Cristiane Bonfim – 1ª CONFECOM: avançar para democratizar

Há muito a ser transformado para garantir a livre expressão dos cidadãos brasileiros e a formulação e a execução de políticas públicas de comunicação que os tenham como foco principal.

Quase 25 anos após o fim da ditadura militar, há territórios nos quais a democratização de fato não chegou. É justamente uma dessas fronteiras que a 1ª Conferência de Comunicação (Confecom) quer começar a atravessar. Afinal, os brasileiros têm o direito de repensar um setor no qual as regras são inexistentes ou estão ultrapassadas.

“Todo o indivíduo tem o direito de procurar, de receber e de difundir, sem consideração de fronteiras, as informações e ideias por qualquer meio de expressão”, diz o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo texto é de 1948. Esse artigo pode ganhar um significado mais próximo da realidade do nosso País a partir do que ocorrer em Brasília, entre os dias 14 e 17 de dezembro, durante a 1ª Confecom.

Cerca de duas mil pessoas da sociedade civil não empresarial, empresarial e do governo de todos os estados e do Distrito Federal vão debater o tema comunicação no Centro de Eventos Ulysses Guimarães. As mais de seis mil propostas a serem analisadas e votadas dão a dimensão da pluralidade dessa demanda reprimida por um espaço público para discutir o tema. Apesar de algumas limitações impostas, a Confecom pode começar a transformar as estruturas de um sistema de comunicação pensado por alguns para beneficiar poucos desde o início.

Revisão

Em 1º de março de 1988 a Federação Nacional dos Jornalistas lançou o manifesto intitulado “Governo Sarney: 527 outorgas em menos de três anos de governo”, no qual defendia a revisão completa das concessões outorgadas desde o regime militar; e para corrigir a arbitrariedade das decisões, propôs ainda a criação de um Conselho Nacional de Comunicação ao qual seria atribuída essa competência que dependeria de aprovação posterior no Congresso Nacional.

Um salto de quase 22 anos e algumas evidências deixam claro o quanto é necessário transformar a comunicação no Brasil. O Congresso Nacional é um dos responsáveis, por exemplo, pelo Conselho de Comunicação Social – previsto na Carta de 1988 e instalado apenas em 2002 – estar desativado desde 2007. Outro problema apontado pela Fenaj, ainda à época da aprovação da Constituição, as outorgas, continuam sendo “aprovadas às escuras”, como tem denunciado a deputada federal Luiza Erundina, na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados.

Com a mobilização e a representatividade alcançadas pela Confecom, este é o momento ideal de a sociedade brasileira pressionar por mudanças nas concessões de radiodifusão e em muitos outros pontos não menos polêmicos para que se avance rumo à democratização da comunicação brasileira.

Propostas

Os jornalistas brasileiros elaboraram propostas que tentam dar conta dessa multiplicidade de demandas, principalmente no que se refere aos marcos regulatórios e mecanismos de controle público para o setor. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) defende, por exemplo, a implantação de mecanismos de transparência e controle público no processo de outorga e renovação, inclusive com o estabelecimento de contrapartidas sociais dos radiodifusores e com a criação de um fundo de financiamento à radiodifusão pública, comunitária e educativa/universitária.

Um Código de Ética para o jornalismo brasileiro, como um mecanismo de controle social que visa garantir a qualidade da informação veiculada, é uma outra proposição da categoria. Nas normas a serem definidas estariam previstos, entre outras questões, princípios éticos e compromissos dos jornalistas e dos proprietários e dirigentes dos veículos.

A regulamentação profissional dos jornalistas e de outros profissionais da comunicação também é fundamental como instrumento de controle público e, defesa das liberdades de expressão e de imprensa e da democratização da comunicação. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de acabar com a obrigatoriedade do diploma vai, portanto, de encontro às garantias dos critérios de responsabilidade social dessa profissão e deve ser repudiada.

Num cenário de auto-regulamentação ou de regulamentação nenhuma defendido por muitas empresas de comunicação, é preciso oferecer garantias à população, como a criação de uma nova e democrática lei de imprensa que assegure os principais avanços previstos no projeto de lei 3.232/92. A agilização do direito de resposta, a pluralidade de versões em matéria controversa e a obrigatoriedade do serviço de atendimento ao público são algumas questões contempladas pelo projeto, substitutivo do ex-deputado Vilmar Rocha.

A Fenaj também faz a defesa do jornalismo como necessidade social. Os interesses das empresas de comunicação representam a principal restrição à plena liberdade de expressão e de imprensa, ao deturparem ou vetarem informações, ao restringirem a autonomia intelectual dos jornalistas e ao submetê-los a condições de trabalho cada vez mais adversas.

É preciso ainda fortalecer o sistema público de comunicação e a educação para leitura crítica da mídia. Por isso, a Fenaj reivindica que a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) implemente conselhos de redação e outros mecanismos de participação da sociedade na construção e fortalecimento dos veículos públicos. Assim como ressalta a necessidade de lutar por uma política nacional que inclua no currículo escolar do ensino fundamental e médio disciplinas sobre a mídia e de apoiar a criação de conselhos comunitários de educação e reflexão sobre o setor.

Preparação

A Conferência Nacional acontece após meses de discussão e após a realização de várias etapas regionais e das etapas estaduais. Nas fases de preparação e construção da representatividade de seus atores, foram discutidas e construídas propostas pelos mais diversos segmentos. O destaque desse processo pode ser creditado a um novo ingrediente desse contexto: a participação ativa e fundamental dos movimentos sociais. A preparação da Confecom não foi um debate apenas de especialistas e de profissionais do setor.

Representantes dos movimentos sociais e da esquerda brasileira têm plena consciência de que há algumas limitações no processo da Conferência, pois algumas regras criadas para manter a participação dos detentores dos meios de produção no escopo do encontro dificultam que o diálogo seja mais amplo.

É inegável, entretanto, que o fato de ocorrer uma discussão pública a respeito do tema comunicação no Brasil, já pode ser considerado um avanço. Sabe-se que não será nesse exato momento, no qual existe uma demanda represada que vai muito além do previsto no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que se resolverão todos os males. Mas, ao mesmo tempo, fica claro que esse espaço democrático é uma significativa conquista dos movimentos sociais brasileiros, que tanto reivindicaram essa Conferência. Talvez o mais importante agora seja garantir a continuidade do debate, até mesmo como um ponto de partida para transformá-lo efetivamente em ação.

Outro ponto fundamental, e que está fazendo uma diferença enorme em relação ao que havia e o que hoje há, está justamente na força da mobilização e na justeza da formulação de propostas por parte dos mais diversos atores sociais. Essa talvez seja a alteração fundamental em relação ao que se passou em 1988. Lá, ao longo da Constituinte, a força popular foi suplantada pelo poder dos lobbies engendrados pelos donos da mídia. Agora, além da existência de inúmeros instrumentos de denúncia (blogs, sítios informativos e um número maior de meios de comunicação alternativos nas mãos de entidades e movimentos sociais), temos maior maturidade e uma discussão mais qualificada e mais plural até mesmo entre nós atores sociais sem vínculo empresarial.

Não será uma tarefa simples superar o domínio da comunicação por parte dos “donos da mídia”, que muitas vezes agem como posseiros ou grileiros de veículos que operam mediante concessão pública. Mas dessa vez a sociedade pode ser alertada e certamente vai optar por mais transparência nas discussões e na formulação de uma verdadeira política pública para a área. A Confecom é um instrumento. Basta que se saiba usá-la de forma adequada e que haja o compromisso coletivo de que ela não pode se encerrar em si mesma.

Cristiane G. Bonfim é jornalista profissional diplomada, Secretária-Geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Ceará, titular da Comissão Organizadora da Conferência Estadual e coordenadora do Comitê pela Democratização da Comunicação.

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