Luto: O samba cearense perde Dona Mocinha

Iraci de Souza Batista, a Dona Mocinha, morreu neste sábado (09/04), por volta das 15 horas, por complicações de diabetes. Ela era dona de um bar tradicional de samba na Praia de Iracema, localizado na rua João Cordeiro, por trás do Hotel Praia Centro.

Dona Mocinha

Dona Mocinha estava afastada da administração do bar por problemas de saúde. Por seu ponto de samba, sempre passavam puxadores de samba de escolas do Rio de Janeiro e São Paulo. Ela chegou a desfilar em escolas de samba cariocas como Império Serrano, União da Ilha e Portela.

Seja na Praia de Iracema, no bar que lhe tomou o nome emprestado; seja na Marquês de Sapucaí, desfilando de baiana pela União da Ilha, Dona Mocinha é o retrato da alegria e da folia do nosso Carnaval. Em entrevista publicada pelo Jornal O Povo e reproduzida pelo Vermelho/CE no dia 08 de fevereiro de 2010, Dona Mocinha fala sobre suas grandes paixões. Em sua homenagem, reproduzimos a seguir a íntegra do material:

Dona Mocinha, senhora da alegria

Iraci de Souza Batista nasceu em 24 de dezembro de 1935 numa casa localizada na Rua Padre Climério, 140, na Praia de Iracema. Filha de José Batista e Maria Amélia, foi o pai, sempre lembrado pela educação rígida, quem lhe deu o apelido que serviria para toda a vida, Mocinha. Era a forma dele dizer o quanto ela era prestativa nos afazeres de casa. “Meu pai dizia assim: -Ai, que é uma mocinha-“, lembra, sem esquecer o orgulho.

Dona Mocinha (agora com letra maiúscula para reafirmar a nova identidade) foi uma entre os 24 filhos do casal, dos quais somente sete vingaram, ela, Isabel, Elisa, Alice, Francisco, Francisca e Iracema. Casou com apenas 15 anos e, logo no ano seguinte, foi mãe pela primeira vez: de Raulina, professora aposentada, que hoje ajuda a cuidar da mãe. O segundo viria aos 20 anos, Raulino, que é o responsável pelo Bar da Mocinha, montado na mesma casa onde ela nasceu. O bar que se tornou ponto de encontro da boemia de Fortaleza foi uma forma encontrada, há 31 anos, de aumentar a renda de recebia como funcionária da Secretaria de Saúde do Estado.

Hoje, aos 74 anos, mantém a alegria quando lembra dos seus muitos anos de Carnaval, embora as lágrimas insistam em aparecer de vez em quando. A memória falha às vezes e foge principalmente nas datas, o olhar fica vago, mas logo ela volta ao assunto e abre outro sorriso. Suas alegrias agora vêm dos filhos e dos netos Hilton, Ítalo, Haurison e Amélia, todos adultos. Enquanto conversava com O POVO, Dona Mocinha pediu uma pausa para tomar água e explicou: “É que a gente conversou muito. Mas, eu gosto. Dou o maior dez pra uma conversa“.

A senhora nasceu naquela mesma casa onde hoje funciona o Bar da Mocinha. Como foi a sua infância? Que lembranças traz daquela época?

Pois, é. Eu sou de Fortaleza e nasci naquela casa. Eu nasci ali e andava de cavalo. Meu pai tinha dois cavalos. A gente passeava na casa… (risos). A gente ia na casa das “cotrovia“ do meu pai (mais risos).

E a senhora ia fazer o que lá?

Ia deixar dinheiro e conversar. Eu tinha uns dez anos. Eu ia sempre com o meu pai e com a minha irmã.

A senhora teve muitos irmãos. Tinha muita brincadeira dentro de casa? Como vocês se divertiam?

Nós éramos sete. A Isabel, Elisa, Alice, que morava no Rio de Janeiro, e o Francisco já morreram. Eu sou a última, a caçula. Minha mãe me teve com 50 anos. [Por conta disso, Dona Mocinha chamava a mãe de Vozinha] Nesse tempo num tinha boneca amiguinha, não. A gente brincava de fazer bonecas com paus e madeiras. Eu chamava minha irmã mais velha, a Neném, de mamãe e ela tinha sete filhos. O nome dela é Francisca. Eu ia pra casa dela e brincada com os sobrinhos que eram da minha mesma idade.

E desde pequena a senhora já gostava de Carnaval? Já brincava nessa época?

Eu sempre gostei de Carnaval, mas não podia brincar porque o véi [o pai] não deixava. Ele não queria que eu brincasse.

Por quê?

Porque naquele tempo as meninas não brincavam assim não, né. Não era legal. Eu tinha uma irmã, que ainda é viva, a Iracema & é Iraci e Iracema, as duas últimas & que já brincava. Ela gostava de namorar…

E a senhora acompanhava?

Não, no namoro, não. Eu brincava o Carnaval, e ela, não. Ela ficava só no namoro. Eu comecei a gostar de Carnaval quando ainda era mocinha, nova. Porque meu pai tinha uma mercearia e por lá aparecia Carnaval. Tinha a Corda Bamba, que era um bloco, que desfilava perto da minha casa.

O que a senhora lembra das suas primeiras festas de Carnaval?

Nessa época, não tinha negócio de rabo de burro, nem nada. A gente ia era dançar. Rabo de burro é os tarados, sabe? (risos)

Quem lhe deu esse apelido de Dona Mocinha?

Ah! Esse aí é bom. Olhe, eu comecei com esse apelido porque meu pai trabalhou 42 anos na alfândega, ali perto da praia. Ele tinha um depósito de madeira e eu ia ajudar junto com a minha sobrinha que é da minha idade, a Juraci. A gente ia ajudar ele na alfândega e também brincava. E quando meu pai chegava, eu dava a chinela dele, dava a toalha. Eu fazia isso por ele e meu pai dizia assim: “Ai! que ela é uma mocinha“, porque eu ajudava ele dentro de casa. Eu ia buscar a roupa dele e ajudava nas coisas de dentro de casa. “Minha filha é uma mocinha“ [dizia o pai]. Aí o apelido ficou e eu fiquei Mocinha.

A senhora casou cedo e logo teve seu primeiro filho. Como a senhora conheceu seu marido? Como foi o namoro de vocês?

Me casei com 15 anos e tive minha primeira filha [Raulina] com 16 e o Raulino eu tive com 20 e só são eles dois. E com 23 anos fiquei viúva. Naquele tempo, a gente não namorava, né. E aí eu casei cedo. O nome dele era Raimundo e ele muito bonito. Lá em casa, nós tínhamos uma mercearia e ele ia lá casa junto com uns meninos que iam dançar no bazar de música. Tu te lembra do bazar de música? (risos) Lá, eu conheci o Raimundo. Ele ia me buscar no colégio. Era assim, de 15 em 15 dias, ele passava na caminhonete em que ele trabalhava com comércio e ele me pegava pra namorar um pouco. Mas era muito difícil namorar.

Com sete anos de casada, a senhora ficou viúva. Como foi essa época pra senhora? Quais foram as dificuldades?

Foi um desastre. Com a perda dele, eu fiquei cuidando dos filhos. Eu não trabalhava nessa época. Tive que voltar a morar com meus pais. Levei meus dois meninos. Foi o maior desastre da minha vida (baixa a cabeça e chora).

Vamos passar para uma parte mais feliz. Como era tomar conta do Bar da Mocinha?

Eu trabalhei 30 anos na Secretaria de Saúde do Estado. As enfermeiras que trabalhavam comigo iam tudo lá pra casa. Eu fazia 20 quilos de panelada toda sexta-feira. Era uma panelada boa [Dona Mocinha toda ênfase no “boa“ e ri]. Hoje eu não posso comer panelada. Eu fazia sarapatel, feijão verde. O feijão verde eu ainda faço com muito queijo e maxixe. Iche! que o meu feijão é tão querido! Eu tinha uns 25 anos quando abri o bar. Tomava conta sozinha. Eu já trabalhava na Secretaria de Saúde e era muito amiga das enfermeiras. Dona Joilma, dona Jarina… Os filhos dela que iam lá em casa tomar uma cervejinha. Aí eu não cobrava, não.

A senhora já nasceu na Praia de Iracema. O que a senhora mais lembra do bairro quando a senhora era mais nova e o que mais mudou até hoje?

Olha, a Praia de Iracema… A gente andava ali na João Cordeiro, andava na Gonçalves Ledo, por onde hoje é o Dragão do Mar. Eu tomava banho cinco horas da manhã pra ninguém ver minhas pernas, porque o meu pai “ignorava“, não gostava. Ia sempre com ele. Meu pai tinha muito ciúme da gente. Mas, ninguém ouvia falar em crime. Prostituição sempre teve, mas era menos. Ninguém ouvia falar nessas coisas de hoje, não.

Mas a senhora ainda gosta da Praia de Iracema?

Gosto. Ainda é a minha cara. As casas eram muito bonitas. Era coisa antiga, né. Não tinha essas coisas desses apartamentos, não. Ainda acho bonito, mas era diferente.

E como era o Carnaval da Praia de Iracema nessa época?

Tinha escola de samba. Eu brincava só de longe, porque o véi [pai] não deixava, não. Nessa época, criança, não [podia brincar]. A festa era nas ruas. Eu gostava de serpentina que ninguém comprava. Os “inchirido“ dava e eu soltava serpentina e confete. Os namorados da minha irmã & ela era muito namoradeira, ela era o cão. Agora, ela era bonitona & me levavam pro carnaval. Era muita gente na rua. Tinha a escola Bamba, os Camarões, tudo pela Praia de Iracema. [O bloco] vinha do [bairro] Meireles e ia ali pertinho da nossa casa. Tinha muita música, marchinha de Carnaval… A gente ainda lembra das marchinhas. Tem muita marchinha que toca ainda hoje. Eu ainda gosto do Carnaval, mas antes era melhor porque não tinha tanta violência. Não tinha. 

Em 1979, a senhora fez parte da criação da escola de samba Girassol. Como era essa escola? 

Ah! Foi a primeira vez que eu saí de baiana. Já ia me esquecendo da Girassol. Eu fazia as minhas roupas & nesse tempo eu costurava. Eu bordava na mão e fazia a minha diferente das outras. Tinha decorador, estilista, tinha o Praxedes, Decartes Gadelha, que animava. Eu gostava de costurar pra todo mundo. Eu tomava conta das baianas. Na minha roupa tinha muito brilho, dourado, tinha chapéu. Ainda tenho os retratos em casa. Tinha também a bateria, a comissão de frente… 

Além do Carnaval de Fortaleza, a senhora também brincou no Rio de Janeiro. Como foi a sensação de desfilar lá? 

Eu comecei a me interessar pela ala das baianas. Nós ficamos amicíssimos. Desfilei lá pela primeira vez na União da Ilha, já de baiana. Ave Maria! Era uma alegria sem tamanho. Eu costurava pra fora e passava o ano juntando dinheiro. Nesse tempo meus filhos já tinham terminado de estudar e já era depois do bar. Depois eu desfilei na Caprichosos de Pilares, Império Serrano, Portela, Grande Rio. 

Mas qual é a preferida? A escola do coração? 

União da Ilha. Se eu lhe disser que eu recebi uma camisa lindíssima que mandaram pra mim e ta lá em casa. Todo ano eu recebo. Eu visto a calça branca e minha blusa. Eu rio e choro toda vida que lembro.

Como era a sua preparação cada vez que ia lá? Sei que a senhora fez muitos amigos no Rio. 

 Ave Maria… (chorando). Quando eu ia, preparava as coisas que o Wilson e o Cláudio gostavam. Feijão verde, que eu fazia lá, queijo, cachaça. Levava tudo pra lá e fazia a festa. Eu também fui até a Globo, ali onde a Fátima Bernardes dá o Jornal Nacional.

Quem conseguiu pra senhora uma vaga na Ilha foi o Carlito Pamplona. Como a senhora pediu a ele? 

Eu disse assim para o doutor Carlito: “Arranje pra mim pra eu desfilar na União da Ilha“. E ele dizia: “Mocinha, é tão difícil“. Aí eu dizia: “Doutor Carlito, que difícil coisa nenhuma. Dê seu jeito“. Aí pronto, eu fiquei nessa moleza e acabou dando certo. [Ela para um pouco e lembra] Eu dei todas as minhas fantasias pras escolas de samba daqui. Eu doei. Foi a maior besteira e não foi. Eu trazia tudo, até o chapéu. Eu peguei amizade com o dono de uma loja daqui e ele me dava as contas e eu fazia os colares, brincos. 

Quem mais a senhora conheceu enquanto desfilava no Rio de Janeiro? 

Lá eu conheci a Elke Maravilha. Eu tenho até um retrato com ela. A Elke Maravilha é uma louca. É muito engraçada, divertida. Todo dia ela usa um batom. Eu dizia assim: “Elke tu toma uma cervejinha?“. Ela dizia: “Não, Dona Mocinha“  [o nome] Dona Mocinha pegou muito, viu & “Eu tomo é whisky“. Eu fui com amigos do pagode (do Bar da Mocinha). Tinha até um doutor sem-vergonha que implicava comigo porque eu saia na ala das baianas. O doutor Carlito Pamplona dizia assim pra mim: “Mas Dona Mocinha, como é que a senhora já arranjou amizade com todo mundo na Ilha?“. Ele ficava bestinha! Eu dizia: “Doutor Carlito, o senhor não sabe fazer o que eu faço!“, que era costurar. 

Ainda hoje sua casa é um ponto de encontro no Carnaval e no Pré- Carnaval de Fortaleza. Do que a senhora gosta mais? 

Eu sempre vou lá. Eu tô aqui [na casa do filho, em Iparana], mas no Carnaval eu tô lá. Eu não posso ouvir uma música que fico dançando. E outra coisa, quando eu chego lá eles sabem o samba que eu gosto, que é o da União da Ilha. Agora eu gosto mais do Pré-Carnaval, porque a gente fica mais alegre. Vai é gente por causa de mim. Meu filho diz assim: “Mamãe, o povo todo atrás da senhora. Cadê a Mocinha? Cadê a Mocinha?“. 

A senhora gostou da homenagem que a Prefeitura fez à senhora no ano passado? Quando fez da sua casa um dos polos do Carnaval

Gostei, gostei. E eu nem tinha votado nela [Luizianne Lins], mas que eu gostei, gostei. Eu fiquei muito feliz. Foi muito bonito. Fizeram mais de mil máscaras com o meu rosto

E a senhora gostou das máscaras? 

Não. Eu não achei bonito. Eu não gostei porque eu não sou feia daquele jeito, não (e gargalha). 

Ao longo dos anos a senhora ficou conhecida como uma referência para o Carnaval daqui de Fortaleza e já recebeu várias homenagens. Tem alguma delas que a senhora goste mais? 

Ai! O Carlinhos Palhano fez uma música em minha homenagem. Eu achei muito bonita. A música ficou mais bonita que a máscara.

Hoje, com 74 anos, a senhora ainda está com energia e faz questão de estar presente no seu Bar durante os dias de Carnaval. O que a festa representa pra senhora?

Ah, o Carnaval eu não largo, só quando morrer. Tem até um ditado que eu dizia quando ia botar uma dose e o pessoal pedia o choro: “Em casa de samba não tem choro“. Ele representa muita coisa porque pra mim não existe sem Carnaval. Representa alegria, lembranças, recordações. Quando eu chego no Rio, é a mesma coisa. Esse cartaz todo que eu tenho aqui, eu tenho no Rio. A mesma atenção.

Quem conhece a Dona Mocinha, conhece como uma pessoa alegre. A senhora é alegre? A que atribui sua alegria hoje? 

Eu sou alegre. Pra mim, não tem tristeza. Eu toda vida fui feliz. Logo, todo mundo gosta de mim e eu gosto de me sentir querida. Hoje, o que me dá felicidade são meus netos, meus filhos, que são os dois que eu tive. Eu gosto muito dos meus dois filhos e meus quatro netos. São eles que me dão alegria… E meu Carnaval, claro.

PERFIL

Iraci de Souza Batista nasceu em 24 de dezembro de 1935, na Praia de Iracema, na mesma casa onde, há quase 32 anos, fechados em agosto, ela montou o Bar da Mocinha. Reduto da boemia conhecido pelas suas rodas de samba, o bar é uma das suas maiores paixões. A outra é o Carnaval que, desde pequena, quando ganhou o apelido de Mocinha, ela via de longe, sob os olhos do pai José Batista. Casada aos 15 anos, mãe de dois filhos e viúva aos 23, ela sempre procurou manter a alegria como marca registrada. Também integrante da ala das baianas da União da Ilha do Governador, escola tradicional do Rio de Janeiro, Dona Mocinha é apaixonada por Fortaleza e uma das principais brincantes e incentivadoras do Carnaval da Capital

Fonte: O POVO