Umberto Martins: O caráter objetivo das crises capitalistas

A crise financeira que assola os Estados Unidos e o mundo capitalista abalou seriamente a fé neoliberal na suposta capacidade auto-reguladora das forças do mercado, mas despertou uma crença igualmente cega e falsa nos efeitos prodigiosos da intervenção

Os fatos revelam aquilo que Stálin, num livro sobre os problemas do socialismo soviético, chamou de caráter objetivo dos fenômenos econômicos, que feliz ou infelizmente independem da vontade dos indivíduos. A realidade não dá ouvidos às ideologias orientadas pelo idealismo filosófico e a crise segue seu curso de forma implacável, indiferente ao desespero dos governos.



Ilusões



À primeira vista, o Plano Bush teria o dom de acalmar os mercados de capitais, sanear o sistema financeiro, interrompendo a quebradeira dos bancos, e impedir que os problemas avançassem mais sobre a economia real, restringindo a turbulência ao ramo imobiliário.



Não faltaram manifestações de ilusões neste sentido, começando pelo próprio presidente dos EUA, que prenunciou o fim do mundo se o pacote que propôs ao Congresso não fosse aprovado, e passando pela mídia empresarial, como a “Veja”. A revista se apressou a afirmar, em reportagem de capa (edição número 2079), que Tio Sam acabava de “evitar o colapso financeiro mundial” e salvar o mundo, confundindo o desejo dos proprietários e editores com a realidade.



Mercados nervosos



Naquela altura, a aprovação do plano Bush ainda não estava assegurada e a Câmara dos Representantes chegou a rejeitá-lo. Mas, afinal, depois de muitas idas e vindas, o pacote econômico do governo Bush foi finalmente aprovado pelo Congresso dos EUA na sexta-feira passada, 3-10. Os parlamentares ampliaram o valor do socorro para 850 bilhões de dólares.



Entretanto, os mercados não se acalmaram. Na própria sexta, as bolsas fecharam em forte queda. A semana amanheceu em pânico, registrando nesta segunda-feira (6-10) quedas de até 19% no mercado de ações (Rússia). No Brasil, o Bovespa interrompeu os pregões duas vezes, registrando um tombo superior a 15%. As perdas foram reduzidas a 5,43% no fechamento. Em contrapartida, o dólar disparou 7,53%, valendo R$ 2,20. Já ninguém duvida que o Brasil foi atingido pela crise americana.



Economia real



O nervosismo e a desconfiança dos investidores estão associados à seqüência de más notícias que rivalizaram com a aprovação do plano Bush nos Estados Unidos e na Europa, onde diariamente irrompem novos problemas no sistema financeiro. As perturbações mais sensíveis e perigosas aparentemente estão apenas no início, afetando a chamada economia real ou as atividades produtivas.



A crise de superprodução da construção civil já era fato e foi o que precipitou o estouro da bolha imobiliária. Outros ramos da produção também foram atingidos, cabendo destacar o caso da combalida indústria automobilística.  Pela primeira vez em quinze anos as vendas do mercado estadunidense fecharam o mês com volume inferior a 1 milhão de veículos.



Em setembro foram comercializadas 965 mil 160 unidades, queda de 26,6% com relação ao mesmo mês do ano passado, de acordo com a agência Automotive News. O declínio acentuou a queda acumulada de 2008. Nos nove primeiros meses do ano a retração é de 12,8% na comparação com o mesmo período do ano passado, com 10 milhões 766 mil 177 veículos vendidos nos Estados Unidos.



Desemprego em alta



Em setembro nada menos que 159 postos de trabalho foram fechados no país, a maior queda em cinco anos e meio, marcando o nono mês consecutivo de retração no mercado de trabalho. A taxa de desemprego está em 6,1%. Em agosto as encomendas à indústria declinaram 4%. São sinais indubitáveis de recessão.



Resta saber a dimensão dos estragos na indústria e os reflexos no consumo interno dos EUA (que, em grande medida, significa consumo de importados) e no comércio exterior. É por aí que efeitos mais sérios para o resto do mundo, inclusive a China, poderão se verificar. Um ajuste mais severo do déficit comercial americano, que pode vir na carona da queda do PIB e em resposta à necessidade de elevar a taxa de poupança interna (como sugere o diretor-gerente do FMI, Dominique Straus-Kahn), dificilmente deixará de ser sentido pela mais próspera nação asiática.
 


Anarquia


 
O Brasil, onde os efeitos da crise já são notórios (e não só no mercado de capitais), também teria muito a perder neste caso, pois uma eventual desaceleração da economia chinesa seria uma má notícia para os preços de nossas exportações e pode ter efeitos nocivos sobre o balanço de pagamentos, já ameaçado pelo crescente déficit em conta corrente.
    


O caráter objetivo das crises no capitalismo transparece nos fatos em desenvolvimento. A intervenção dos Estados, através dos bancos centrais, apesar de bombástica e das promessas de mobilizar recursos que ultrapassam a casa do trilhão de dólares, não nega esta verdade básica e é claramente insuficiente para prover calma e estabilidade aos mercados. O sistema já foi abalado por outras crises no passado e, agora como antes, sobrevive nos fatos uma só verdade: o mercado não é racional, flutua ao sabor da anarquia e faz ouvidos moucos aos apelos da razão estatal.
 


Dívida externa


 
Convém, ainda, assinalar que a intervenção governamental carrega os dilemas da contradição e possui efeitos colaterais. Os 850 bilhões de dólares prometidos pelo governo norte-americano, por exemplo, constituirão, em larga medida, acréscimos polêmicos à gigantesca dívida pública dos EUA, agravando um problema estrutural que não deixa de estar associado à atual crise financeira. O endividamento total do império já ultrapassa 300% do PIB.
 


Sabe-se, igualmente, que a conta não será paga apenas por contribuintes estadunidenses, que de resto não têm poupança própria para tanto; em maior ou menor medida, dependendo da boa vontade dos investidores estrangeiros, a dívida governamental será transformada em dívida externa – a outra opção, à qual o Federal Reserve (banco central dos EUA) já vem recorrendo, é a impressão pura e simples de dólar, o que pode custar caro em termos de inflação e determinar uma desmoralização maior do combalido padrão dólar.
 


Diante do renitente pessimismo dos investidores, os mais otimistas agora andam dizendo que os efeitos do pacote só serão sentidos em médio prazo. Se até lá Inês já não estiver morta, restará verificar nos fatos do futuro se tais efeitos serão mais positivos que negativos. Avulta a necessidade objetiva de uma nova ordem econômica mundial. Os EUA já não estão em condições de dar as cartas no complexo jogo do xadrez mundial. A China em vertiginosa ascensão, onde a crise parece mais uma oportunidade, não poderá ser ignorada.



* Umberto Martins é editor do Portal da CTB