Fórum Social Mundial: 10 anos em busca de ‘outro mundo possível’

Em 2001, cerca de 20 mil pessoas se reuniam em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Brasil, na construção de "um outro mundo". Surgia ali o Fórum Social Mundial (FSM), que tinha como objetivo desfazer a dominação das regras econômica impostas pelos países mais ricos no Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça).

Com o passar dos anos, o FSM se firmou e conquistou espaço nacional e internacionalmente, com participação crescente de pessoas e multiplicação de Fóruns Regionais, Nacionais e Locais em diversas partes do mundo. Em 2009, nove anos após a primeira edição do FSM, Belém, no Pará (Brasil), recebeu 150.000 participantes. Um levante de gente unida no propósito e pensamento de que um mundo melhor e mais justo é mesmo cada vez mais urgente.

Em 2010, o FSM completa dez anos de processo com uma edição especial de avaliação da caminhada, que acontecerá na Grande Porto Alegre, entre os dias 25 e 29 de janeiro. Além disso, 27 Fóruns Sociais se realizarão ao longo do ano de forma descentralizada com direcionamento ao FSM de 2011, que será realizado em Dakar, na África.

Em entrevista à ADITAL, Francisco Whitaker Ferreira, o Chico Whitaker, um dos idealizadores do FSM, fala sobre os avanços e desafios dos 10 anos de Fórum, a importância do espaço para os movimentos e organizações sociais, e as expectativas para os próximos anos.

Em 2010, o Fórum Social Mundial completará 10 anos. Que avaliação o senhor faz desses dez anos de processo? Acredita que o FSM tem cumprido seu objetivo inicial?

Acredito. O objetivo inicial do FSM era o de romper a dominação do "pensamento único" em que se baseava o Fórum Econômico Mundial de Davos: não há alternativa senão o mercado como motor e regulador da atividade econômica. E deste Fórum os "donos do mundo" (multinacionais e dirigentes dos países mais ricos) ditavam as regras para a vida econômica do planeta.

Era o início de um novo século, em que recém se começava a superar, com manifestações de protesto e resistência contra o domínio do mundo pelo capital, a perplexidade causada pela queda do Muro de Berlim, que simbolizou o desmoronamento de toda uma experiência de construção do socialismo. Centrado no "social" e não no "econômico", o primeiro Fórum Social Mundial foi então organizado a partir de outra afirmação: "outro mundo é possível". Com isso ele reacendeu a chama da esperança e da utopia.

Mas a forma como ele foi organizado perseguia outro objetivo: o de facilitar a superação das barreiras e preconceitos que tornavam extremamente fragmentado esse novo ator político que surgia, a sociedade civil. Como resultado, em poucos anos a mobilização social então chamada de luta "anti-mundialização" passou a ser chamada de movimento "altermundialista", ou seja, de construção de alternativas a uma globalização submetida aos interesses do capital. E por toda a parte começou-se a utilizar a palavra "outro" para expressar o sentido das buscas que se faziam na luta por um mundo com mais justiça e mais paz.

Em 2001, reuniram-se em Porto Alegre entidades, organizações sociais e ONGs contra a hegemonia capitalista e em busca de "um outro mundo". No próximo ano, o FSM volta à cidade gaúcha para comemorar a 10ª edição. O que mudou nesses 10 anos de Fórum?

O Fórum de Janeiro de 2010 na Grande Porto Alegre é o primeiro de uma série de 27 Fóruns Sociais que se realizarão pelo mundo afora durante esse ano, rumo ao próximo Fórum Social Mundial que terá lugar em janeiro de 2011 na África, em Dakar, no Senegal. Esse foi o formato (Fóruns Sociais em todo o mundo) adotado no processo FSM em 2010. O FSM não "volta" portanto a Porto Alegre. Lá se realiza um Fórum Social especial porque nele está contido um grande seminário de avaliação dos dez anos de caminhada, organizado pelo grupo de entidades e pessoas que promoveram em 2001 o primeiro FSM.

Os Fóruns Mundiais realizados nesses dez anos foram todos diferentes uns dos outros, cada um aprendendo com as lições do anterior. Ao mesmo tempo multiplicaram-se os Fóruns Regionais (como o do Sudeste Asiático em 2003, os Europeus – com sua quinta edição em 2010, em Istambul – e o Norte-americano, com sua segunda edição também este ano, em Detroit), os nacionais e os locais.

Mobilizações mundiais significativas foram discutidas e propostas a partir de Fóruns, como a grande Manifestação pela Paz e contra a guerra no Iraque, em fevereiro de 2003, em que quinze milhões de pessoas foram às ruas. Em 2004 um Fórum Social Mundial foi pela primeira vez organizado em outro país, com sucesso – na Índia, onde a participação de movimentos populares foi marcante. Os formatos foram também se alterando, intercalando-se entre os Mundiais outros tipos de manifestação, como em 2006 os três Fóruns quase simultâneos em três continentes, um Dia Mundial de Ação em 2008, a série de Fóruns agora em 2010. Firmaram-se algumas orientações básicas – contidas numa Carta de Princípios cada vez mais aceita como referência geral – como o caráter do Fórum como um espaço aberto, a horizontalidade na organização de atividades nesse espaço, a auto-organização dessas atividades, a recusa de um documento final único, a não designação de dirigentes ou porta-vozes, o respeito à diversidade.

As temáticas discutidas foram se ampliando, como em 2009 onde sua realização na Amazônia estimulou a abordagem da questão ambiental e da problemática dos povos originários de todos os continentes, a partir das lutas indígenas do Brasil e da América Latina.

Diversas intuições dos organizadores foram igualmente se desdobrando, como a adoção da regra do consenso nas decisões organizativas, e a busca da união dentro da diversidade como grande objetivo a ser alcançado no processo. E a participação foi quase sempre crescente, das 20.000 pessoas do FSM de 2001 às 150.000 do FSM em Belém, em 2009.

Da primeira edição até agora, episódios significativos marcaram o mundo, como, por exemplo, a Crise Financeira Mundial. Como o FSM lida com essas questões?

O episódio mais significativo vivido pelo mundo na década foi, sem dúvida, a recente Crise Financeira, que desmontou o mito da capacidade de auto-regulação dos mercados. Muitos, inclusive, disseram que ela veio dar razão ao FSM como espaço de proposição de outro tipo de globalização.

Mas esses temas são discutidos pelos participantes dos Fóruns dentro de uma visão de conjunto da série de crises que vive o mundo – alimentar, política, energética, ecológica… O que levou neste ultimo Fórum, de 2009, a que os indígenas andinos propusessem a realização em 2010 de um Fórum Temático sobre o que chamaram de "crise de civilização". O FSM enquanto FSM não pode se posicionar frente a essas crises, uma vez que é somente um espaço de encontro e articulação. Mas seus participantes vêm construindo, no processo, cada vez mais redes e alianças para atuar mais eficazmente

Apesar de ser um processo lento, já é possível afirmar que as propostas do Fórum começam a se concretizar como verdadeira alternativa para "outro mundo"?

Sem dúvida o processo do Fórum vai permitindo cada vez mais visualizar como deve ser construído o mundo que queremos, e que valores devem reger nossas vidas para escaparmos daqueles impostos pela lógica capitalista. Ao mesmo tempo vai-se descobrindo que outras formas de fazer política são necessárias, e que mudar o mundo implica na multiplicidade e numa enorme variedade de intervenções na realidade. Começa a crescer a consciência da importância de assegurar que os bens comuns da humanidade não possam ser privatizados nem transformados em mercadoria, como é exigido pela dinâmica essencial do capitalismo.

A economia solidária, por sua vez, juntamente com formas de comércio justo, vai se espalhando pelo mundo afora. A esperança no "outro mundo possível" tem influído também na eleição de dirigentes políticos, pelo menos na América Latina. Mas talvez a crise ecológica seja atualmente a que mais pode fornecer alternativas capazes de "acordar" as pessoas para a necessidade urgente de mudar nossos modos de produção e de vida.

Qual a importância do Fórum para os movimentos sociais? Eles têm participado de forma efetiva do processo?

O Fórum existe para que aqueles que consideram que outro mundo é possível – além de necessário e urgente – possam se reconhecer mutuamente, aprender uns com os outros, descobrir convergências, construir novas alianças. Como um encontro aberto para toda a sociedade civil, ele é um espaço por excelência para os movimentos sociais que considerem que tudo isto é útil para eles, e que estejam interessados em ganhar força unindo-se com outros movimentos sociais, com ONGs e com as diferentes entidades que congregam os vários setores da sociedade civil. Assim eles só não usam essa oportunidade que lhe oferecem os Fóruns quando estão mal informados sobre os objetivos do processo FSM, ou estão bloqueados por preconceitos ou isolados pelos seus modos de atuação. Mas estes obstáculos à participação vão sendo pouco a pouco superados.

Há uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais no Brasil assim como em outros países da América Latina e do mundo. Nesse aspecto, o FSM serve também como espaço de fortalecimento das lutas e da descriminalização desses movimentos. Pode falar sobre isso?
Estas tentativas de criminalização dos movimentos sociais fazem parte da estratégia dos que não querem mudar o mundo – porque nele, como ele é, são privilegiados – para amedrontar e paralisar os que questionam seu poder e lutam por justiça. O tema é evidentemente discutido nos Fóruns e neles nascem estratégias e alianças para fazer frente a essas tentativas, formando-se redes de resistência e lançando-se campanhas de denúncia. A eficácia dessas alianças depende naturalmente da convicção, dos que delas participam, da importância dessa resistência.

A edição anterior contou com a participação de governantes do Equador, Bolívia, Venezuela, Paraguai. Como se dá esse diálogo com os governos ditos progressistas ou de esquerda?

O objetivo do processo do FSM de reforçar a atuação da sociedade civil implica em assegurar sua autonomia em relação a governos e partidos. Por isso mesmo nem governos nem partidos podem, enquanto tais, organizar atividades nos Fóruns. A presença de governantes ("ditos progressistas ou de esquerda") depende portanto de convites a eles dirigidos por participantes de cada Fórum.

Mas dentro dessa perspectiva a tendência não é a de oferecer palanques mas de organizar diálogos, já que a sociedade civil atua tanto pressionando como controlando governos, além do que possa fazer por ela mesma. Pode-se dizer que, na verdade, as atividades nos Fóruns de que participam governantes têm sido muito mais importantes para esses governantes do que para os participantes dos Fóruns.

Quais as perspectivas e os desafios para edições do FSM dos próximos anos?

É preciso tornar cada vez mais consciente entre organizações e movimentos sociais que a busca de sua articulação e união é condição essencial para que se enfrente o monstro da ideologia capitalista, que domina inteiramente corações e mentes em todo o planeta. O processo Fórum pode ser um ótimo instrumento para essa tomada de consciência. Mas falta muito para que ele seja visto dessa forma por todos os militantes e dirigentes desses movimentos e organizações. E há ainda muitas regiões do mundo – mal começamos a torná-lo conhecido na África e menos ainda na Ásia – em que o processo Fórum ainda não chegou a ter uma presença significativa.

Mas tanto essa expansão como o aprofundamento da consciência da utilidade e das potencialidades do processo passa pela construção de consensos entre os que organizam os Fóruns. O desafio para mim é o de conseguir que prevaleça a visão de conjunto e de longo prazo, apesar da extrema urgência da mudança. Mas muitas vezes a angústia por resultados palpáveis leva a tomar caminhos que podem se bloquear mais adiante. A experiência dos dez anos de caminhada me faz, no entanto, crer na continuidade e no enraizamento do processo.

Fonte: Adital