Leonardo Severo vê a Bolívia nas ruas: a marcha a Santa Cruz

A marcha de milhares de camponeses, indígenas, mineiros e mulheres, que se aproxima de Santa Cruz, é uma resposta do povo boliviano aos terroristas da “Meia Lua”, em defesa do plebiscito para referendar a nova Constituição e contra as agressões da dire

Como pudemos constatar em nossa recente visita à Bolívia, foram imensos os prejuízos causados pelo vandalismo na ocupação de instituições públicas nos Departamentos (estados) de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Chuquisaca.


 


Conforme levantamentos parciais, os bandos organizados e armados pelos governos direitistas da chamada “Meia Lua” – financiados pela Embaixada dos EUA – provocaram perdas econômicas que ultrapassam os US$ 110 milhões, além de levarem o país à beira da guerra civil, comprometendo temporariamente os avanços na reforma agrária e na política indigenista.


 


Retomados agora pelo presidente Evo Morales, muitos dos prédios e escritórios terão de ser inteiramente reconstruídos e reequipados. Como Evo já deixou claro, o prejuízo será debitado na conta dos governos locais, que tentaram se apropriar ilegalmente desses bens.


 


A Marcha de camponeses, indígenas, mineiros e mulheres se aproxima de Santa Cruz, que completa nesta quarta-feira (24) 198 anos de existência, em resposta às constantes e reiteradas agressões fascistas as mulheres, crianças e idosos indígenas que ousam freqüentar espaços públicos como as praças centrais dos departamentos separatistas.


 


Mais do que um grito, a mobilização representa um coro de basta à violência desatada pelos fascistas, como ocorreu recentemente em Pando, com suas dezenas de mortos e desaparecidos, que levou o governador do Departamento vizinho ao Acre à prisão. A cobertura da mídia pró-golpe invisibilizou o assunto, numa solidariedade cúmplice aos assassinos.


 


Oposição agressiva


 


Durante entrevista coletiva, o presidente Evo Morales afirmou que a oposição “se reduz cada vez mais, não somente em sua representação, mas em sua capacidade de arregimentação”. Porém, alertou, “quando se reúne é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais violenta com as instituições do Estado, com o governo, com autoridades como a Polícia e as Forças Armadas”.


 


De maneira conjunta, disse Evo, os dirigentes dos movimentos sociais expressaram “que já se cansaram das agressões, das humilhações e do racismo na cidade de Santa Cruz. Este levantamento cruzenho o comparo com o de Tupac Katari na cidade de La Paz em 1781… Cerco de 180, 190 dias, quase meio ano, tudo pela defesa do território, a dignidade, a igualdade e também a luta pela independência, a liberação ante à invasão européia”.


 


Na região da “Meia Lua”, junto a seus Comitês “Cívicos” – como se autodenominam as organizações de direita, membros da União Juvenil Cruzenhista e elementos arregimentados pelos governos estaduais – tomaram pelo menos 36 sedes e escritórios do governo central.


 


Numa demonstração ímpar de racismo em Santa Cruz – onde correu mundo a foto de um carro ostentando a suástica – os delinqüentes ocuparam a sede da Coordenação de Povos Étnicos (Cpesc). Retomada na última sexta-feira (19), a Cpesc teve sua estrutura completamente destruída, após ser saqueada no dia 11 de setembro por bandos armados.


 


“O alvo do vandalismo são os indígenas que lutam por assegurar seus direitos históricos e que agora têm no Estado um instrumento para fazer justiça. A direita não se conforma com os avanços sociais, quer impor o retrocesso”, explicou Hugo Salvatierra, dirigente do MAS e ex-ministro de Assuntos Agropecuários, que nos acompanhou na visita ao local. Na armação fascista muitas das instituições foram saqueadas e tiveram seus documentos roubados ou destruídos.


 


Veja manipula realidade


 


Segundo a última edição da revista Veja, que não falou palavra sobre o assunto e nem publicou uma única foto, a razão é simples: porque “Evo Morales está destruindo a economia e a democracia para criar um estado narcossocialista”.


 


A revista tenta confundir a defesa da Coca, feita pelo povo e governo da Bolívia com a da cocaína, apostando na ignorância e na desinformação. Como está descrito no artigo 384 da Nova Constituição, ''o Estado protege a coca originária e ancestral como patrimônio cultural, recurso natural da biodiversidade da Bolívia a e como fator de coesão social; em seu estado natural não é entorpecente. A revalorização, produção, comercialização e industrialização será regida mediante a lei''.


 


Ou seja, a Coca se define como recurso natural e não como entorpecente ou droga, merecendo proteção para sua industrialização ou utilização com fins medicinais (digestivo, protéico) e outros usos (doces, pasta dental, etc.). E mais, o Informe Mundial sobre Drogas 2008, publicado recentemente pelo Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Delito (UNODC, sigla em inglês), revelou que os Estados Unidos são responsáveis pelo consumo de 45% de toda a cocaína do planeta, ainda que sua população corresponda a apenas 4,5% da população mundial.


 


Como declarou o presidente Evo, em resposta a uma declaração de Bush de que a Bolívia não estaria fazendo a sua parte no combate ao narcotráfico, “o governo dos EUA não tem nenhuma moral para falar de drogas. Quer nos impor uma lei de cerco aos produtores de Coca, mas não faz nada para cercear o consumo das drogas entre os norte-americanos”.


 


Aliás, entre as acusações da revista preferida do Departamento de Estado norte-americano, o “empreguismo” no país irmão virou “lambança”, porque a empresa estatal YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales da Bolívia), que antes da nacionalização em 2006 tinha 150 funcionários, hoje tem 1500”.


 


Nenhuma palavra sobre a retomada da principal riqueza nacional e a inversão da lógica entreguista que remunerava as transnacionais com 82% dos recursos, repassando apenas 18% ao Estado. Com Evo, o país fica com 82% para investir no seu desenvolvimento e o capital estrangeiro com 18%. Completo silêncio sobre o fim das terceirizações, a valorização de um serviço público essencial e a qualificação de profissionais para estarem à altura da construção de uma nova Bolívia, independente e soberana.


 


Nova Constituição


 


Fruto de intensa participação popular, a nova Carta Magna boliviana passou a ser o alvo principal da direita que, diante da monumental derrota no referendo revogatório de 10 de agosto, onde Evo alcançou 67,4% dos votos, foge do caminho das urnas e, sob o patrocínio da Embaixada dos EUA, busca, sob o manto da autonomia, consolidar o separatismo.


 


A Nova Constituição determina ao Estado “a direção integral do desenvolvimento econômico e seus processos de planificação”; aprofunda e massifica a reforma agrária; garante o acesso da população aos serviços públicos essenciais, impedindo a sua privatização; subordina a propriedade privada à função social e ao interesse coletivo. Em outras palavras, tudo o que os grandes capitalistas não querem ouvir.


 


Na luta contra a realização do referendo para a aprovação da Nova Constituição, a direita levanta a bandeira dos “estatutos autonômicos”, exigindo o repasse de ingressos do Imposto Direto aos Hidrocarbonetos, recurso que havia sido redistribuído aos municípios e ao pagamento da Renda Dignidade (aposentadoria paga a todos os maiores de 60 anos). Na ânsia de manter a nível local o poder perdido nacionalmente, a direita apostou na fragmentação do país e está quebrando a cara.


 


Isolamento


 


Na ação terrorista, além de explodirem uma válvula do gasoduto Yacuba-Rio Grande, obrigando o país a reduzir em 10% a exportação de hidrocarbonetos, bandos armados tomaram a unidade de gás de Rio Grande, com o qual desabasteceram o mercado interno de gás liquefeito de petróleo (GLP) e atacaram a unidade de compressão de Pocitos, localizada em Yacuba, impedindo o envio de gás à Argentina.


 


Contra a sede da empresa telefônica Entel, recém-nacionalizada, os bandos despejaram sua fúria: quebraram portas e janelas, roubaram cartões, computadores, móveis e destruíram tudo o que encontraram pela frente. O estrago em Santa Cruz foi de tal magnitude que as aulas tiveram de ser suspensas por cinco dias, deixando constrangidos até apoiadores do governador Ruben Costas e do presidente do Comitê “Cívico”, Branko Marinkovich, conhecidos por seu direitismo e preconceito.


 


Pelos danos à infra-estrutura petroleira e seus impactos negativos no contrato de exportação para o Brasil, só a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) perdeu US$ 100 milhões; o Serviço de Impostos Nacionais (SIN), US$ 9,2 milhões; a Aduana deixou de arrecadar US$ 1,8 milhão; o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INRA), US$ 500 mil, e novos prejuízos são comunicados a cada dia.No caso específico da sede do INRA de Santa Cruz, a mais afetada, a avaliação é que as informações roubadas e os documentos queimados, que continham valiosas análises sobre a concentração de terras, exigirão novos estudos sobre a função econômico-social das propriedades, retardando o processo de redistribuição.


 


Vale lembrar que recentemente o INRA havia declarado ilegal a possessão de 12 mil hectares do “empreendimento” Yaminska, de propriedade da família do presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, Branco Marinkovic, o maior latifundiário da Bolívia. Na ação, a instituição havia pedido que a propriedade fosse desalojada para  posterior distribuição das terras entre os membros do povo guarayo, uma das etnias indígenas da região roubadas pela família Marinkovic.


 


Para a delegada presidencial em Santa Cruz, Gabriela Montaño, a intenção dos vândalos foi clara: “frear a luta contra o latifúndio e o avanço da reforma agrária”. Desapareceram cerca de 1,5 mil arquivos com títulos de propriedade que beneficiariam camponeses e comunidades indígenas. Conforme os dados do INRA, cerca de 15 famílias na região são donos de extensões de terra 25 vezes superiores à área urbana de Santa Cruz de La Sierra.Em visita às instalações, o vice-ministro de Reforma Agrária, Alejandro Almaraz, sublinhou que os danos econômicos ascendem a meio milhão de dólares e que pedirá o indiciamento dos dirigentes “cívicos” e governamentais da região implicados na agressão.


 


Delinqüentes


 


O fato é que para conseguir consumar tais crimes e tomar as instalações protegidas pela Guarda Nacional, foi dada carta branca às quadrilhas. “Da mesma forma que nas guerras púnicas, seu ordenado era o que pudessem levar. Na verdade, receberam dinheiro e incentivo para assaltar. Os jovens delinqüentes e drogados desapareceram das esquinas, o lumpesinato estava todos contratado pela direita“, denunciou o empresário Salvador Ric, dono de uma construtora e de uma cadeia de supermercados de Santa Cruz.


 


Ex-ministro de Obras Públicas, Ric destacou que o racismo explicitado pela manifestação direitista reflete a concepção de seus líderes. “É evidente o caráter absolutamente discriminatório da Câmara da Indústria e Comércio e das Associações Comerciais da região, onde a cerca de dois anos só podiam presidir tais entidades cruzenhos de nascimento, como para não se deixar contaminar”, ressaltou.Nas próximas horas a marcha de milhares estará chegando a Santa Cruz, berço da reação de uma direita fascista, que não esconde sequer a identidade com o nazismo. Acobertada pela mídia venal, a reação quer sangue.


 


A resposta dos governos da região, expressa pela Unasul, é a defesa do respeito à democracia e à soberania da Bolívia, representadas pelo governo Evo. Há uma luta em curso onde a solidariedade internacional cumpre cada vez mais um papel fundamental. Por isso, afirmou o secretário de Relações Internacionais da CUT, João Felício, “nos próximos dias a Central Única dos Trabalhadores se fará presente com uma delegação à Bolívia, para expressar a nossa identidade com o processo de transformações que está vivendo o país, em benefício da grande maioria de seu povo”. “Somos favoráveis à integração latino-americana e contra o imperialismo. Este é o sentimento que deve nortear as nossas ações de solidariedade contra todo e qualquer intento golpista, contra toda e qualquer forma de retrocesso”, acrescentou. 


 


*Leonardo Severo é jornalista do jornal Hora do Povo.