O debate da crise (Parte 2): O contexto mundial não é o mesmo de 1929

Para fugir de seus limites históricos, o capital criou as condições em que eles se agravaram. A desregulamentação das últimas décadas, que foi o principal caminho para esta fuga, criou problemas que, hoje, parecem insolúveis.



Por José Carlo

Nos próximos anos, assegura Chesnais, assistiremos a um desenvolvimento cuja base é o ''mercado mundial intuído por Marx''. Com a particularidade de que, ao contrário do passado (quando eram semicoloniais), China e Índia – e o Brasil, devemos acrescentar – são agora ''participantes de pleno direito de uma economia mundial única, uma economia mundial unificada em um grau desconhecido até esta etapa da história''.


 


O outro trecho de O Capital citado por ele, imediatamente anterior ao citado acima, diz:


 



''A produção capitalista aspira constantemente a superar os limites imanentes a ela, mas só pode superá-los recorrendo a meios que voltam a levantar ante ela estes mesmos limites, só que com maior força'' [Marx, idem].


 


Boa parte da palestra de Chesnais foi dedicada à análise dos esforços do capital para superar estes limites imanentes à produção capitalista, destacando os meios aos quais historicamente o capital recorreu para isso.


 


O primeiro deles é a desregulamentação, isto é, a suspensão dos controles estatais sobre a ação do capital. O processo de liberalização das finanças, do comércio e do investimento dos últimos trinta anos destruiu as relações políticas surgidas a partir da crise de 1929, da Segunda Guerra Mundial e das guerras de libertação nacional. Eram regras que, exprimindo a dominação do capital, eram também ''formas de controle parcial do mesmo capital''. Sua eliminação deixou, por algum tempo, a impressão de que os limites para a livre atuação do capital haviam sido superados. O segundo meio usado ''foi o recurso, em escala sem precedentes, à criação de capital fictício e de meios de crédito para ampliar uma demanda insuficiente no centro do sistema''. Finalmente, a terceira forma, ''a mais importante historicamente para o capital, foi a reincorporação, enquanto elementos do sistema capitalista mundial, da União Soviética e dos países do Leste Europeu, e da China''.


 


O capitalismo desregulamentado que predominou nos últimos 30 anos foi o ambiente sem regras em que foi criado o mercado mundial ''em pleno sentido da palavra'', dando realidade àquilo que Marx havia antevisto. Um mercado mundial sem restrições para as operações do capital, que pode, com base nele, ''produzir e realizar a mais valia'' num ''processo de centralização de lucros em escala verdadeiramente internacional''. O capital pode ter uma mobilidade nunca vista e ''organizar em escala universal o ciclo de valorização'', com a vantagem adicional de provocar a ''concorrência entre os trabalhadores de todos os países'', transformando o exército industrial de reserva em uma realidade verdadeiramente mundial.


 


Neste marco ocorre a ''produção para a produção'' descrita por Marx. Com uma contradição grave para o capítal: nas condições de desemprego e empobrecimento dos trabalhadores, o acesso limitado das massas a esta produção dificulta a ''valorização do capital, para o capital em seu conjunto, e para capital em particular''. É nestas condições que se acentuam e se tornam mais determinantes, no mercado mundial, ''as leis cegas da concorrência'', tão fortes em nosso tempo.


 


A ação dos governos, para conter estas tendências, pode ser limitada e frágil. Prenunciando de certa forma o ceticismo em relação ao pacote aprovado em Washington na sexta feira, dia 3 de outubro, pelo governo dos EUA, Chesnais diz que os ''bancos centrais e os governos podem proclamar que farão acordos e colaborarão para impedir a crise, mas não creio que se possa introduzir a cooperação neste espaço mundial convertido em cenário de uma enorme concorrência entre capitais''. Com um complicador a mais em relação às crises anteriores, diz. A concorrência entre os capitais agora ocorre num ambiente onde há algo ''algo totalmente novo no marco mundial'': a presença, na periferia do sistema capitalista, de grupos econômicos e industriais (na Índia e na China, por exemplo) capazes de integrar-se como sócios de pleno direito na economia mundial. E, no plano financeiro, os Fundos Soberanos, que ''não são meros satélites dos EUA, têem estratégias e dinâmicas próprias e modificam de muitas maneiras as relações geopolíticas dos pontos chave em que a vida do capital se faz, e se fará''.


 


É nesse sentido que a crise tem outra dimensão: a do ''fim da etapa em que os EUA puderam atuar como potência mundial sem paralelo…''. Os EUA ''serão submetidos à prova: em um prazo muito curto, todas suas relações mundiais se modificarão e deverá, no melhor dos casos, renegociar ou reordenar todas suas relações com base no fato de que precisará compartilhar o poder''.


 


Assim, diz ele, este primeiro método do capital para superar seus limites – a liberalização e a livre circulação mundial do capital – ''se transformou em fonte de novas tensões, conflitos e contradições, indicando que uma nova etapa histórica se abrirá através desta crise''.


 


O outro meio para superar os limites para o capital nas economias centrais foi o recurso à ''criação de formas totalmente artificiais de ampliação da demanda efetiva, e que, somando-se a outras formas de criação de capital fictício, geraram as condições para a atual crise financeira''. Capital fictício é, lembra ele, citando Marx, a acumulação de títulos que são ''sombra de investimentos'' já feitos e que aparecem com uma dupla feição: para seus possuidores, eles são capital ''real'' que pode, numa situação normal, render juros e dividendos; para o sistema como um todo, não são. Nas crises, seu caráter fictício se revela: é ''capital que não existia''. Por isso ''é que se pode ler, às vezes, nos jornais, que tal ou qual quantidade de capital 'desapareceu' em quedas nas bolsas: são somas que nunca haviam existido como capital propriamente dito…''


 


Um agravante desta situação, hoje, o fato de que, em muitos países, os sistemas de aposentadoria ''estão baseados em capital fictício, com a pretensão de participar nos resultados de uma produção capitalista que pode desaparecer nos momentos de crise''.


 


Estes capitais fictícios formaram a base da ''etapa da liberalização e globalização financeira dos anos 1980 e 1990, sobretudo nas mãos de fundos de investimento, fundos de pensão, fundos financeiros''. A grande novidade foi, ''nos EUA e na Grã-Bretanha em particular, o impulso extraordinário dado para a criação de capital fictício na forma de crédito''. Crédito para empresas, crédito imobiliário, de consumo e, sobretudo, hipotecário, provocando um ''um salto na massa de capital fictício criado'', levando a ''formas mais ou menos agudas de vulnerabilidade e fragilidade, inclusive frente a choques menores, ou a episódios absolutamente previsíveis''.


 


Um exemplo citado por ele é o boom imobiliário. Um dia eles terminam, diz Chesnais, olhando para a história econômica. No mercado acionário, diz, pode ser compreensível a ilusão de um aumento ilimitado nos preços das ações. Mas isso não ocorre no setor imobiliário: ''quando se trata de edifícios e casas é inevitável que chegue o momento em que o boom termina''. Apesar disso, diz, o sistema financeiro se colocou ''numa tal situação de dependência que este acontecimento completamente normal e previsível se transformou em uma crise enorme''. A concessão de empréstimos a pessoas com duvidosas condições de pagar, combinada com as novas ''técnicas'' financeiras que empacotaram os títulos gerados por estes empréstimos com outros, mais seguros, permitiram aos bancos vender bônus em tais condições ''que ninguém podia saber exatamente o que estava comprando… até o grande estouro dos 'subprime', em 2007'', disse



Parte 3: Uma desmontagem turbulenta