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A São Paulo prodigiosa de Kassab só existe na novela da Globo

Tal como a personagem delirante de Renée Zellweger no filme A Enfermeira Betty (2000), Gilberto Kassab talvez pense viver dentro de uma telenovela. A São Paulo apregoada nos discursos do prefeito — uma metrópole prodigiosa e moderna, imune às intempéries e à politicagem — só pode ser vista, atualmente, em Tempos Modernos, a nova “novela das 7” da TV Globo.

Por André Cintra

Não é preciso passar pelas ruas paulistanas para saber que São Paulo — a “cidade-locomotiva” que “não pode parar” — simplesmente parou. Administrada por um dos piores prefeitos de sua história, a capital paulista mal pôde comemorar seu 456º aniversário, em meio a sucessivos recordes de alagamentos, trânsito e mortes.

Os poucos e atabalhoados depoimentos de Kassab evidenciaram ainda mais o descaso da gestão demo-tucana em São Paulo. Soldado do governador paulista, José Serra, e craque na arte de dar declarações oficiais que serão rapidamente desmentidas pelos fatos, o prefeito orientou a população a “ficar tranquila”. As ações da Prefeitura, segundo ele, “estão surtindo efeito”. O que ocorreu “não foi um caos”, “não houve falhas”.

De duas, uma: ou Kassab precisa pedir licença do cargo por incapacidade mental, ou virou garoto-propaganda da novela da Globo. Viver tranquilamente numa São Paulo sob chuva, sem “falhas” nem “caos”? Só mesmo nessa ficção exibida nos fins de tarde pela emissora da família Marinho, com cenários estilizados e uma São Paulo maquiada.

Uma novela problemática

O autor de Tempos Modernos, Bosco Brasil, invocou sua “grande paixão” pelo Centro para “fazer uma São Paulo linda e limpa”, com uma estética higienizante. Na trama, o cinema pornô situado ao lado da Galeria do Rock foi convertido em cinema de arte, e uma sapataria antiga virou livraria. “Vou mostrar na novela o Centro como eu acho que deveria ser e como pode ser daqui a um tempo”, explicou-se o autor.

Bosco é um dramaturgo de valor — quem viu Novas Diretrizes em Tempos de Paz que o diga. Em princípio, não há nada de errado em sua opção de edulcorar a imagem da região central paulistana, nem no objetivo declarado de “sensibilizar as autoridades de que o Centro precisa ser revitalizado”. Mas uma novela, a exemplo das demais artes narrativas, não vem com bula ou legenda.

Uma vez lançada ao público, a obra se insere em outros contextos e fica sujeita a todo tipo de interpretação. Gillo Pontecorvo formulou A Batalha de Argel (1966) como um libelo libertário, antiguerra. Nunca poderia imaginar que, sob o governo de George W.Bush, o Pentágono recomendaria a exibição do longa para inspirar os soldados americanos no Iraque. O brasileiro Tropa de Elite (2007) foi planejado como filme-denúncia contra o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), mas tinha tantas imprecisões e ambiguidades que acabou tachado de “fascista”.

Da mesma forma, Tempos Modernos, lançada neste estratégico ano eleitoral de 2010, se assenta como uma luva na propaganda eleitoral demo-tucana em São Paulo. “Podem me chamar de ingênuo ou até desinformado, mas considero que o cenário retocado, limpo, do centro de São Paulo apresentado em Tempos Modernos (…) está muito longe do real — mas tem tudo para ser o nosso futuro. A emissora talvez esteja apenas antecipando o que vamos ser”, escreveu Gilberto Dimenstein, o mais tucano dos jornalistas da grande mídia.

Fator cracolândia

Que a novela tenha êxito e aqueça as boas iniciativas de recuperação da cidade. Mas não será no atual governo que São Paulo e seu Centro vão se revitalizar. Desde que herdou a Prefeitura de José Serra, Kassab acumula uma gestão deserta de ousadia e paupérrima de ideias. Para muitos dilemas crônicos da cidade, a gestão, sob uma austeridade de fachada, aposta em pressupostos e medidas que chegam a ser primários.

A política de combate à cracolândia é um exemplo disso. Em outubro de 2007, Kassab anunciou o fim repentino da maior “boca de fumo” de São Paulo, pela qual passavam cerca de 2 mil usuários de crack por dia. “Não existe mais a velha cracolândia deteriorada, a serviço da droga, a serviço do crime. Cada vez mais essa é uma página virada na história de São Paulo”, discursou ele em meio à implantação do Nova Luz — uma iniciativa essencialmente privatista, embalada como projeto de revitalização do Centro.

Mas a cracolândia, em operação há mais de 20 anos, não apenas se expandiu por mais e mais ruas do Centro como também levou a Prefeitura a postergar a implantação do Nova Luz. Com a falência da Operação Cracolândia, Kassab se viu forçado a lançar outro plano — o Centro Legal —, que autorizou 20 órgãos públicos a agirem em conjunto no combate ao tráfico de crack. Até aqui, devido à falta de coordenação e aos resultados pífios, trata-se de uma nova catástrofe.

Enquanto ouve promessas de revitalização, a população do Centro despencou de 411 mil habitantes em 1996 para 328,5 mil em 2008. A região, entretanto, concentra metade dos 8 mil moradores de ruas contabilizados pela Prefeitura. No caos que tomou São Paulo após as chuvas de dezembro e janeiro, as ruas centrais foram ainda as que mais registraram novos pontos de alagamento.

Dos "prefeitos biônicos" aos prefeitos-ventríloquos

Se Kassab foi malsucedido até nessa região mais privilegiada — e prioritária em seu governo —, pouca expectativa sobra para os moradores da periferia, que são os mais prejudicados pelo caos da cidade. A queda de aprovação do prefeito (de 46% em 2008 para 28% em 2009, conforme o Ibope) é um indício de que os paulistanos estão mais atentos à sua realidade e desconfiados das promessas do Executivo municipal. O que dizer, então, dos 57% que, segundo a mesma pesquisa, admitem que deixariam a cidade se pudessem?

Vai ficando cada vez mais evidenciado que a gestão demo-tucana faz mal para São Paulo e para os paulistanos. A relação Serra-Kassab faz lembrar os chamados “prefeitos biônicos” — que eram nomeados de acordo com os interesses da ditadura militar (1964-1985) e atuavam estritamente de acordo com o regime. Um dos mandatários daquele tipo, o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, chegou a ser exonerado pelo governador Laudo Natel apenas por declarar que São Paulo sofria de “encefalite urbana” e precisava “parar de crescer”.

O expediente do prefeito biônico é coisa do passado — mas, em São Paulo, foi substituído pelo prefeito-ventríloquo Kassab, incapaz de tomar uma medida sequer sem o aval do governador e presidenciável Serra. A cidade segue sem planejamento, e não há drama humano — real ou fictício — que comova os atuais governantes. São Paulo parou não porque precisava parar, mas, sim, porque ficou nas mãos de administradores duvidosos.

Oxalá mesmo que a metrópole de Tempos Modernos vire realidade. Antes dessa transformação, porém, é mais provável que a credibilidade da gestão demo-tucana seja dilapidada pelas enchentes paulistanas. Depois de sofrer da síndrome da enfermeira Betty, Kassab talvez se esqueça de novela e acabe mesmo como o “velho marinheiro” de Samuel Taylor Coleridge: “Ah, sozinho, sozinho, inteiramente só, num largo, largo mar”.