Como Matarazzo, o homem-forte de Serra, virou ícone do higienismo

A passagem-relâmpago de José Serra pela Prefeitura de São Paulo — apenas 15 meses, entre 2005 e 2006 — foi o suficiente para a dupla PSDB-DEM iniciar uma política de tipo higienista que perdura até os dias de hoje. Para tocar a “limpeza urbana”, o ex-prefeito, hoje pré-candidato tucano a presidente, escalou ninguém menos que Andrea Matarazzo, um defensor ferrenho da ideologia neoliberal e da privataria tucana.

Por André Cintra

Andrea Matarazzo

Nomeado subprefeito da Sé, o distrito mais central da cidade de São Paulo, Matarazzo fez da região um laboratório privilegiado de sua “faxina social”. A truculência com que combateu moradores de rua — tentando “varrê-los” para a periferia” e inaugurando até obras “antimendigo” — merece um relato à parte. Mas sua empreitada, longe de se restringir à perseguição aos sem-teto, fez dele o maior ícone contemporâneo do higienismo na capital paulista.

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“Matarazzo parecia ter saudades de um centro sem catadores, sem moradores de rua, sem camelôs, sem inferninhos, sem bares mais heterodoxos, com uma Luz que lembrasse a exuberância dos anos 50. Ou seja, de uma cidade que não existe mais”, ironizou o jornalista Mario Cesar Carvalho, em artigo recente na Folha de S.Paulo. Na opinião de Carvalho, o subprefeito — com o aval e o estímulo de Serra — “tentou encarnar a versão paulistana de Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York entre 1994 e 2002. Buscou implantar uma versão local do tolerância zero, que não deu certo, entre outras razões, porque São Paulo não é Nova York”.

Ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência da República no governo FHC, Matarazzo se aproveitou de seu ótimo trânsito entre jornalistas e forjou uma série de operações policiais midiáticas. Oito anos depois da saída de Paulo Maluf da Prefeitura, São Paulo voltava a ostentar factoides inúteis — ações que tinham efeito imediato, mas não atacavam efetivamente os graves problemas urbanos, como a desigualdade social.

Com Matarazzo a bordo e quase sempre na presença de emissoras de TV, a Subprefeitura da Sé fechou uma série de imóveis ilegais, sobretudo casas de prostituição e bares sem alvará. Um dos alvos era a Cracolândia — a maior “boca de fumo” do Brasil, por onde chegam a circular, diariamente, cerca de 2 mil usuários de crack.

Em meio ao espetáculo do subprefeito, a gestão Serra anunciou um novo projeto para a região central, batizado de “Nova Luz” (em referência ao degradado bairro onde se situava a Cracolândia). Embalado como projeto de revitalização do Centro, a iniciativa, essencialmente privatista, baseava-se na especulação imobiliária, dava à iniciativa privada a prerrogativa de desapropriar moradores e ainda liquidava pequenos comerciantes.

“Eminência parda”

As animosidades provocadas por Matarazzo começavam a vir à tona. No final de 2005, o Fórum Centro Vivo, composto por mais de 20 entidades, promoveu um protesto em frente à casa do subprefeito, no bairro do Morumbi. Os manifestantes leram um manifesto que acusava Matarazzo de ter “levado a região central a uma guerra civil entre a sociedade formal e informal, contra a população de baixa renda que mora e trabalha no centro”.

Em 31 de março de 2006, Serra renunciou à Prefeitura para concorrer ao governo paulista — mas logo pressionou seu sucessor, Gilberto Kassab (DEM), a dar mais poderes a Matarazzo. Kassab aceitou prestigiar um de seus maiores desafetos, e foi assim que Matarazzo passou a acumular a Coordenação das Subprefeituras — pasta com orçamento anual de R$ 1,4 bilhão. Tornou-se a “eminência parda” da nova gestão.

A vários aliados (e mesmo aos nem tão aliados assim), Kassab declarou que seu todo-poderoso secretário o odiava. A palavra que o prefeito usava era esta mesma — “ódio”. Quando sabia de uma armação feita por Matarazzo, invariavelmente Kassab mandava avisos à provável vítima da tramoia. Por outro lado, a gestão Kassab abusou da ingenuidade ao tentar tirar proveitos da pauta higienista de Matarazzo.

Em dezembro de 2006, um release da Prefeitura resvalou num odioso preconceito de classe para anunciar a inauguração da “nova Oscar Freire”, a oitava rua comercial mais luxuosa do mundo, segundo a Excellence Mystery Shopping International. “No lugar dos operários”, dizia o texto oficial, “homens e mulheres bem vestidos e com a aparência favorecida em todos os aspectos voltam a circular pelas calçadas da rua Oscar Freire”.

Orçada em R$ 8,5 milhões, a reforma da via recebeu R$ 4,5 milhões em subsídios da Prefeitura. Elitista, incluiu aterramento da fiação elétrica, remoção de cem postes, alargamento das calçadas e plantio de árvores. No dia da inauguração, a Guarda Civil Metropolitana teve de cercar Kassab e Matarazzo para isolá-los de uma manifestação popular.

Mas o prefeito chegou mesmo aos limites do ridículo em outubro de 2007, ao anunciar a jornalistas duas sandices inventadas por Andrea Matarazzo — o fim da Cracolândia e o “avanço irreversível” do projeto Nova Luz. “Não existe mais a velha Cracolândia deteriorada, a serviço da droga, a serviço do crime. Cada vez mais essa é uma página virada na história de São Paulo”, discursou um animado Kassab — que depois veria a epidemia de crack se alastrar e a revitalização do Centro fazer água.

Com a proximidade das eleições municipais de 2008, Matarazzo, cotado para ser o candidato do PSDB a prefeito, intensificou suas demonstrações de força e exibicionismo. O secretário voltou a ser matéria de capa da Vejinha (a revista regional da encartada na Veja), em reportagem que insistia numa bajulação cada vez mais sem sentido.

“Só no ano passado, (Matarazzo) interditou 135 casas noturnas, 166 ferros-velhos, 178 restaurantes e 816 bares. Ao todo, foram 1.793 fechamentos (uma média de quase cinco por dia)”, dizia a revista, num samba-exaltação ao “xerife” de São Paulo. Segundo Veja, “o homem gosta de brigar com quem considera infrator. Pode, às vezes, parecer demagogia, mas o que ele faz em geral é bom para a vida da cidade”.

A decadência

Tolice. A gestão Matarazzo mostrou pouquíssima eficiência a longo prazo. Seus métodos autoritários e higienistas, ademais, deixaram inimigos e detratores por todos os lados. Preterido na disputa municipal de 2008, Matarazzo, à revelia de Serra, escancarou seu apoio não à reeleição de Kassab, mas, sim, ao pleito do teimoso Geraldo Alckmin. De uma tacada só, o supersecretário desafiou a maior parte de seu partido e também a gestão de que participava.

Não deu outra. Com cada vez menos cargos e responsabilidades, Andrea Matarazzo encolheu. As brigas com entidades como a Pastoral da Rua, do padre Júlio Lancellotti, continuaram — mas o tempo não deu razão ao arquiteto do higienismo paulistano. Apesar de toda a “limpeza social”, o número de moradores de rua em São Paulo cresceu 50% entre 2003 e 2010, chegando a chegou a 15 mil pessoas, conforme estimativa do Movimento Nacional da População de Rua.

O “xerife” tampouco impediu o crescimento alarmante de índices de criminalidade. Com a expansão da Cracolândia e o fiasco de operações de segurança como a Centro Legal, um bairro como Santa Cecília viu seus registros de ocorrências criminais saltarem inacreditáveis 342% em apenas ano. Ao se demitir da Prefeitura, em 2 de setembro de 2009, Matarazzo podia ter a convicção de que a cidade de São Paulo — sobretudo a população em situação de rua — só tinha a agradecer.

Recém-nomeado titular da esvaziada Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo — onde substituirá João Sayad —, Andrea Matarazzo talvez tenha mais dificuldades para disseminar suas ideias higienistas na nova área. “Pior do que o Sayad é impossível”, acredita o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, fundador do Teatro Oficina. Para todos os efeitos, não convém duvidar da vocação reacionária de Matarazzo.