Abelardo da Hora, um grito em cada imagem 

Como Miquelangelo, também Abelardo da Hora tem o direito de tocar numa de suas estatuetas e dizer: Fala… Não o diz, ele, porque no rosto de cada mulher, homem ou menino de algum de seus quadros, há perplexidade e fome de mãos dadas em face do desamparo.

abelardo da hora

Como numa procissão de famintos, os traços são vivos, de ruínas góticas. Tudo fala. O mais recente trabalho do escultor e pintor é uma sequência de cenas: um babalorixá dando passes nos filhos de santo, mulheres carregando os filhos doentes – ouve-se gritos de socorro -, uma outra se unge de benzeduras de uma negra; um dentista, segurando o alicate como um fórceps, arranca o dente da paciente; um médico bate com o martelo no joelho da doente; outro com a ausculta no peito de uma mulher; por último, a sala de cirurgia com o paciente deitado, enfermeiros e médico, passivos e impotentes. A odisseia tem o nome de O mal e a cura, mede 20 metros de comprimento e quatro de altura, tem 1.700 pedras de cerâmicas esmaltadas e vitrificadas. Está no Hospital Miguel Arraes, inaugurado agora no município do Paulista.

Abelardo e Margarida Lucena da Hora são casados há 61 anos; conheceram-se em 1948, na primeira exposição de obras do artista, na Associação dos Empregados do Comércio do Recife. Não se lembra, ele, das peças então expostas; já engendrou tantas e em qualidade, que responde prosaico, como se tivesse esquecido a cor do primeiro lenço que usou: “E eu sei…!” O número 307 da casa da rua do Sossego é residência e museu do artista, a oficina de trabalho e um terreno cujo tamanho ele não sabe estimar. O terreno está cimentado, tem o tamanho aproximado de um campo de futebol, está pronto para receber o Instituto de Artes Abelardo da Hora. “É para ensinar aos moços as artes plásticas, como nos tempos da Sociedade de Artes Modernas do Recife.” O instituto já tem personalidade jurídica, o diretor executivo é Abelardo da Hora Filho; o diretor cultural é Daniel da Hora, neto. Abelardo, o patriarca, tem sete filhos, 20 netos e seis bisnetos. Quantos netos o senhor tem? “E eu sei…!” – responde no tom já conhecido. Daniel o acode com um riso cúmplice, de absolvição. A casa tem mais de 200 metros quadrados. As obras se espalham pela sala, no corredor, no chão, nas paredes, na copa, sala de jantar, na oficina. São quadros, esculturas, bustos. Miguel Arraes, de concreto armado, está em pé, no tamanho real, a mão estendida como num discurso; do outro lado, há carrancas ferozes, todas com quepes e presas caninas no lugar dos dentes; não estão de corpo inteiro. “São As bestas do apocalipse”, explica ele, referindo-se aos militares golpistas de 64. “Já fui preso 70 vezes; a primeira foi em 58, quando troquei balas com a polícia para defender A Folha do Povo. Atirei no general Viriato de Medeiros, que era secretário de Segurança Pública. A bala passou raspando as pernas dele, e ele pulava como o diabo!” Casado com a irmã de Augusto Lucena, prefeito que então dera apoio aos militares, fez o seu busto. O rosto não está crispado, como os dos militares; a feição é solene, indiferente à história, sob o chapéu. E oculto no cimento escuro, marmorizado. Abelardo não fala de influências na sua obra, não é um surrealista como Portinari, mas herdou deste o gosto pela temática social. Com um traço próprio, sua obra é a saga do povo em conflito e de bem com suas crenças. Abelardo não tem preconceitos, visto que o povo por ele modelado tem as cismas da rotina, um ponto de interrogação em cada ruga.

Está com uma exposição itinerante – Amor e Solidariedade. São 50 esculturas, três séries temáticas de desenhos, uma série de desenhos vários, três conjuntos escultóricos, imagens em gesso e cerâmicas. 25 toneladas. Conforme Daniel da Hora, em Belo Horizonte 150 mil pessoas viram a exposição; em Brasília, 100 mil; no Rio de Janeiro, 150 mil.No momento está no MASP, São Paulo. Ainda vai para Caracas, Paris, João Pessoa e para em Recife, no Parque Dona Lindu. “Em São Paulo – estima ele – até o final da exposição, 1 milhão de pessoas terão visto as peças.” Detalhe: a exposição está vizinha à de Auguste Rodin.

Por Marco Albertim