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Carlos Drummond: Interesse privado no Estado explica crise

No chamado pânico de Nova Iorque, provocado pela manipulação no mercado de ações em 1907, um banqueiro, John Pierpont Morgan, atuou como banco central. Em duas semanas, salvou empresas, corretoras e resgatou a bolsa de valores. Do ponto de vista formal

Entretanto, o poder das instituições financeiras sobre o estado e o mercado, daí por diante, só iria aumentar. O Fed constituiu-se como entidade controlada de fato pelos bancos privados e conduzida conforme os seus interesses. Nesse contexto, a penitência feita recentemente pelo ex-presidente do Fed Alan Greenspan não deixa de ser surpreendente. Ao deixar o mercado de derivativos de rédeas soltas e permitir taxas de juros perigosamente baixas durante mais de dois anos, Greenspan atendeu aos mais ardentes interesses das instituições financeiras. É verdade que, ao mesmo tempo, colaborou com muita eficácia para a gestação de uma das maiores crises financeiras e econômicas da história.



Caso a referência utilizada seja a lógica do sistema financeiro capitalista, Greenspan foi impecável. Caso se considere que a finança privada só deixa de ser destrutiva para a sociedade em que se insere quando há regulamentação por parte do Estado, a sua gestão foi desastrosa. A combinação de regulamentação fraca e juros baixos possibilitou recordes de ganhos para instituições financeiras e recordes de riscos para a sociedade americana e o mundo.



Mais do que servir ao interesse do mercado financeiro, em lugar de representar o Estado e a sociedade nele supostamente expressa, Greenspan foi a expressão acabada da ideologia dos mercados sem restrições que conduziu ao desfecho da crise financeira e econômica atual. Este talvez seja o ângulo mais adequado para avaliar o papel específico de Greenspan na gestação da crise.



No depoimento que fez no final de outubro a uma comissão do congresso americano, Greenspan admitiu “um erro na idelogia do livre mercado” que guiou desenfreadamente a política monetária nas últimas décadas. O erro certamente não estava na ideologia de mercado, mas no fato de considerá-la a única alternativa. There is no alternative, não há alternativa, foi o mantra entoado desde a primeira-ministra britânica Margareth Tatcher para reiterar a crença de que não havia outro caminho possível para o capitalismo além do mercado livre ou sem controles. Essa crença necessariamente impede de ver a necessidade de impor restrições ao sistema e barrar a sua autofagia, eventualmente letal também para a sociedade.



Por crer que houve alguma falha de aplicação dos cânones, Greenspan, durante o depoimento, admitiu ter errado “parcialmente” ao não exercer controle sobre os bancos. “Encontrei uma fratura nas minhas convicções econômicas. Não sei quão significativa ou o permanente ela é. Mas eu tenho estado muito deprimido pelo fato”, disse o ex-presidente do Fed. Ele desculpou-se em especial pela sua oposição à regulação inibidora de certos tipos de derivativos que possibilitou aos bancos assumir passivos podres de bilhões de dólares.



O presidente da comissão que convocou Greenspan, Henry Waxman, fez uma pergunta que o ajudou a perceber, ao menos momentaneamente, que o problema não foram falhas nas suas crenças, mas as próprias crenças. “Você constatou que a sua visão do mundo, a sua ideologia, não era correta, não funcionou direito?”, interpelou o deputado. “Esta é, precisamente, a razão pela qual eu fiquei chocado. Eu me conduzi durante 40 anos guiado por evidências consideráveis de que essa ideologia estava funcionando excepcionalmente bem”. A verdade é que a ideologia funcionou excepcionalmente bem a ponto de envolver completamente o Estado e torná-lo seu parceiro no presente salto mortal financeiro e econômico. O domínio do interesse privado sobre o interesse público, supostamente representado pelo Estado, é um fio condutor para compreender tanto as causas da crise como as dificuldades para superá-la.



* Carlos Drummond é jornalista. Coordena o Curso de Jornalismo da Facamp.