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Anistia e o passarinho na mão dos intérpretes do Direito

As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, e pelo juiz da 8ª. Vara Federal de São Paulo, Clécio Braschi, que julgou improcedente a Ação Civil Pública contra os réus Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, acusados pelo Ministério Público Federal, entram em choque com a finalidade primeira e o conteúdo essencial da norma jurídica: o justo.

Por Angélica Rodrigues Alves*

A opção foi pela letra fria da lei, e não por justiça. As decisões deveriam dizer o direito, ao invés de proporcionar sentimento de impunidade e instabilidade. A segurança Jurídica foi bradada ao proteger as atrocidades da ditadura militar. Mas, que segurança jurídica existe em uma democracia onde o judiciário atua para cercear o conhecimento da verdade (tanto histórica como judicial) e não realiza a justiça, mediante a responsabilização dos violadores de direitos humanos, elementos indispensáveis para a consecução do princípio da não-repetição?.
Com o direito na mão, tal qual o passarinho, perguntam: está vivo ou morto? Depende.

O Ministro do Supremo Eros Grau afirmou a integração inquestionável da Lei de (auto) Anistia com a Constituição de 1988. Sintoma claro de que a via para a reconciliação nacional vai por outro lado. Se a Constituição democrática abriga crimes que se perpetuam, como o desaparecimento de quase 140 pessoas e crimes imprescritíveis como os de lesa-humanidade (homicídio, torturas e desaparecimentos forçados), o que fica claro é que não houve ruptura, tão pouco uma das dimensões imprescindíveis à transição, as reformas institucionais.

Ao contrário do que proferiu, a falta de punição gera o padecimento da democracia, a ferida não cicatriza. Na visão sobre a aprovação do instituto jurídico que abriga os impunes (Lei 6.683/79), Eros Grau narrou uma epopéia de forma tão romantizada que parece capricho a sociedade querer mais que o silêncio. Com o passarinho na mão, ou o direito, parece perguntar: querem mais? Ao querer, a sociedade estaria desqualificando a ação daqueles que lutaram pela abertura democrática, e toma isso como se fosse possível transigir sobre direitos internacionalmente consagrados.

A decisão proferida esta semana pelo douto Clecio Braschi que julgou extinta, sem julgamento de mérito, a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal, se mostra como magistral aula de direito positivo, por mais de uma vez proferiu que “não cabe inserir na lei palavras onde o legislador não fez”. Por sua vez, com o passarinho vivo na mão, Eros Grau diz que todo e qualquer texto normativo é obscuro até a sua interpretação, as normas dizem o que os interpretes dela dizem.

O juiz diz que não, a lei não permite punição, o ministro diz que sim, que a lei anistiou crimes de lesa-humanidade, e ambos comemoram o que para eles deve ser a mais importante “reforma institucional”: a aliança entre o judiciário e os militares impunes. Direito vivo e morto a depender do questionamento feito.

O positivista Clécio Brashi tripudia a dimensão da realização democrática ao dizer que o Ministério Público Federal não teria legitimidade ativa devido ao conhecimento das informações que pleiteava (nomes das pessoas presas legal ou ilegalmente pelo DOI/CODI, nomes das pessoas torturadas, assassinadas e o destino dos desaparecidos), por versarem sobre direitos individuais disponíveis. Trata-se, segundo ele, de direitos individuais homogêneos, sendo possível a identificação daqueles que “supostamente” tiveram negado o acesso a tais informações. Ora, tais informações dizem respeito a toda a sociedade brasileira, às gerações passadas e vindouras, não somente aos perseguidos políticos e seus familiares. O sujeito passivo dos crimes, como os que foram cometidos por militares como Ustra e Maciel (réus na ação) sob suas mãos, mando ou omissão têm como sujeito passivo toda a humanidade, onde qualquer pessoa é legítima para pleitear o conhecimento, julgamento e punição.

Ainda sim, faz a observação que devem ser protegidas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas que não desejam tornar pública tais informações. Onde esteve nesses 30 anos este Juiz Federal? No gabinete ou na caserna? É justamente sobre a honra, a imagem, que advogados, procuradores, juízes e militantes de organismos humanitários, vítimas e familiares lutam para a abertura dos arquivos secretos.

Se o apego é à letra da lei, por que há passividade diante dos crimes que se perpetuam? Continuam desaparecidos cerca de 140 brasileiros que exerceram o consagrado direito de rebelião frente aos militares que usurparam o poder, rompendo com a ordem constitucional em 1964. Esse foi o argumento utilizado pelo Chile, que em sua Suprema Corte interpretou a lei de anistia daquele país no sentido de que esta não incluía os desaparecimentos, que foram considerados crimes permanentes e contínuos, até que os corpos fossem localizados, possibilitando assim a persecução penal dos agentes de Estado que cometeram crimes contra os direitos humanos.

Ao citar Mario Benedetti ao final de seu voto, Eros Grau arremata: “É necessário dizer, por fim, rigorosa e reiteradamente que a decisão pela improcedência da presente ação não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem, e de hoje, civis ou militares, policiais ou delinqüentes. Há coisas que não podem ser esquecidas.”

A poesia, no caso, é desnecessária, pois repudiar é o que a sociedade tem feito! Cada qual no seu papel. O Estado detém o monopólio da justiça, não precisa repudiar, deve atuar, através do judiciário. Observando que é justamente para não esquecer que clamamos pelo acesso aos arquivos, escondidos pelos militares e agora protegidos com a toga.

A transição de um regime ditatorial para um regime realmente democrático somente se consolida a partir do momento que vence suas quatro dimensões: verdade, reparação, justiça e reformas institucionais. O Brasil e a Guiana foram os únicos países do continente que não julgaram os torturadores e assassinos de seus regimes de exceção. Essa postura omissa favorece o cometimento de violações aos direitos humanos no setor da segurança. Segundo estudos da cientista política Kathryn Sikkink, julgamentos e punições de torturadores auxiliam na construção do Estado de Direito, simbolizam valores de uma sociedade democrática. A violência policial, segundo ela, reduziu-se drasticamente nos países que puniram seus agentes públicos de segurança assassinos e torturadores. Já no Brasil, de acordo com dados da Anistia Internacional, entre os anos 1999 e 2004, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, 9.889 pessoas foram mortas por policiais, em situações descritas como “resistência à prisão seguida de morte”. Isso se trata de herança cultural, formação de uma “casta” acima da lei.

Embora as lamentáveis decisões do Supremo e da Justiça Federal causem indignação, não são de forma alguma conclusivas. A impunidade, maior legado da ditadura militar, estará em cheque frente à Corte Interamericana de Direitos Humanos, fato lastimoso a um país que, refém de sua Suprema Corte e de suas subestruturas, se vê obrigado a recorrer à Organismos Internacionais para sua realização enquanto nação, onde propugna pela verdade, história, justiça e realização da paz, impedidas de concretização por suas próprias ações.

*Angélica Rodrigues Alves é acadêmica de Direito