Pedido de indenizações às vítimas do Sítio Caldeirão é extinto

Ação civil pública em favor das vítimas do Sítio Caldeirão causa polêmica na Justiça e entre parentes remanescentes

Sítio Caldeirão

Sem haver sequer julgamento do mérito, foi extinto o processo da ação civil pública, com pedido de indenização de R$ 500 milhões, por danos morais, aos herdeiros dos camponeses mortos no Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, localizado neste município, ocorrido em 1937. Segundo dados extraoficiais, esse número pode ter chegado a 1.000 pessoas, entre homens, mulheres, idosos e crianças. A ação, conforme a Advocacia-Geral da União (AGU), foi movida pela Associação Cearense de Defesa da Saúde do Fumante e Ex-Fumante (Acedesfe), o que acabou sendo um dos empecilhos para o andamento do processo.

A Organização Não Governamental SOS Direitos Humanos afirma ter entregue a tempo a documentação com um novo CNPJ e com o novo nome da entidade. Alega que os relatórios do processo não chegaram a ser lidos. Mas pesquisadores e até um familiar de vítima afirma não terem conhecimento desse pedido de indenização e questionam o procedimento da SOS Direitos Humanos.

O responsável pela ação, o presidente da ONG, o advogado Otoniel Ajala Dourado, afirma estar recorrendo ao Tribunal Federal da 5ª Região, para que haja um pedido de avaliação do processo pelo Juizado da 16ª Vara, em Juazeiro do Norte. A Associação que defendia os fumantes, conforme foi alegado pela Justiça, não deveria estar numa causa de indenização voltada à reparação dos direitos humanos, e aí veio a mudança para SOS Direitos Humanos, no andamento da ação.

Ocultação de cadáver

A Associação defendia a indenização por práticas de genocídio, desaparecimento forçado de pessoas e ocultação de cadáveres supostamente praticados por militares federais e estaduais da 10ª Região Militar, do 23º Batalhão de Combate do Exército. Atualmente, o órgão funciona como o 23º Batalhão de Caçadores da Força Aérea Brasileira e das Polícias Militar e Civil do Estado do Ceará. Além disso, a autora defendeu que os atos aconteceram entre os meses de maio a novembro de 1937, contra mais de 1.000 camponeses católicos seguidores do beato José Lourenço, que liderava o movimento messiânico nas terras do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto.

Com isso, a Procuradoria da União do Ceará (PU/CE) alegou que o Ministério da Aeronáutica somente foi criado em 20 de janeiro de 1941, com o Decreto-Lei nº 2.961. Portanto, não poderia ser a Força Aérea a responsável pelo evento ocorrido no ano de 1937, como defendeu a então Associação.

Considerando que o evento que motivou o pedido de indenização aconteceu há 71 anos, seria materialmente impossível nos dias de hoje localizar os corpos dos camponeses. Além da Procuradoria, no dia 2 de julho de 2009, o Ministério Público Federal no município de Juazeiro do Norte (CE) decidiu pela suspensão do processo, uma vez que a apelante optou por entrar com a ação na Justiça com o antigo nome fantasia, e não com o nome atual, que é SOS – Direitos Humanos.

Ação na OEA

A informação divulgada pela Assessoria de Imprensa da AGU, segundo Otoniel, aconteceu de forma tardia, já que a extinção da ação aconteceu no mês de setembro deste ano. O mesmo processo foi encaminhado pela SOS Direitos Humanos para o Tribunal Regional Federal, em Recife, no mês de outubro. Ele afirma que também deu entrada com uma ação na Organização dos Estados Americanos (OEA), com o mesmo pedido de indenização, em abril passado. Neste caso, a instituição internacional solicitará um posicionamento do governo brasileiro sobre o caso, que ele coloca como violação dos direitos humanos. Ele deu entrada na ação ano passado, em Fortaleza, na 1ª Vara da Justiça Federal.

Mas a questão é polêmica, até mesmo quando entram avaliações de pesquisadores e até de familiar de uma das vítimas que se tem conhecimento de ter vivido no Caldeirão. Para o professor Domingos Sávio Cordeiro, doutor em Sociologia e professor do Curso de Ciências Sociais da Urca, que escreveu o livro "Um beato líder: Narrativas memoráveis do Caldeirão", das pessoas remanescentes do Caldeirão que entrevistou em sua pesquisa, sabe de apenas uma delas que ainda está viva, de nome Antônio Inácio, residente no Sítio Ramada, zona rural do Crato. O pesquisador afirma que no período em que realizava levantamentos para o seu livro, seu Antônio falou que não conhecia nenhum caso de morte de morador do Caldeirão durante a invasão, nem posterior. "De maneira que ele não seria um informante adequado para falar sobre a chacina", explica. No geral, conforme Sávio, os seus entrevistados não testemunharam nenhuma morte durante ou após a invasão de 1936.

"A meu ver, parece esquisito que se peça uma indenização para descendentes de camponeses mortos, quando tais descendentes não se apresentam. Desconheço em toda literatura sobre o Caldeirão o nome de um único descendente de vítima do suposto genocídio", destaca Sávio Cordeiro.

Familiares de Severino Tavares, um dos homens próximos do beato José Lourenço, por arrebanhar trabalhadores de várias cidades para o Sítio Caldeirão, residem no Crato.

Para Sávio, mesmo existindo ainda esses parentes, parece não se enquadrarem na ação proposta, em decorrência de terem morrido no confronto com a Polícia, e não durante o massacre na chamada Mata dos Cavalos, Serra do Cruzeiro.

Descendente questiona ação civil

O bisneto de Severino Tavares (homem próximo do beato José Lourenço), e neto de Eleotério Tavares, que também viveu no Caldeirão, Sandro Leonel, desconhece o processo encaminhado pela ONG SOS Direitos Humanos e afirma não ver nenhum mérito, já que pouquíssimas famílias foram contactadas sobre o assunto. "Tenho informação de que eles estavam passando procuração para reivindicar os direitos. Algumas dessas pessoas contatadas vieram me procurar", diz Sandro, ao acrescentar que acha esse processo estranho, já que a pessoa que pede a indenização não possui ligação histórica com o Caldeirão e não tem envolvimento dos próprios pesquisadores. "Eu mesmo não fui contatado", ressalta.

Os registros históricos relatam uma invasão ao Caldeirão em 1936 e a batalha sangrenta, que classificam como primeiro bombardeio aéreo do Brasil, aconteceu em 1937. Na verdade, explica Sandro, foram jogadas granadas e uso de metralhadoras na região.

O próprio Otoniel Ajala, da SOS Direitos Humanos, diz que falta o envolvimento das instituições da região, como as universidades e os pesquisadores. "As pessoas parecem ter medo, não sei do que", indaga. Ele diz que é preciso uma reparação e reconhecimento por parte do governo desse genocídio. "O Ministério Público, nesse caso, está sendo o inimigo do povo", afirma.

Todo um material, com filme e vários levantamentos sobre a chacina foram encaminhados pela SOS Direitos Humanos para a Justiça, inclusive com afirmações de militares, que disseram mais tarde, segundo Otoniel, que promoveram a "sangria", sem o menor esboço de reação por parte dos camponeses do Caldeirão.

Se houve um crime com mil pessoas ou mais, também há uma cova, que deve ser localizada. A SOS Direitos Humanos lançou uma campanha no dia 12 de outubro, em nível nacional, disponibilizando cartazes e adesivos para carros, na busca da cova coletiva de vítimas do genocídio, ocorrido na localidade denominada de "Mata dos Cavalos", ou Serra do Cruzeiro. "Onde estão os católicos mortos no Sítio Caldeirão? Em algum lugar da Chapada do Araripe…", questiona e aponta a pista inicial para a procura quase que improvável dos resquícios do massacre.

Para Otoniel Ajala existem vítimas da mesma forma que existem agressores e o próprio Governo Federal deve fazer uma campanha para chamar essas pessoas e ter uma mídia voltada para isso. "Nossa associação não tem dinheiro para colocar no jornal e trazer essas pessoas. A ação seria para o MP chamar a atenção da mídia, que é a nossa maior aliada", explica. De acordo com o advogado, o povo cearense precisa saber mais sobre o massacre.

Fonte: Diário do Nordeste