Os agradecimentos de Tânia Gurjão Farias

O Vermelho/CE conseguiu com exclusividade o material escrito por Tânia Gurjão Farias, irmã de Bergson. A carta seria lida durante a solenidade mas devido à forte emoção, não foi pronunciada. Leia a seguir a carta na íntegra:

Sepultamento Bergson

Às 18h do dia 17 do mês de maio do ano da graça de 1947, nasce em Fortaleza à Rua Dom Joaquim, uma criança de sexo masculino, terceiro filho do comerciário Gessiner Farias e sua jovem esposa Luiza Gurjão Farias, de prendas domésticas. Recebeu o nome de Bergson.

Desde muito cedo mostrou-se curioso e perspicaz quando com pouco mais de três anos de idade perguntou a uma tia-avó viúva porque ele não tinha filho, obtendo a resposta: “Porque Deus não quis que a tia Bia tivesse”. Bergson prontamente oferece-se para ensiná-la a ter um. Tia Bia era senhora da Igreja, filha de Maria e profundamente religiosa. Ao ouvir o gentil oferecimento alarmou-se de tal maneira que ficou parada e sem fôlego, só mostrando reação depois que ouviu: “A senhora entra no quarto, fecha a porta, deita na cama e manda chamar a Dona Dudu (a parteira) que foi assim que mamãe fez”.

De outra feita, quando teve dor em um dente de leite, foi levado ao dentista. Sentado na cadeira de paciente, observava tudo com muita atenção. De repente, descobriu um tubo fino de onde jorrava água dentro de uma pequena bacia e um ventilador funcionando sobre uma estante alta. Virou-se para mamãe e perguntou com lógica maior que a sua idade: “Mamãe, esta água vem daquele cata-vento?”.

Este é o Bergson que eu conheci, com quem brinquei, briguei; o meu irmão com quem só pude conviver até os 21 anos; o meu amigo, companheiro, o protetor e beijador oficial da família nomeado pelo papai. Não preciso nem contar o quanto ele aproveitou-se do cargo.

Outro acontecimento que mostra seu temperamento e a sua personalidade aconteceu quando Bergson tinha aproximadamente 16, 17 anos. Ele estava sentado na varanda de casa estudando quando um senhor humilde e mal tratado pela vida encostou-se no muro dizendo: “Moço, me dê um dinheiro pra eu pagar um sangue pois minha mulher está grávida e precisa de sangue”. Bergson olhou para o senhor e respondeu: “Ê, companheiro, ta difícil. Eu também não tenho dinheiro mas tenho sangue. Serve?”. Ao receber a resposta afirmativa do desesperado brasileiro, colocou-o dentro do carro e foram para Santa Casa de Misericórdia.

Em 1969, Bergson conversando com o papai falou da necessidade de sair de Fortaleza pois aqui ele não via mais perspectivas de futuro. Havia sido expulso da UFC e seguiu pra São Paulo, posteriormente para a região do Araguaia. A família não tinha ideia do que estava acontecendo no Araguaia nem que ele tinha ido pra lá.

O Estado Brasileiro ainda está devendo às vítimas da chacina do Araguaia e aos familiares, primeiramente o direito à verdade dos fatos acontecidos na região, seguindo-se o direito de cultuar-se a memória dos que lá tiveram suas vidas covardemente tiradas, sem que lhes fosse concedida nenhuma chance de defesa. Quais crimes foram a eles imputados?

Atrevimento? Audácia? Sim! Mas isso não são crimes e sim características de pessoas idealistas e sonhadoras. Por que rotulá-los de guerrilheiros? Na verdade, eram jovens guerreiros lutando pela volta de um Estado Democrático de Direito ao nosso país.

Quando foi comunicada a morte de Bergson no Araguaia a minha Tia Maria e a mim, eu particularmente não acreditei e acho que demorei 37 anos para aceitar a morte dele. Sempre existiu a esperança de ele estar vivo refugiado em algum lugar.

A propósito da nossa tia Rita Marque, que por três vezes representou a nossa família em comitivas que se dirigiram ao Araguaia com o objetivo de encontrar quaisquer informações sobre os bravos guerreiros que tombaram nos combates ocorridos lá. Seria uma grande alegria a presença nesta solenidade desta amada tia que por motivo de saúde não pode estar aqui, mas que tinha o Bergson como um filho homem que não teve.

Então veio a confirmação pelo Ministro Paulo Vanucchi, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, de ser o X-2 os restos mortais do meu irmão. O primeiro momento foi de surpresa e paralisia para em seguida nos envolver um sentimento de felicidade pela possibilidade de um reencontro com o Bergson. Isso que está acontecendo agora.

No entanto para a realização deste reencontro foi necessário o trabalho e empenho de uma rede de brasileiros: da Anistia, dos Direitos Humanos, dos grupos Tortura Nunca Mais, dos grupos de familiares, da imprensa e de pessoas apaixonadas pela história, idealismo desses jovens brasileiros. Agora agradecemos de todo o coração o apoio e a solidariedade para com a nossa família. Também estamos unidos com os outros familiares que ainda aguardam este reencontro com seus entes queridos e que também merecem um sepultamento digno.

Nossa família considera um privilégio e um golpe de sorte o Bergson ter sido o primeiro a ser encontrado, segundo a ser identificado e terceiro devolvido para que pudéssemos sepultá-lo. Era o sonho da minha mãe: morrer só depois que enterrar o filho. Hoje este sonho está sendo uma realidade para a nossa família mas continuamos solidários às famílias que não tiveram o mesmo privilégio.

Agradecemos o apoio recebido por todos que colaboraram durante estes 37 anos para que esta solenidade hoje fosse possível. Aos amigos, nossa gratidão. E você, Bergson, meu querido irmão, agora volta ao seio da nossa família. Descanse em paz.

Tânia Gurjão Farias