Luzia Reis: “Dei parte de minha juventude pela democracia”

Na tarde desta terça-feira, 29 de setembro, o Vermelho/CE conversou com Luzia Reis, sobrevivente da Guerrilha do Araguaia. Hoje com 60 anos, a baiana relembra a vida difícil que teve no Araguaia, recorda a convivência com Bergson Gurjão Farias, conhecido na região como Jorge (por medida de segurança, os militantes adotavam outros nomes para não serem identificados), e avalia a importância da Guerrilha do Araguaia na luta pela democracia no país.

Carregando uma bolsa com documentos, cópias de material guardado durante anos, fotos e livros, Luzia chega para conversar com o Vermelho. Durante o bate papo, o semblante varia entre o sorriso largo acompanhado de olhos brilhantes e a seriedade que o assunto exige.

A entrada no PCdoB aconteceu no início de 1968 quando ainda atuava no movimento estudantil secundarista. Em 1969, Luzia ingressa na Universidade no curso de Ciências Sociais. “Os ideais de liberdade e o sonho da construção de uma sociedade mais justa e socialista me levaram pra lá”, afirma a baiana. Foi aos 21 anos que Luzia seguiu para a região do Araguaia. “Minha chegada lá coincide com a história de Bergson. No começo de 1972, cheguei na região acompanhada por Paulo Rodrigues. Ficamos debaixo de uma árvore, com o sol já morrendo, esperando o companheiro que iria nos buscar. Logo avistamos Jorge numa canoa, com sorriso largo. Foi ele quem me recebeu”, relembra Luzia.

A ex-guerrilheira descreve Jorge como um rapaz alto, magro, com a calça dobrada até o joelho. “O Paulo nos apresentou: Jorge, esta vai ser a Lúcia. Lúcia, ele é o responsável pelo grupo e pela sua adaptação. Sorridente, Jorge me deu um abraço de boas vindas. Seguimos pelo Rio Araguaia e chegamos até São Geraldo”, detalha. Chegando na localidade, Luzia relembra, Jorge a levantou e montou-a numa mula. Montada no animal viajou durante três horas noite adentro, por picadas mata afora, atravessando igarapés que davam na cintura dele. Durante o trajeto, muita conversa, para colocar em dia os assuntos com o Paulo. “Lembro quando o Jorge disse que ele e os mosquitos estavam felizes com a minha chegada”, revela entre sorrisos. “Foi um jeito carinhoso de me dar boas vindas”.

Ao chegar a uma das casas do destacamento “C”, Jorge a apresentou aos companheiros. “Convivi também com Áurea (Elisa), Arildo (Ari), José Toledo (Vitor), Dower (Domingos) e Tobias (Josias), Dinalva (Dina), Antonio (Antonio) José Francisco e o pessoal do grupo Pau Preto, Jaime a Regilena, Maria, Cazuza, Kleber, Rosalino e Daniel. A nossa casa era sem parede e a cobertura era feita de folhas do açaizal. Dormíamos em redes e havia ainda o local fechado para armazenar os mantimentos”. A rotina no acampamento, segundo Luzia, era rígida. “Às seis horas da manhã a gente levantava e fazia cerca de 40 minutos de exercícios físicos, recuados na mata para não chamar atenção. Na volta, tomávamos banho nos igarapés e em seguida, a primeira alimentação do dia. Só então seguíamos para a distribuição das tarefas. Enquanto alguns iam para a roça juntamente com os moradores da região cultivar milho, mandioca, batata, por exemplo, outros cuidavam da caça e outros ainda cuidavam da cozinha”.

A importância de “Jorge” no acampamento

Segundo Luzia, Jorge tinha um papel importante no acampamento. “Ele era uma pessoa muito especial tanto para mim quanto para o grupo. Todos gostavam muito dele. Jorge tinha uma maneira de ser que se destacava dos demais. Era ele quem recebia os recém-chegados, cuidava da adaptação de todos. Sempre tinha uma palavra de estímulo e apoio. Ele tinha uma expressão de entusiasmo e ânimo. Nunca vi Jorge nervoso, nem nos piores momentos. Tudo nele era leve. Jorge era um líder”, relembra.

O contato de Bergson e Luzia no acampamento era próximo e paciente. “Ele me ajudou muito para que eu superasse as dificuldades da nova vida. Ele era um entusiasta, me preparou e incentivou. Lembro que nunca tinha visto uma arma e foi Jorge quem me ensinou a manuseá-la. Desmontava espingarda para me mostrar como utilizar a arma”, revela.

Luzia afirma que a Guerrilha do Araguaia pode ser dividida em duas partes: antes e depois da chegada do Exército na região. “Antes, o clima era ótimo. Jorge até brincava dizendo pra gente não se acostumar com aquela vida boa. Sempre estávamos acompanhados por moradores e violões. Jorge era festeiro, um pé de valsa. Ele era muito feliz no que estava fazendo”, afirma. Numa dessas noites tranquilas, o encontro de Bergson e Genuíno (ambos militaram no PCdoB e no movimento estudantil do Ceará e não se encontrava há anos) chamou atenção. “Aconteceu no destacamento C. Eles se abraçaram forte. Alegres, conversaram a noite inteira, davam risadas. Deviam estar relembrando as coisas do Ceará”, supõe.

A tensão da retirada para a mata

“Com a chegada do Exército, as coisas mudaram. Era muita tensão. A gente sabia que isso  podia acontecer mas não imaginávamos que seria tão cedo”. Mesmo nos momentos de extrema preocupação, Luzia reforça a personalidade de Bergson. “Lembro de todos nervosos, menos o Jorge. Ele estava sempre exalando tranquilidade e nos passava segurança. Após uma semana que batemos em retirada para dentro da mata, três companheiros adoeceram de malária, sequer conseguiam caminhar. Era ele quem segurava a barra”, revela.

Luzia relembra que, escondidos na mata, Josias, um dos guerrilheiros, pediu para ir embora. Citando este como exemplo da liderança e da habilidade de conciliar que Bergson tinha, a ex-guerrilheira detalha. “Com aquele jeitinho dele, Jorge conseguiu acalmar e convencer Josias a esperar retomarmos o contato com a Comissão Militar, priorizando a segurança não só de Josias mas de todos. Os outros companheiros correriam risco caso fossem descobertos. Foi com paciência e argumentos que ele conseguiu convencê-lo. Todos corriam para ele pois, de forma coerente, sempre colocava as coisas no lugar”.

A emboscada que vitimou “Jorge”

Atarefada com outras atividades, Luzia não estava com o grupo quando Jorge foi vítima de uma emboscada. “A morte dele foi digna de um herói. Ele foi procurar um morador para saber de uma encomenda de mercadorias que ainda não havia chegado. Ia em busca de gás, sal e fumo. A sua espera, uma emboscada. Houve troca de tiros. Ao invés de se proteger, Jorge deu cobertura para que os companheiros que estavam com ele conseguissem fugir ilesos. Ele foi metralhado nas pernas. Caído, o executam com uma baioneta”.

Luzia ainda se emociona quando comenta a perda precoce de Jorge. “Foi uma perda em todos os sentidos. Jorge foi o primeiro guerrilheiro a ser morto na região. A gente não esperava que fosse perder companheiros tão rapidamente e muito menos que fosse logo ele, exemplo de unificação, firmeza e convencimento”.

A prisão

Pouco tempo depois da morte de Jorge, Luzia, conhecida na região da Guerrilha como Lúcia, também foi vítima de uma emboscada. Na volta de um dia de caça, a baiana ouve um tiroteio perto do acampamento. Imaginando que seus companheiros Dower e Dagoberto que lá estavam haviam sido atingidos por tiros disparados pelos militares, Luzia se escondeu na mata. “Fiquei escondida por três dias e três noites e só então fui buscar ajuda na casa de Raimundo, morador da região. Lá eles me deram água, comida e informações. Disseram que eles tinham sido presos e pediram que eu voltasse no dia seguinte na mesma hora que eles iriam me ajudar a entrar em contato com o ‘Pedro Onça’, como eu queria”. Quando retornou, Luzia foi surpreendida. A casa estava cheia de militares e a combatente foi presa.

O inferno da tortura durou seis meses. “Fui presa, mas não tinha nenhum processo contra mim. Oficializar o processo era admitir a existência da Guerrilha do Araguaia. Eles não podiam assumir as atrocidades que cometeram com a gente. Negaram durante anos”, afirma.

Mesmo após libertada, o pesadelo da perseguição acompanhou Luzia. “Voltei para a casa dos meus pais no interior da Bahia. Durante anos, fiquei atordoada, fiz tratamento. As forças da repressão continuaram me perseguindo, iam ate Jequié com ameaças, exigiam que eu me apresentasse mensalmente no Quartel da Mouraria. Não podia sair da Bahia e exigiram que eu assinasse documentos. Durante quase dois anos, fiquei em casa. É como se eu não existisse para a sociedade”.

A identificação de Bergson

Após a confirmação oficial dos restos mortais de Bergson, Luzia vibrou. “Fiquei muito emocionada quando Diva Santana me avisou”. Por dias comemorei. Lutei muito por isso. A sensação era de dever cumprido. Para mim, era uma questão de honra”, revela. Para a ex-guerrilheira contemporânea de Bergson, a ossada catalogada como X-2 era mesmo dele. “Sempre achei que os primeiros que foram assassinados foram enterrados no cemitério de Xambioá. Em expedições, os moradores sempre apontaram o local onde o ‘Jorginho’ estava enterrado. Todos sabiam e não se tomava nenhuma providência. Só bastava a confirmação oficia”.

O Papel das Mulheres na Guerrilha

“Valentes, corajosas, determinadas, centradas”. Estas são as características que Luzia aponta ao se referir às mulheres guerrilheiras. “Tivemos um papel importante neste cenário. Demonstramos que homens e mulheres podem estar de mãos dadas em qualquer luta.  A força da mulher é tão grande quanto a do homem. Tínhamos uma relação de carinho e consideração, mas sempre com senso de igualdade. No Araguaia não tinha essa de sexo frágil”.

Quando presa, Luzia foi fotografada. Na expressão, uma mistura de força e doçura. O retrato que marcou a trajetória da baiana ainda arranca comentários de Luzia. “Aquela foto representa a força da mulher. Naquele momento estava disposta a morrer, mas com dignidade”, reforça.

Os ensinamentos da Guerrilha

Aos 60 anos, Luzia trás consigo alguns ensinamentos da Guerrilha. “Hoje dou muito valor à vida. É preciso avaliar os erros, os acertos e tirar ensinamentos. O mundo hoje não é o mesmo e nem a política. A realidade nos mostra que há outras formas de luta” ratifica.

Questionada se voltaria a fazer tudo novamente, Luzia afirma: “Se fosse tudo naquela mesma conjuntura e tivesse as mesmas convicções, iria. Hoje minha luta é em prol do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ). Considero imprescindível a paz mundial para o desenvolvimento dos povos e para a construção do socialismo”.

A influência da Guerrilha do Araguaia na construção da democracia brasileira

Luzia afirma que a Guerrilha foi um dos caminhos que os brasileiros tiveram que percorrer em busca de uma sociedade justa e democrática. “Os guerrilheiros abriram este caminho oferecendo suas vidas para construir uma democracia popular. A primeira etapa foi alcançada. Dizer que a morte desses heróis foi em vão é desconhecer a história e ignorar a realidade”, reforça. Segundo a baiana, apesar de 34 anos do fim da Guerrilha, ainda se fala naqueles anos. “Sabemos que muito foi conquistado. Esta abertura política foi regada pelo sangue dos combatentes do Araguaia e de tantos outros que deram a vida por isso. A geração de hoje precisa conhecer essas pessoas que acreditaram neste sonho”.

Para Luzia, as transformações no Brasil e no mundo, exigem mudanças na forma de se fazer política, e ela tem consciência de que foi importante neste processo de transformação. “Também me sinto responsável por todas essas conquistas. Dei parte da minha juventude à luta pela democracia brasileira”.

De Fortaleza,
Carolina Campos

Fotos: Inácio Carvalho