O debate da crise econômica (1): Ladrões, banqueiros e a salvação do capitalismo

As crises financeiras são fenômenos inerentes ao capitalismo. Sua análise não pode ficar presa a questões éticas que, embora reais, são apenas sua superfície. Os trabalhadores precisam compreendê-las em profundidade, entender seus mecanismos para decif

O dramaturgo marxista alemão Bertolt Brecht foi um observador agudo da crise econômica dos anos 20 e 30 e dos malefícios que ela causou na vida dos trabalhadores. Registrou suas observações em inúmeras obras artísticas; uma delas foi o filme Kuhle Wampe (''Barriga Vazia'', numa tradução livre), de 1931, sobre a vida de uma família proletária de Berlim.


 


Ele foi um escritor cuja arte estava a serviço da luta dos trabalhadores. Por isso, era um estudioso obsessivo do comportamento das bolsas de valores, acompanhando principalmente os preços de produtos básicos como o trigo ou o café. Fez uma caracterização crua e mordaz dos especuladores da bolsa e dos grandes capitalistas, que comparou a grandes bandidos e malfeitores. Um bom exemplo é Mackie Messer (Mackie Navalha, em português), o ladrão da Ópera dos três vinténs (1928), que disse, minutos antes de ser enforcado: ''Nós, insignificantes profissionais de classe média, que trabalhamos com honestos pés-de-cabra nas caixas dos pequenos comerciantes, estamos sendo expulsos pelas grandes empresas apoiadas pelos bancos''.


 


Brecht tinha razão. Os trabalhadores precisam compreender como funcionam as bolsas de valores, o mercado de capitais, a ciranda financeira, e suas crises. Por duas razões: elas influem sobre seus salários, o preço da comida e da moradia, e sobre a oferta de trabalho. Além disso, as crises são demonstrações didáticas do funcionamento do sistema capitalista e de sua dinâmica predatória.


 


Há quem acompanhe a evolução da crise como apostadores em corridas de cavalo. Olham para os protagonistas da disputa – qual o melhor cavalo, qual o azarão, qual a chance de ganhar sempre mais, na melhor aposta. Pessoas que acreditam estarem destinadas, pela sorte ou ''por uma excepcional sagacidade financeira, a se tornarem ricas sem trabalhar'', como escreveu o economista John Kenneth Galbraith, um keyneziano dos EUA (J. K. Galbraith, O colapso da bolsa, 1929 – anatomia de uma crise. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1972).


 


Há uma forma de ver que considera apenas o resultado final, o placar, a lista dos ganhadores e perdedores, deixando em segundo plano o funcionamento desse sistema que já define de antemão, antes mesmo das apostas serem feitas, quem ganhará e quem perderá. Há indícios muito fortes de que a imoralidade, a fraude e outras irregularidades existem, são reais. Mas esta é a superfície dos tsunamis que periodicamente assolam o capitalismo. Uma análise mais profunda da dinâmica das crises não joga os problemas na conta dos desmandos e fraudes dos executivos das grandes instituições, embora elas sejam reais, como a crônica de nossos dias demonstra, mais uma vez.


 


A análise que precisa ser feita foge das explicações éticas e morais e encara a crise como aquilo que ela é – um fenômeno objetivo, inerente ao funcionamento do modo de produção capitalista e às necessidades da realização da mais valia e da reprodução do capital.


 


O debate sobre a crise financeira que, dos EUA, já contaminou a Europa e ameaça atingir o mundo, não interessa apenas aos especuladores do mercado financeiro, aqueles que ganharam no período áureo da especulação e, agora, imploram pelo socorro do Estado capitalista.


 


A crise continua, mesmo depois da aprovação, na sexta feira (dia 3) do monumental socorro, que vai chegar a 850 bilhões de dólares do governo dos EUA para os especuladores da bolsa. Os sinais fôlego da crise confirmam as análises que a encaram como um fenômeno estrutural do capitalismo, e não resultado dos deslizes cometidos pelos tubarões de Wall Street.


 


Há uma semelhança entre esta crise e as anteriores, principalmente a das décadas de 20 e 30. Mas as particularidades que marcam a crise atual e a diferencia das demais são grandes. Elas foram destacadas pelo economista francês François Chesnais em palestra pronunciada em Buenos Aires, em 18 de setembro, promovida pela revista marxista argentina Herramienta (publicada em sua página eletrônica no dia 1º de Outubro: http://www.herramienta.com.ar). Ele fez uma análise da crise financeira onde enfatizou seu caráter de fenômeno inerente ao modo de produção, independente de motivações como a ganância.


 


Chesnais é um notável estudioso marxista do capitalismo contemporâneo, cujas análises agregam novos temas, como a questão ambiental ou o belicismo feroz do imperialismio, que potencializa os aspectos ameaçadores da crise. Ele faz também considerações controversas sobre a China, que encara como um ''paraíso capitalista'' dotado de um sistema político ''autoritário''. São teses frágeis até mesmo por que, como o próprio Chesnais reconhece, trata-se de uma realidade histórica – a chinesa – que merece estudo cuidadoso.


 


Ele compara a crise atual à de 1929, mas ressalta que ocorre em um contexto diferente, principalmente do ponto de vista internacional. A crise de 1929, diz, ''se desenvolveu como um processo'' que teve o auge em 1933, e abriu caminho para uma recessão prolongada. A atual é uma das ''primeiríssimas etapas de um processo'' semelhante, e que deve ser interpretado como um processo histórico que revela – como as demais crises – ''os limites históricos do sistema capitalista''.


 


Chesnais se apoia em dois fragmentos do Livro 3 de O Capital, onde Marx diz:


 



''O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital. É o fato de que, nela, são o capital e sua própria valorização, o que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção. A produção só é produção para o capital, ao invés dos meios de produção serem apenas meios de acelerar continuamente o desenvolvimento do processo vital para a sociedade dos produtores. Os limites dentro dos quais tem que se mover a conservação e a valorização do valor-capital, que se baseia na expropriação e empobrecimento da grande massa dos produtores, se chocam constantemente com os métodos de produção que o capital tem que empregar para conseguir seu objetivo e que visam ao aumento ilimitado da produção, à produção como fim em si mesma, ao desenvolvimento incondicional das forças produtivas sociais do trabalho. O meio empregado – desenvolvimento incondicional das forças produtivas sociais – se choca constantemente com o objetivo perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente. Portanto, se o modo de produção capitalista é um meio histórico para desenvolver a força produtiva social e criar o mercado mundial correspondente, envolve ao mesmo tempo uma contradição constante entre esta missão histórica e as relações sociais de produção próprias deste regime'' [Karl Marx, El capital, Vol. III, México, FCE, 1973, pág. 248. A tradução para o português foi cotejada com a edição brasileira de O Capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, Livro Terceiro, Tomo IV, 1974, p. 287] (continua).



Parte 2: O contexto mundial não é o mesmo de 1929