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Aldo Arantes: por uma segurança pública como direito humano

Para enfrentar a grave situação da violência, o Ministério da Justiça realizará, entre 27 e 30 de agosto, a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública. O evento contará com a participação de amplos segmentos da sociedade e representantes do aparato d

Quem já assistiu a um filme de bangue-bangue sabe que o xerife era tudo nas pequenas cidades do Velho Oeste norte-americano. No meio do antro de marginais e desesperados, só mesmo alguém como o velho e bravo John Wayne para garantir a lei naquele fim de mundo. No Brasil, o espírito do xerife violento, materializado na idéia da violência que combate a violência, ganhou força com o conceito de segurança nacional adotado pelo viés autoritário do Estado. E o assunto, relegado a segundo plano na agenda política dos governos, partidos e movimentos sociais, até agora recebeu pouca atenção.


 



A fim de enfrentar esta discussão, a Fundação Maurício Grabois realizará uma Mesa Redonda, em Brasília, no dia 16 de abril, na qual será discutido o tema “Democracia e Segurança Pública” e o texto-base elaborado pelo Fórum Nacional Preparatório da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública para a Conferência. “Romper com o atual modelo de segurança pública é um importante objetivo no caminho do aprofundamento da democracia em nosso país. E este objetivo se tornará mais viável na medida em que esta bandeira seja incorporada pelos movimentos sociais e pelos partidos comprometidos com os interesses do nosso povo”, diz Aldo Arantes, representante da Fundação Maurício Grabois no Fórum.


 



Nos meses de abril e maio serão realizadas as conferências municipais; e em junho e julho as estaduais, das quais sairão os representantes para a Conferência Nacional. “A Fundação Maurício Grabois e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) têm grande interesse nesse debate e conclamo os camaradas de todos os Estados a enviar o máximo de representantes para a Mesa Redonda do dia 16 de abril”, enfatiza Aldo Arantes. Ele explica que nesse evento serão debatidos os pontos que a Fundação Maurício Grabois e o PCdoB levarão como propostas de emendas no curso dos debates da Conferência.  


 


Organizações criminosas armadas


 



A importância do tema, segundo Aldo Arantes, decorre do avanço do processo democrático brasileiro, que exige uma nova política de segurança pública. Assegurar ao cidadão a proteção do Estado em lugar da violência do aparato policial — que atinge sobretudo a juventude pobre — deve ser o objetivo. Ele afirma que a iniciativa de convocar a Conferência é essencial para a democracia. Aldo Arantes cita o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça, que enfatiza uma mudança de paradigma centrada na garantia de segurança ao cidadão — o que representa “uma mudança de 180 graus”. “O debate está ganhando corpo no país, com vários segmentos da sociedade se mobilizando para a Conferência”, destaca. “Por isso, faço um chamamento para que todos os Estados se esforcem para enviar representantes do Partido”, enfatiza.


 



Aldo Arantes lembra que a gravidade do problema está presente nos noticiários e na vida do povo, em particular da população pobre. Ele cita que segundo o Ministério da Justiça a taxa de homicídios triplicou entre 1980 e 2004, sendo 48 mil mortos por ano. Os crimes contra o patrimônio aumentaram 23% nos últimos cinco anos. Já o Ministério da Saúde contabiliza 40% dos homicídios em cidades com população acima de 500 mil habitantes. “Organizações criminosas armadas, que controlam o tráfico de drogas e de armas, praticamente assumem o controle de regiões das maiores cidades do país”, diz Aldo Arantes.


 


Problema sob todos os pontos de vista


 



Instrumentos legais não faltam para coibir delitos. O Código Penal, a Lei das Contravenções Penais e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevêem penalidades variadas para uma série de infrações. Mas, destaca Aldo Arantes, falta o essencial: a presença do Estado. Sua ausência permite ao tráfico liberdade de cooptação de jovens para o crime. Segundo ele, a presença residual do poder público nessas localidades dominadas pelo submundo é um dos fatores determinantes para a multiplicação da violência. Somente o Estado portador de instrumentos legais democráticos pode gerar justiça. Ou seja: levar ao restabelecimento do direito, da ordem quebrada pelo crime. 


 



Essa é uma das discussões mais inflamadas que o mundo democrático terá que vencer no futuro próximo. A violência é um problema sob todos os pontos de vista. E um problema coletivo, de ordem legal, democrática, e, principalmente, social. Periodicamente, matérias a respeito aparecem sob trilha sonora grave ou diagramação sombria. E isso tem fossilizado falsas verdades, como a de que a repressão é o melhor método para a sociedade enfrentar a violência. Os adeptos dessa tese defendem que a violência deve ser combatida meramente com operações policiais e militares. 


 


Vácuo do pode público


 



É isso que tem acontecido ao longo das últimas décadas. Contraditoriamente, nesse período a violência floresceu como nenhum outro negócio no mundo. O problema é que a repressão isolada não faz muito além de empurrar a violência cada vez mais para longe da lei, da luz do dia, da jurisdição do Estado. E é lá, na escuridão da noite, no vazio legal, no vácuo do poder público, que a violência viceja. Seus líderes criam sua própria lei, diversificam suas atividades ilegais, alimentam vários ramos do crime, escravizam populações trabalhadoras, compram líderes políticos, terras, policiais, vidas.


 



Para Aldo Arantes, a tese da violência que combate a violência, forjada pela doutrina de segurança nacional do Estado autoritário, tem levado o poder público a investir somente em compras de armas, de viaturas, de equipamentos. Segundo ele, trata-se de uma vertente que vê no marginal simplesmente uma chaga na sociedade que precisa ser eliminada. Esse ponto de vista, evidentemente, não tem chance de equacionar o problema real e crescente da falta de segurança nas grandes e médias cidades do país. Ele desconsidera quesitos como injustiças sociais, crises econômicas e falta de oportunidades. Advoga que a criminalidade tem de ser resolvida com o recrudescimento da violência, seja ela policial ou particular. 


 


Desrespeito aos direitos civis


 



Essa bandeira da violência que combate a violência havia perdido terreno em uma grande porção da sociedade. Ela era tida como coisa de gente truculenta. O ponto de vista social, a forma correta de encarar o problema, foi por muito tempo bem respeitado no Brasil. Com o aumento das taxas de criminalidade, os anos 90 trouxeram uma mudança fundamental. Cada vez mais, a causa social passou a ser considerada sinônimo de bom-mocismo inócuo. Como era de se esperar, a causa da violência que combate a violência ganhou mais e mais adeptos. 


 



E abriu amplo terreno para o discurso de candidatos que, em cumprindo o que sugerem, podem consolidar a polícia como uma força que, ao invés de investigar e prender, executa sumariamente; ao invés de garantir a ordem social, movimenta-se à margem da lei, desestabiliza e ameaça a própria sociedade com o uso indiscriminado da violência; ao invés de exorcizar das delegacias a tortura e o desrespeito aos direitos civis — legado dos anos de ditadura — reforça o uso destes elementos incivilizados. 


 


Reformas estruturais são necessárias


 



Com o apelo eleitoral crescente desta linha de pensamento, corremos o risco de ratificar, por meio da democracia, um sistema de repressão que, sob o pretexto de combater o crime, adota o crime como método. Alteraríamos esse quadro se eliminássemos a tradição de que os que habitam a base da pirâmide social devem assumir goela abaixo responsabilidades que não são suas. É necessário pensar na afirmação da cidadania não como um ponto de educação moral e cívica, mas como meio efetivo de melhorar a qualidade da vida. 


 



A situação caótica dos complexos penitenciários e o crescente sentimento de insegurança nos maiores centros urbanos confirmam que, sem dúvida, reformas estruturais são necessárias. Em primeiro lugar, é fundamental entender o que faz do crime e da violência problemas tão críticos no Brasil — quando países com níveis semelhantes de desenvolvimento econômico não sofrem tão agudamente desses males. E que não haja dúvida em relação ao fato de que, realmente, este é um país extremamente violento. 


 


Olhos nas ruas das cidades



 


Um fator que aparece como muito importante é a desigualdade de renda. Estudos revelam que se a desigualdade no Brasil fosse reduzida para o nível de países como o Chile, o número de homicídios para cada 100 mil habitantes cairia em quase 40%. Se a desigualdade fosse reduzida até o nível de países como a Inglaterra, o índice diminuiria em mais de 55%. Países com distribuição desigual de renda de fato tendem a ter níveis altos de criminalidade e violência. Cidades grandes e médias deveriam dormir a cada noite menos tranqüilas por conta, além da violência, dessa equação. 



 


Como resolvê-la? O problema poderia ser solucionado se essa pergunta fosse feita com olhos postos nas ruas mais movimentadas da mioria das médias e grandes cidades — onde a cada passo, em cada esquina, se vê um cenário de anarquia urbana e desrespeito aos mais elementares direitos humanos. Famílias inteiras das periferias optam pela estratégia de morar, durante a semana, nas áreas centrais. Ali, eles encontram os meios necessários para sobreviver: chafarizes para tomar banho, vãos de viadutos para se abrigar, refeições distribuídas por entidades sociais e oportunidade para ganhar algum trocado, seja por meio de pequenos serviços ou pequenas infrações. 


 


Nuvem ameaçadora



Para essas famílias, a rua é um lugar de recursos. Para todos, o clima é de opressão coletiva. Tomar a condução de volta para casa, sem ter presenciado algum tipo de violência, é uma vitória diária. Trancados em seus carros, com os vidros fechados, muitos preferem suar em bicas a correr o risco de encontrar um cano de revólver saindo de um buquê de flores que tentam lhes vender. “É verdade que a deterioração dos laços sociais no Brasil nas últimas duas décadas decorrentes de políticas econômicas que não favoreceram o crescimento trouxe uma nuvem ameaçadora ao padrão tolerante da cultura nacional”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso de posse de 2002. “Crimes hediondos, massacres e linchamentos crisparam o país e fizeram do cotidiano, sobretudo nas grandes cidades, uma experiência próxima da guerra de todos contra todos”, afirmou. 


 



O presidente anunciou a decisão de colocar o governo federal em parceria com os Estados, “a serviço de uma política de segurança pública muito mais vigorosa e eficiente”. “Uma política que, combinada com ações de saúde, educação, entre outras, seja capaz de prevenir a violência, reprimir a criminalidade e restabelecer a segurança dos cidadãos e cidadãs”, disse. No Brasil, ninguém se emenda na cadeia. Ou melhor: os maus-tratos, antítese da condição necessária para a reeducação, tornaram-se regra nos presídios.



País da tortura medieval


 


Com isso, sempre aumentou o percentual de reincidência entre os egressos do sistema prisional nacional. Em São Paulo, é superior a 80%. Só esse dado indica o desvio da finalidade das prisões. A política penitenciária brasileira diariamente afronta o objetivo constitucional da pena. Favorece-se a lei do mais forte e as permanentes violações de direitos humanos. Numa radiografia: Estado desorganizado de um lado e presos organizados do outro. A troca sempre imperou entre os bandos e as autoridades penitenciárias. Não ocorrendo rebelião, vale tudo dentro das prisões. Com o crescimento do fenômeno da criminalidade organizada, os bandos passaram a controlar o sistema. E o “crime organizado” usa nas ruas o seu difuso poder de intimidação. 



 


Outro problema é que a lei, no Brasil, sempre esteve a serviço de quem detém o poder econômico. De um lado, o Brasil ainda é o país da impunidade para quem goza de alguma influência econômica. De outro lado, o Brasil é ainda o país da tortura medieval para quem não tem onde se socorrer. Como resultado, está disseminada pela sociedade a noção de que a lei não é igual para todos, de que a Justiça não é justa e de que a melhor maneira de se relacionar com a polícia no país é manter-se à distância. Contribuem para isso as notícias de que a polícia destrói provas importantes com a mesma facilidade com que planta outras falsas, de que agentes da lei sabem bater na exata medida em que não conseguem investigar.


 


Desafios à frente são complexos



 


Há algum tempo foi noticiado que em nove dos principais Estados brasileiros 10% da força policial são acusados de alguma forma de crime (metade deles não tem nenhuma relação com abuso de força ou violência policial). Em São Paulo, 60% dos grupos denunciados por envolvimento no “crime organizado” possuem pelo menos um policial entre seus membros. E, mesmo abstraindo as atividades abertamente criminosas, a violência policial no Brasil é absurdamente elevada. Só a polícia paulista mata mais civis do que toda a polícia norte-americana — o que indica a prática de assassinatos sumários. 


 



É claro que os desafios à frente são complexos. Faltam políticas sociais adequadas para prevenir e lidar com o problema do menor carente, falta dinheiro e vontade polítca para melhor remunerar, treinar e aparelhar a polícia, falta um Judiciário ágil para julgar e sentenciar os infratores. Não se pode negar que é essencial construir um ambiente que permita a todo ser humano viver com dignidade. Devemos acelerar o passo para adotar uma solução em que cada brasileiro possa ter as ferramentas e as condições mínimas para se sustentar e prover seus familiares. Mas uma política de segurança pública eficiente e voltada para o direito humano também tem urgência. Daí a importância decisiva da Conferência Nacional.  


 


O Fórum Nacional Preparatório da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública acontece no Hotel Saint Peter, em Brasília. Mais informações podem ser obtidas na Fundação Maurício Grabois pelo telefone (11) 3054-1874.