jeito de muitos segmentos populacionais se sentirem pelo menos simbolicamente incluídos é sob a tutela de alguma ONG, organismo este subsidiário da transferência de recurso público, não mais realizado pelo Estado, a ser promovido pelo Executivo e fiscalizado pela Justiça e pelo Legislativo.

A cultura como geradora de desenvolvimento não pode ser delineada apenas para a cultura que dá lucro, pois corre-se o risco de asfixiar as raízes culturais de um povo, com suas classes e raças, e de uma nação — resultado desse amálgama que se converte em identidade e atribui cidadania aos despossuídos, das classes não-dominantes na sociedade.

A trajetória da cultura guarda relações profundas com seus antecedentes mais remotos e tomo aqui — enquanto aspecto exemplar — o cenário do livro, da leitura e da biblioteca, onde se desvenda um elo significativo da cultura com suas raízes. Da cultura enquanto ambiente de sentimentos contraditórios que acompanha o curso do desenvolvimento das sociedades e diz respeito a cada um de nós.

Exemplifico com um fato descrito no livro “A Conturbada História das Bibliotecas” (BATTLES, 2003). Entre os anos de 219 a 210 a.C, o Imperador Shi Huangde, da dinastia chinesa Qin, antecipa o que os Ptolomeus perceberão no Egito mais tarde: que o monopólio sobre os recursos intelectuais é tão importante para governar um país quanto o controle sobre a produção de arroz ou de seda. Percebendo o perigo, Shi Huangde, em seu reinado, mandava queimar os livros — e, juntamente com seus autores, que lhe faziam oposição. Tal sentimento de domínio sobre um povo, mediante o controle do conhecimento, perdura em sua essência até hoje. É com essa finalidade que a censura da informação é usada pela vontade dos que detém o poder, ao longo dos tempos, e, assim, livros e homens foram queimados e estudiosos, intelectuais e adivinhos foram perseguidos e enterrados como se fossem “soldados derrotados”.

Mas, devido à insistência de anônimos apaixonados pelo livro, pela leitura e pelas bibliotecas, estes espaços culturais (do mesmo modo que outros, inúmeros, em todos os campos onde se manifesta o espírito humano) se mantêm como espaços de resistência. A biblioteca é símbolo de resistência por assombrar a prepotência, por ter uma imensa capacidade de armazenar enorme quantidade de saber e de conhecimento num único local, despertando a atenção de inimigos a partir da destruição da Biblioteca de Alexandria até as guerras mais recentes. Observe-se a destruição que aconteceu nas bibliotecas e também nos museus de Bagdá durante os ataques norte-americanos contemporâneos.

Outro elemento de avaliação informa que a concentração da renda perde para a concentração de livros no Brasil (o livro aqui definido como instrumento universal de educação e cultura), nos dados revelados pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil e expostos por Galeno Amorim, seu organizador, durante sua participação no I Fórum da Rede Nordeste do Livro e da Leitura, 2008: “Um entre cada cinco livros que estão nas casas das pessoas, estão nas mãos de 1% só da população. É um tipo de concentração bem mais grave que a concentração de renda no nosso país. Quase uma entre cada dez casas no Brasil não tem um livro, não sabe nem a cor de um livro. Esse dado é preocupante”.

Assim como em outros campos da Cultura, com isso o peso da história é revelado, presente na existência de bibliotecas, que sucumbem diante da agonia de carências múltiplas, diante do desprezo por sua manutenção, sem bibliotecárias, sem espaço, sem cuidado, sem verbas de manutenção e sem acervos. Relação simbólica de matanças e incêndios é revelada ao longo dos tempos através da falta de acesso a produtos culturais, na fundamentação necessária para que se dê a ampliação da capacidade de interpretação de um povo, no sentido de que este se torne protagonista consciente de seu papel transformador.

Examinemos, então, os dados apresentados pelo MinC no 2º Congresso Nacional de Cultura, Brasília, 2010:

– Apenas 14% dos brasileiros vão ao cinema uma vez ao mês;
– 92% nunca freqüentaram um museu;
– 93% nunca foram a uma exposição de arte;
– 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança e,
– 92% dos municípios não têm cinema, teatro ou museu.

Estes dados são apresentados após 18 anos da criação da Lei Rouanet. Dispositivo segundo o qual o dinheiro público para a cultura é predominantemente distribuído via renúncia fiscal, este mecanismo está ligado intrinsecamente ao lucro e a liquidez das empresas, ficando assim a cultura majoritariamente dependente do desempenho das empresas e da sua disponibilidade ou vontade em aplicá-lo. Um modelo que acentuou ainda mais as desigualdades sociais entre as regiões: 69,41% da renúncia fiscal para projetos culturais no ano de 2009 ficaram entre Rio e São Paulo (principalmente nas capitais). Os estados do Acre, Roraima e Tocantins não tiveram nenhum projeto captado. O Ceará ocupou a 10ª posição, com 1,25% da captação através de renúncia fiscal.

Outro dado revelador é que os projetos provenientes da sociedade civil passam por um desigual processo de competição com os projetos apresentados pelas instituições que se apresentam como governamentais, e que, além disso, 50% dos recursos captados estão concentrados nas mãos de apenas 3% dos proponentes. Reconhecendo essas e outras distorções o governo Lula encaminhou um pacote de Leis Sociais para o Congresso Nacional, entre as quais uma consiste na revisão da Lei Rouanet, na tentativa de corrigir os erros da legislação anterior.

O livro, as bibliotecas, os museus, os teatros, as salas de cinema, os diversos espaços culturais, os terreiros etc., são necessários como espaços onde se cultiva a memória da cultura e para a permanência do acervo de conhecimentos de um povo, fundamentais quando se trata de despertar a potência transformadora dos cidadãos.

Acredito que este Seminário de instalação do Coletivo Cultural do PCdoB contribuirá em diversos sentidos para a ação dos comunistas no campo da Cultura, considerando-se inclusive a questão das políticas públicas e as formas pelas quais devem ser pensadas. E para o PCdoB, o que é Cultura? Como ela se define e a quem ela se destina?

Apenas no sentido de resgatar algo da nossa inserção no campo da cultura, lembro aqui aspectos da nossa atuação histórica.

O PCdoB historicamente estimulou e contribuiu para a livre expansão e proliferação da arte ligada à insubmissão, à rebeldia. Podem atestar isso inúmeros e conhecidos talentos de todas as formas de expressão artística e cultural em diversos período da História, e principalmente quando o mundo (e o Brasil, em especial) lutaram pela liberdade.
Pedro Pomar, aquele dirigente comunista executado na Chacina da Lapa, costumava mencionar a frutífera proliferação de publicações e os profundos vínculos com o Partido Comunista de homens do porte de Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Arthur Ramos, Graciliano Ramos, Orígenes Lessa, Manuel Bandeira, Ruy Facó ou Jorge Amado.

Aliás, em 1946, ele, Pedro Pomar, e Jorge Amado publicaram o livro O Partido Comunista e a liberdade de criação, uma coletânea de artigos e discursos. Nele Jorge Amado escreveu: “O PC do Brasil pode se orgulhar de ter sido nos últimos 15 anos (…) o melhor apoio e incentivo dos escritores e artistas”. E continuou: “Nunca, jamais o Partido deixou de jogar todo o peso de sua influência para apoiar, sem sectarismos partidários, a literatura e as artes modernas no Brasil" (…) uma batalha nossa, uma batalha também contra o fascismo”.

Nessa trajetória, o relato histórico informa que os comunistas ingressaram no mundo da arte cinematográfica e produziram, já naquela época, diversos documentários de curta-metragem, alheios ao "realismo socialista", até mesmo sobre as atividades partidárias. Nelson Pereira dos Santos, então jovem militante comunista, dirigiu dois documentários sobre a Juventude Comunista em São Paulo.

Os comunistas chegaram a produzir filmes de longa-metragem como Estrela da Manhã (1950) – com argumento de Jorge Amado, roteiro de Rui Santos e direção de Jonald Santos. As músicas eram do maestro Radamés Gnattali e Dorival Caimmi. Envolveram-se inclusive numa produção intitulada Rosa dos Ventos, baseada num texto do próprio Jorge Amado.

Os comunistas foram, em determinado momento, os principais animadores do movimento cineclubista. No Clube de Cinema da Bahia, dirigido pelo comunista Walter da Silveira, se formou um diretor como Glauber Rocha. Eles chegaram organizar uma empresa para distribuir filmes, a Tabajara Filme.

Esta situação foi sensivelmente alterada com o fechamento do Partido (1947), a cassação dos mandatos parlamentares (1948) e o acirramento da guerra fria no final da década de 1940 e início da década de 1950, concorrendo momentaneamente para a estreiteza e o sectarismo, entretanto sempre combatidos.

Atualmente, a formidável experiência de aproximados 2.500 pontos de cultura no Brasil se dá sob a inspiração do militante do PCdoB de São Paulo, Célio Turino, no MINC. Mas, em seu patamar amplo, extenso e de profunda capilaridade popular, tem antecedentes nos CPCs (Centros Populares de Cultura) da UNE, dos anos 1960, abortados pela ditadura militar.

Foi quando, no inicio dessa década, começou a se forjar uma nova frente única de intelectuais progressistas. Dessa vez formou-se em torno do projeto nacional-desenvolvimentista que teve como um dos seus principais momentos a luta pelas reformas de base do presidente João Goulart. Articulou-se então o Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI) que, ao lado da CGT e da UNE, vanguardeou a formação de uma frente nacionalista pró-reformas.

Foi também a época do teatro de Arena, dos CPCs, da série Cadernos do Povo Brasileiro e Violão de Rua, da editora Civilização Brasileira, comandada pelo comunista Ênio da Silveira. Estes foram marcos desta efervescência cultural existente no país.

Para o desenvolvimento dos trabalhos, a comissão organizadora deste Seminário propõe a seguinte metodologia:

– Indicação de três pessoas para a relatoria.
– Após as intervenções da mesa, a plenária se manifesta, direcionando o foco para a proposta de encaminhamento das diretrizes do Coletivo.
– Cada pessoa tem direito a 5min, podendo ser acrescido de mais 2min. para finalização de raciocínio.
– Após as intervenções da plenária, teremos uma pausa para que os relatores organizem os encaminhamentos feitos.
– Ao final, serão lidas as propostas encaminhadas pela plenária e serão escolhidas por ordem de prioridade as propostas encampadas pelo Coletivo.

Mileide Flores é Presidente da Sociedade Amigos da Biblioteca; Membro do Coletivo de Cultura do PCdoB/Ce; do Colegiado do Sistema Nacional de Cultura; do Fórum de Literatura do Estado do Ceará; da Rede Nordeste do Livro e da Leitura; Diretora da Livraria Feira do Livro; do Sindicado do Comércio Varejista de Livros do Estado do Ceará e da Associação Nacional de Livrarias/NE

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