Luiz Carlos Antero – Réquiem da Honra para Bergson

Um dia denso, belo, menos fúnebre que radiante, quando uma urna mortuária não logrou esconder um gigante. Aquele ensolarado seis de outubro se inscreveu entre as ocasiões especiais na trajetória de cada um, convertidos juntos em multidão, e também nos anais da história de uma jovem nação.

E o seu fundamento foi um só: o reencontro com um velho e querido amigo e camarada de todos que se foi, de modo inapelável, aos 25. Bergson Gurjão Farias se manteve assim, amado, beirando as quatro décadas de ausência. Foi tanto tempo que sua chegada parecia inacreditável. Tanto assim, saudade tanta, que o rei sol não se esmaeceu na moldura de um céu azul, de brigadeiro, desafiando a incredulidade e alguma certeira certeza de tanta gente que se banhava de suor e lágrimas.

Do desembarque — no ambiente reservado da força aérea — de uma pequena urna mortuária ao espaço onde movimentou muitas lutas na reitoria da UFC, o trânsito parou à passagem do seu cortejo. E recordei os inúmeros momentos em que as passeatas de 68 também paravam o trânsito, sob seu comando e de seus pares no DCE, como um alerta aos cidadãos e cidadãs: aqui passam as bandeiras e flâmulas da liberdade. E, vivo nesse cortejo triunfal, mais uma vez Bergson parou o trânsito e mais uma vez comandou uma concentração no Benfica. Dessa vez, com honras de Estado, concentrou a face humana da República, tratando de reuni-la aos seus.
Nunca mais, desde que as trevas do AI-5 enevoaram a vida naquelas bandas do corredor vermelho, se tinha visto tanta gente reunida. Foi algo impressionante. Lembrou aquele dia 21 de junho de 2002, em Xambioá, quando a população da cidade atacada pelos militares 30 anos antes saiu às ruas em profusão. Foi se encontrar com a História diante das cinzas de João Amazonas e das bandeiras flamejantes nos mastros, acariciadas pelos versos do hino nacional. Assistimos aquilo tudo com a mesma sensação do inacreditável, desde o repicar dos sinos à chegada de uma pequena embalagem mortuária incapaz de comportar outro guerreiro de avantajada estatura. E lá se vai mais um gigante ao encontro de outros naquele lugar que alguns chamam de céu, outros chamam de panteão. O panteão dos heróis, como avalizaria Thiago de Mello, se não são mártires porque vitoriosos: está aí aberto o aceiro da liberdade recoberto de bandeiras e flâmulas para forrar o caminho que percorrerão, que percorremos, rumo ao futuro da perene e inigualável aventura humana.

E o suor da canícula se misturou às lágrimas em cada remanescente, parodiando o cinema, a arte imitando a vida e ali imitando a arte, quando se perguntou a quem vive o que são lágrimas na chuva. E Bergson esteve ali, de um modo conhecido, palpável. Em cada palavra pronunciada dos versos de Cecília Meireles, quando a lembrou Sérgio Miranda, de cada orador, alguns deles protagonistas das fervilhantes assembleias estudantis do clube dos estudantes, o CEU, alguns outros, guerrilheiros nas selvas do Araguaia.

E Bergson, sapeca e brincalhão, passeou pelo juízo de todos e de cada um. E, quem sabe, “cheirador oficial da família”, como o nomeou o bom pai Gessiner, não pousou como um beija-flor sobre a mana Ielnia e adjacências da mãe Luiza e Tânia, sobre as frontes de Regilena e Luzia, suas irmãs de luta na mata? Com certeza sorriu naquele discurso do jovem presidente da UNE, que sacudiu seus pares sessentões. E disse, com uma boa gargalhada de satisfação: “Esse é de luta”. Percorreu com os que falavam as memórias das batalhas guerrilheiras, e se reencontrou, na UJS, com o brado de combate: “Tarda, tarda, tarda mas não falha, aqui está presente a juventude do Araguaia!”.

Diante da presença de altos dignitários do governo em contraste com a vilania hostil e carregada dos generais fascistas, perguntou: “Avançamos?”. E a resposta veio de pronto: “Avançamos sim e devemos isso a você e aos que tombaram; com essa memória iremos adiante, além do limite!”

Depois de tudo, com a honra dos justos, em atenção às alvoradas, descansou em paz, pois ninguém é de ferro. 

Luiz Carlos Antero é  Mestre em Sociologia, escritor e jornalista. No início anos 70 atuou no Jornal dos Esportes, O Globo, Última Hora e Diário de Noticias. Assessor parlamentar no Congresso Nacional desde 1995.