Poeta comunista defende dessacralização da arte

Modernidade, pós-modernidade e democratização do conhecimento são temas recorrentes nesse papo-cabeça com Cida Pedrosa, advogada, poeta e comunista, que fala com propriedade sobre poesia, cultura popular e o uso das novas mídias na produção e divulgação da literatura. Defensora da oralidade como meio para levar o povo a se apropriar de cultura e da dessacralização da arte, para ela, “poesia não é só para iniciados”.

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Em que momento nasceu a poeta?

Cida Pedrosa: Quando cheguei ao Recife, aos 13 anos, eu já escrevia, mas não tinha ainda muito claro que era poeta, eram escritos de adolescente. Quando fui estudar no Colégio 2001 fiquei na mesma turma de algumas pessoas que também escreviam. Então, o que era apenas um afã, um desejo da adolescência começou um pouco a se profissionalizar. No colégio, aos 15 anos, nós editamos um fanzine de poemas do qual participavam pessoas que são hoje bem importantes no Estado, como Cícero Belmar e Lídia Barros, por exemplo.

O colégio teve uma importância vital para mim, tanto na literatura como na política, porque fui aluna de vários professores ligados à esquerda. Era o final da ditadura e essas pessoas não tinham onde trabalhar e meu irmão, que era dono do colégio e amigo de muitos deles, de certa forma os acolhia. Então, fui aluna de Biu Vicente, que era uma pessoa ligadíssima às esquerdas na época, de Pedro Américo de Faria, de Natanael Sarmento, que era do PCBão, e de Zé Arlindo. Era uma gama de professores muito ligados à história das lutas libertárias e por causa disso muita gente que estudou no colégio se envolveu com a esquerda e com a política.

A política em minha vida já vinha lá de Bodocó, acredito que por conta das leituras que eu fazia. Eu já tinha lido Dostoievsky, já tinha lido Germinal, de Émile Zola, que é um livro que definiu de que lado eu queria estar no mundo. Germinal é um livro sobre uma grande greve dos carvoeiros, que trata da realidade pura, é um livro naturalista do ponto de vista estético, Zola é um escritor naturalista.
 
Eu li o livro em quatro dias e quando terminei estava chorando. Naquele momento eu tive claro que tinha de me definir no mundo por um lado e não era do lado tradicional que eu via no Sertão ou da política tradicional ou das elites. Eu acho que ali foi um divisor de águas na minha vida.

Em 1980 você coordenou o Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco. Era um momento político importante, pois marcava o início do processo de redemocratização do País. Que influência isso teve sobre o movimento?

CP: Embora não faça o que chamam de poesia panfletária, nunca em minha vida tive dissociada a arte dos movimentos libertários. O Movimento de Escritores Independentes surgiu em um processo de abertura, abrigou muita gente que estava saindo do cárcere e serviu de objeto de denúncia nas praças do Recife.

O Marcelo Mário Melo, por exemplo, tinha acabado de sair do cárcere quando se uniu ao movimento e nós dizíamos poesia na rua, nos morros, na frente da Livro 7, e aquele era sempre um espaço de denúncia. Era o momento dos poemas engajados. Eu não faço poesia panfletária, mas acho que em algum momento a minha poesia é engajada. Hoje se tem muito medo de dizer essa palavra, de dizer isso, na época não se tinha.

O poeta Alberto da Cunha Melo, por exemplo, escreveu um livrinho fino chamado Dez poemas políticos, que foi fundamental para denunciar o que estava acontecendo nos porões da ditadura, e todo mundo decorava e saía dizendo aqueles poemas. Então, não era só o momento de você apresentar sua poesia na cidade do Recife, mas também um momento de dizer de que lado você estava. Isso rolou até 1986, 1987, foram seis anos de movimento e foi uma experiência muito interessante. A partir daí nunca deixei de ter experiências coletivas.

A ARTE COMO INSTRUMENTO DE TRANSFOMAÇÃO

Hoje vivemos outro momento da história nacional e mundial. Considerando o poder transformador da arte, como você avalia a influência da literatura, da cultura, nesse novo momento?

CP: Quase todos os poetas que fizeram minha cabeça estavam ligados, de uma maneira ou outra, na sua época, a mobilizações políticas e a partidos políticos. Não só por serem obras grandiosas, porque são grandes poetas, mas, também porque a arte deles teve esse elemento transformador.

Havia muita gente que escrevia e não era só escritor. Além de escritores eles eram ligados a um projeto de transformação, como, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado em parte de sua obra, que eram pessoas do Partido. Não que eles fizessem arte engajada, mas enquanto cidadãos estavam ligados à transformação do mundo e a um projeto político de transformação. E ninguém falava de um projeto de modernidade sem pensar em um projeto de transformação do mundo, ou seja, o sonho de modernidade da Semana de 1922 e o sonho de modernidade do Brasil estavam ligados no mundo, estavam ligados a um processo de transformação.

O que me angustia é que do ponto de vista real nós ainda não vivemos o processo de modernidade e a arte fala o tempo inteiro em uma situação de pós-tudo, de pós-modernidade. O que é que se entendia por modernismo, pelo menos no meu entendimento? Não era só a transformação da arte, mas a arte como cultura nacional, com identidade nacional, a arte de um povo, a cultura de um povo, isso era modernismo.

No caso do Brasil, a idéia era como conseguir transformá-lo em um País novo em que se pudesse ter justiça social, igualdade, liberdade, enfim todos os grandes ideais que se busca para um País ser desenvolvido do ponto de vista social e econômico. Mas, embora tenhamos avançado muito, nós não conseguimos viver os ideais da modernidade ainda porque ela chegou para uns, mas não chegou para todos.

Muita gente confunde a modernidade com o nível de tecnologia e a quantidade de informação que nós temos. Para mim, o conceito de modernidade vai mais além, vai para o momento em que um país ou um povo consegue alcançar o estado pleno de justiça social. Isso é modernidade. Então, nós não vivemos esses sonhos de modernidade ainda e todo processo artístico hoje fala de um pós-tudo, de uma pós-modernidade, uma desconstrução.

Isso não significa que não tenham acontecido coisas muito interessantes do ponto de vista puramente artístico. Tem coisas muito interessantes de construção e de desconstrução da literatura, mas eu me angustio, pois às vezes acho os projetos muito ocos no sentido de que não estão ligados a nenhum processo de transformação.

É a arte por si, lembra até aquela coisa meio parnasiana, da arte pela arte. Não acho que a arte tenha de ser necessariamente um braço engajado de qualquer ideologia política, mas ela em si tem de estar ligada a um processo de transformação do mundo. No mínimo tem de ter isso.

Além de poeta e advogada, você é militante e dirigente partidária. Para o artista, para o poeta, como se dá a convivência entre o real, o concreto, como a política e a advocacia, e a poesia, por exemplo, que é o sonho?

CP: Para mim, isso nem sempre foi fácil. Aos 20 anos isso era complicadíssimo. Antes, quando eu era muito jovem e não estava ainda no Partido ia advogar na Justiça e sentia uma angústia bem concreta, pois precisava usar um blazer ao invés de minhas roupas alternativas. Isso para mim era angustiante porque significava dissociar o ser artístico da advogada. Além disso, eu não me apresentava nos locais onde advogava como poeta. Lá, eu era advogada e no meio cultural era poeta. Isso até os 25/26 anos.

Por outro lado, tenho um lado absolutamente prático, embora nem sempre tenha sido simples conviver com esse meu lado prático. Acredito que essa praticidade se deve à minha formação lá do Sertão, onde o universo é muito simples, onde as coisas têm o seu lugar exato, onde a gente tem uma vivência muito prática de tudo. Por exemplo, hoje estou na assessoria executiva da Sanear e faço coisas absolutamente práticas o dia inteiro. Quando estava advogando na área de direitos humanos lidava com casos difíceis, angustiantes, durante todo o dia.

E como conciliar isso com o sonho, com a poesia? Isso é possível porque para mim uma coisa não está dissociada da outra. O sonho de transformação que me move para ir trabalhar todo dia é o mesmo sonho de transformação que eu ponho na minha poesia, mesmo que eu esteja falando do objeto mais íntimo. Isso faz parte de um processo de transformação e hoje em dia não consigo me separar, consigo ser inteira. E o PCdoB tem absoluta responsabilidade por essa minha identidade total, pois nunca um dirigente ou amigo do Partido me apresentou que não fosse assim: “Essa é Cida Pedrosa, poeta e advogada”.

O PCdoB me ajudou a construir uma identidade única das diversas facetas que eu sou, coisa que antes eu trabalhava de forma diferenciada. Claro, eu dizia um poema em um comício, dizia um poema para os trabalhadores, mas não conseguia me juntar de uma forma inteira. O PCdoB me ajudou profundamente a conciliar isso. Porque o Partido é o único partido que eu conheço que tem um respeito profundo à arte e aos artistas.

Até por conta de toda sua história, pois o PCdoB sempre esteve ligado a grandes artistas durante toda a sua história. Nesses quase 90 anos de história, ele sempre teve uma relação com a transformação e com a arte. Hoje o Partido vive um momento especial para a questão da cultura, hoje ele tem uma intenção e uma motivação de abrir-se e criar uma relação direta com os movimentos culturais.

COLETIVO:  FAZENDO A PAUTA CULTURAL DO RECIFE

Dentro desse processo, recentemente, o PCdoB criou o Coletivo de Cultura. Como ele vai funcionar em Pernambuco?

CP: O Estatuto do PCdoB prevê a criação de coletivos estaduais ligados a alguns temas para aglutinar determinadas forças. No caso da criação do Coletivo de Cultura isso se deu não só porque a proposta existe estatutariamente, mas porque o Partido tem vários militantes importantes nessa área que terminavam sempre atuando em outras bases, em outras áreas, e nunca na área de cultura. 

No ano passado o Partido realizou um seminário, o terceiro, onde reuniu militantes ligados à área de cultura de todo o Brasil para discutir a proposta de criação de um Coletivo de Cultura e nós saímos desse encontro com a tarefa de discutir a criação dos coletivos nos comitês estaduais.

Em Pernambuco isso já está avançado. A idéia é que o coletivo estadual aglutine não só a literatura, mas todos os segmentos da cultura. Isso porque o Partido quer se apropriar do conhecimento sobre as políticas culturais para poder interferir melhor nessa área, como também para que seus militantes possam travar a luta de idéias nos campos de cultura em que atuam.

Por exemplo, todo mundo sabe que sou do PCdoB e estou sempre com atuação cultural, mas nunca chego, por exemplo, em uma conversa sobre o assunto e digo: “Eu sou Cida Pedrosa, do Coletivo de Cultura do PCdoB”, por exemplo.” Eu digo: “Sou Cida Pedrosa, poeta, artista”. Eu não me identifico ali enquanto um ser partidário.

Na medida em que o Partido tem um Coletivo de Cultura, que eu esteja militando nesse coletivo, a companheira Márcia Souto, secretária de Patrimônio e Cultura de Olinda, Tereza Costa Rêgo, Rafael do Cuca e vários outros artistas e pessoas que militam na área da arte em Pernambuco estejam nesse coletivo, nós poderemos travar a luta de idéias nos espaços de política cultural dos quais participamos, e o Partido vai acumular conhecimento para interferir melhor nas políticas culturais, até porque estamos vivendo um momento muito interessante no País no que diz respeito à formatação de uma política cultural.

Para o Coletivo de Cultura ter vida e conseguirmos travar a luta de idéias junto aos movimentos de cultura, a proposta é criar uma grande ligação com quem faz literatura, artes plásticas, música, etc., para além da militância, temos de trazer amigos simpatizantes e a partir daí criar uma militância.

E para isso o Coletivo precisa ter vida, precisa fazer a pauta cultural da cidade. O Coletivo só vai existir, e ele vai existir, se nós conseguirmos pautá-lo como uma realidade dentro dos movimentos culturais de Pernambuco. E para isso ele tem de fazer parte da agenda e para fazer parte da agenda ele tem que estabelecer esse processo de encontro, quem sabe até de reencontro com um monte de gente, porque o PCdoB já fez isso muito bem e vai continuar fazendo muito bem.

Como você avalia a atual política cultural do governo Lula, especialmente no que diz respeito à criação dos pontos de cultura?

CP: São inegáveis os avanços das políticas culturais nos dois governos do presidente Lula e isso cria um reflexo enorme nos Estados e nos municípios. Isso porque hoje existe a democratização dos recursos, existe a descentralização dos recursos para os Estados e para os municípios, bem como a democratização do acesso a esses recursos. Isso melhorou profundamente.

Nós temos hoje uma política de cultura que é baseada em editais, ou seja, qualquer um que possa se organizar tanto do ponto de vista jurídico, a partir de uma entidade, de uma ONG, quanto do ponto de vista pessoal, pode ter acesso a um edital. Isso por si só já garante uma legitimidade muito grande ao processo. Uma grande novidade do governo Lula é a política das “células culturais”, que é o programa Cultura Viva, coordenado por Célio Turino, um camarada nosso do Partido.

O programa Cultura Viva prevê a criação de pontos de cultura em todos os municípios brasileiros. Começou com pontos de cultura ligados diretamente ao Ministério da Cultura, depois foi descentralizado e os recursos foram repassados para os Estados, que hoje estão administrando o programa.

O que são os pontos de cultura? Na verdade, é um mecanismo de fortalecimento de experiências que já existem. Não se criou coisas novas, na verdade se fortaleceu as iniciativas que já existiam. A novidade é que ela abrange desde, por exemplo, um maracatu lá de Nazaré da Mata até um grupo de mulheres que trabalham o parto natural, passando pelo coco de umbigada ou até o Interpoética, que é o site de literatura que eu coordeno.

O Interpoética existia há quatro anos de forma absolutamente voluntária, as pessoas que faziam não eram remuneradas, bancavam tudo por conta própria, com algumas ajudas pontuais como as das prefeituras de Olinda e do Recife, porque não se tratava de uma instituição. Então nós fizemos o que todo mundo fez: criamos uma instituição para gerir a iniciativa que já existia, apresentamos o projeto de ponto de cultura e ele foi aprovado.

O Interpoética hoje é um ponto de cultura com três linhas de ação: a que sempre fez, de divulgar a literatura de Pernambuco, é o maior site de literatura pernambucana, tem uma linha de inclusão digital dos poetas, porque por incrível que pareça é grande o número de escritores que ainda não sabe utilizar os novos meios de informação digital, e uma linha ligada diretamente às comunidades. Nós fazemos atividades de formação em poesia livre e de cordel, além de oficinas de resgate de memórias com idosos nas comunidades.

Atualmente, estamos trabalhando na comunidade de Caranguejo Tabaiares e vamos começar na Ilha de Deus e Brasília Teimosa, trabalhando poesia com crianças e jovens e resgate de memórias com idosos. O resultado disso tudo vai ser publicado no Interpoética, em um hotsite, para criar essa ligação direta de comunidade-poesia, poesia-povo.

Hoje o site tem publicadas poesias de 400 poetas, temos entrevistas exclusivas, onde registramos o pensamento de vários autores que não se encontram em canto nenhum, temos resenhas, artigos. Nós temos uma coisa que para mim é absolutamente inovadora, que faz a diferença do Interpoética, que é o desafio virtual que tem sido, inclusive, motivo de estudo na universidade.

Nós colocamos na internet uma rede de desafio de poetas populares, ou seja, você tem poeta que glosa um mote, manda para o site e inicia uma peleja virtual. É um dos nossos links mais acessados, mais interessantes e que tem sido citado por quem estuda poesia popular.

Por exemplo, o Bráulio Tavares, que é um grande poeta e estudioso paraibano que está no Rio de Janeiro, manda um mote e então um poeta que está lá no interior de Sertânia manda também e isso é organizado em uma mesma corda virtual. Antes tínhamos aquela corda na feira onde se pendurava o cordel, hoje temos uma corda virtual.

O Interpoética tem hoje uma inserção maravilhosa no interior, acho que 50% dos nossos acessos e das nossas conversas são com o povo do interior e isso é muito interessante. É maravilhoso! Até porque a internet é um meio de divulgação barato, o número de páginas é muito grande, e você tem uma chance enorme de registrar o que muitas vezes não pode registrar em papel.

Fonte: site do Vereador Luciano Siqueira