O debate da crise (Parte 3): Uma desmontagem turbulenta

É possível continuar criando mais capital fictício, como fazem os bancos centrais (principalmente o Fed) para salvar o capital? Num mundo que mudou, onde países como a China e a Índia (e o Brasil) não são mais regiões semicoloniais mas participam de ig

A engenharia financeira que reforçou a hegemonia capitalista nos últimos trinta anos está sendo desmontada perante nossos olhos. Mas, mesmo dentro desta desmontagem, cresce a concentração do capital financeiro, exemplificada pela compra da Merril Lynch pelo Bank of America. Há também o processo de estatização das dívidas, que implica na criação imediata de mais capital fictício. A Reserva Federal dos Estados Unidos (o Fed, Banco Central dos EUA) cria mais capital fictíco para manter a ilusão de valor de um capital que está à beira do colapso, com a perspectiva de poder, depois, aumentar a pressão fiscal; mas na realidade isso significaria o congelamento do mercado interno e a aceleração da crise enquanto crise real.


 


Foi o déficit comercial gigante que permitiu aos EUA serem o lugar chave para a ''concretização do ciclo do capital no momento de realização da mais valia para o processo capitalista em seu conjunto'', explica Chesnais. E agora, com os EUA à beira da retração econômica, é preciso de saber se a demanda interna chinesa poderá substituir os EUA como o local ''de realização da mais valia''. A intervenção do Tesouro estadunidense tem sido forte, conseguindo até agora limitar a contração das atividades econômicas e a queda nas importações. ''O problema'', pergunta ele, ''é saber quanto tempo poderá durar a criação de mais e mais liquidez como único método de política econômica… Será possível que não haja limites para a criação de capital fictício sob a forma de liquidez para manter o valor do capital fictício já existente? Esta hipótese me parece demasiadamente otimista, e há muita dúvida a respeito dela entre os próprios economistas nos EUA.''


 


A terceira maneira pela qual o capital tentou superar seus limites imanentes, diz Chesnais, é – na crise atual – a mais importante e a que ''coloca as questões mais interessantes''. Esta terceira forma é a extensão mundial das relações sociais de produção capitalistas, ''em particular à China''. As mudanças na China ocorreram com base em processos internos combinados com a transferência para lá de parte significativa do Setor II da economia dos EUA, o setor de produção dos meios de consumo. ''E isto tem muito a ver com o grosso dos déficits estadunidenses (o déficit comercial e o fiscal), que só poderiam ser revertidos por meio de uma 'reindustrialização' dos EUA''.


 


Isso levou, diz, a novas relações entre os EUA e a China. Não mais as de um potência imperialista com um país semicolonial. ''Com base no superávit comercial, a China acumula bilhões e bilhões de dólares, que então empresta aos EUA. Uma ilustração das conseqüências disso foi a nacionalização das agências Fannie Mae e Freddy Mac: parece que os bancos da China tinham 15% dos fundos destas entidades e comunicou ao governo estadunidense que não aceitaria sua desvalorização. São relações internacionais de um tipo totalmente novo''.


 


É um quadro novo, que diferencia a crise atual da crise de 1929. Aquela começou como uma crise de superprodução nos EUA, que se aprofundou. Na atual, a intervenção dos governos e dos bancos centrais está adiando este momento. ''Mas não poderão fazer muito mais do que isso'', pensa Chesnais. A crise se combinará, diz, com a necessidade, para o capitalismo, de uma reorganização total das relações de forças econômicas no marco mundial, ''momento em que os EUA verão que sua superioridade militar é apenas um elemento, e um elemento muito subordinado, para renegociar suas relações com a China e outras partes do mundo''. E especula, pessimista: ''Ou chegará o momento em que se dará o salto de uma aventura militar de consequências imprevisíveis.''


 


Bush sancionou na sexta-feira, dia 3, o pacotão de 850 bilhões de dólares aprovado pelo Congresso dos EUA para tentar acalmar a situação; a resposta, entretanto, já havia sido indicada pela má reação de algumas bolsas de valores que ainda estavam abertas naquela tarde de sexta feira, como nos EUA e no Brasil. Pelo fuso horário, na Europa e a Ásia elas já haviam encerrado o expediente. Assim, foi preciso esperar até a segunda feira, dia 6, para avaliar sua reação ao pacotão. E a acentuada queda nas bolsas de valores do mundo, que voltavam a repetir a intensa oscilação das semanas anteriores, parecia indicar o efeito limitado do pacote destinado a salvar os mercados financeiros.


 


Outra má notícia deste início de mês extrapola os limites das bolsas de valores e do mercado financeiro e atinge diretamente a chamada ''economia real'' – em cujo centro estão os trabalhadores. O governo dos EUA anunciou que em setembro 159 mil postos de trabalho foram fechados no país. No ano já são 760 mil postos de trabalho perdidos, pelas contas de Washington. É uma indicação forte de uma recessão que pode ter reflexos mundiais.


 


A queda no número de empregos nos EUA é a maior nos últimos cinco anos, mesmo com base em dados oficiais. Se for medida por outros meios, levando em conta, por exemplo, os trabalhadores que desistiram de procurar emprego, a taxa é de 10,7%, muito maior que os 6,1% das estatísticas do governo – o maior nível desde 1994. Além disso, calcula-se que já chega a 6,1 milhões o número de trabalhadores informais, de tempo parcial, sem direitos sociais ou assistência médica.


 


Há uma contradição entre o peso da crise que cai sobre os trabalhadores, que perdem seus empregos, moradias e aposentadorias, e a voracidade dos executivos de Wall Street. A crise, nunca é demais insistir, é um fenômeno objetivo inerente ao modo de produção capitalista. Mas a reação daqueles que estão no topo pode ser muito esclarecedora sobre o funcionamento do sistema. Uma reportagem de The New York Times (de 22 de setembro de 2008), citada pelo cineasta Michael Moore, relata os limites da ''ética'' e, para usar uma palavra da moda nestes tempos politicamente corretos, do ''espírito republicano'' dos que mandam em Wall Street. Naquele fim de semana em que o pacote de ajuda ao sistema financeiro (que então era de 700 bilhões de dólares) era discutido na Casa Branca, os engomadinhos de Wall Street reuniam-se para discutir como abocanhar o dinheiro que viria. Conspiravam para incluir, sob aquele guarda-chuva, os investimentos problemáticos, e como ganhar milhões de dólares dando consultoria para desfazer os verdadeiros nós cegos que a engenharia financeira criou com os ardilosos ''produtos'' que inventou nestes anos.


 


O acompanhamento destes temas, quase sempre áridos e complexos, é vital para os trabalhadores. Eles revelam as entranhas do capitalismo e de suas mazelas. E são a demonstração prática de que, caminhando de tombo em tombo, este sistema joga sobre os trabalhadores o alto preço de sua sobrevivência.


 


Onde está o Brecht contemporâneo que vai, com mordacidade e espírito de classe, ilustrar para os trabalhadores que não há saída para eles dentro deste sistema iníquo, desigual, e que vive da exploração de seus nervos, sangue e cérebros?