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José Luís Fiori: Guerra e paz

A Rússia foi a grande perdedora da década de 90 e, contra o senso comum, será a grande questionadora da nova ordem mundial



“A guerra nunca deflagra subitamente: a sua extensão não é obra de um instante.”



Carl Von Clausewitz, em

Os fatos mais recentes e importantes são conhecidos. No mês de abril de 2008, a última reunião de cúpula da Otan, na cidade de Bucareste, reconheceu a aspiração da Geórgia de participar da aliança militar liderada pelos EUA, apesar da resistência alemã e da oposição explícita do governo russo.



E no dia 11 de julho de 2008, aviões da Força Aérea Russa sobrevoaram o território da Ossétia do Sul na véspera da visita, à Geórgia, da secretária de Estado norte-americana, Condollezza Rice, para inaugurar, no dia 15 de julho, à operação “Resposta Imediata 2008”: um exercício militar conjunto do exército norte-americano com as tropas da Geórgia, Ucrânia, Armênia e Azerbaijão, realizado na Base Aérea de Vaziani, que havia pertencido à Força Aérea Russa até 2001.



Logo em seguida, no dia 8 de agosto de 2008, as Forças Armadas da Geórgia atacaram a província da Ossétia do Sul e conquistaram sua capital, Tskhinvali.



Não está claro por quê a Geórgia atacou a Ossétia do Sul exatamente no dia da abertura das Olimpíadas chinesas.



Mas não há dúvida que a grande surpresa dos governos envolvidos nesta história foi a rapidez, extensão e eficácia da resposta russa, que em poucas horas, cercou, dividiu e atacou – por terra, mar e ar – o território da Geórgia, numa demonstração contundente de decisão política, organização militar e poder de conquista.



Tudo feito com tamanha rapidez e agilidade que deixou os governos “ocidentais” perplexos, divididos e impotentes, obrigados a acompanhar os desdobramentos da ofensiva russa, hora a hora, por meio de fatos consumados, sem conseguir saber ou poder antecipar o seu objetivo final.



Logo depois da Segunda Guerra Mundial, Hans Morghentau, pai da teoria política internacional norte-americana, formulou uma tese muito simples e clássica sobre a origem das guerras.



Segundo Morghentau, “a permanência do status de subordinação dos países derrotados numa guerra pode facilmente produzir a vontade destes países desfazerem a derrota e jogarem por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos, retomando seu antigo lugar na hierarquia do poder mundial. Ou seja, a política imperialista dos países vitoriosos tende a provocar uma política imperialista igual e contrária da parte dos derrotados. E se o derrotado não tiver sido arruinado para sempre, ele quererá retomar os territórios que perdeu e, se possível, ganhar ainda mais do que perdeu, na última guerra”.



Em 1991, depois do fim da Guerra Fria, não houve um acordo de paz que estabelecesse as perdas da URSS e que definisse claramente as regras da nova ordem mundial imposta pelos vitoriosos, como havia acontecido no fim da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais.



De fato, a URSS não foi atacada, seu exército não foi destruído e seus governantes não foram punidos, mas durante toda a década de 90 os EUA e a UE apoiaram a autonomia dos países da antiga zona de influência soviética, e promoveram ativamente o desmembramento do território russo.



Começando pela Letônia, Estônia e Lituânia, e seguindo pela Ucrânia, a Bielorússia, os Bálcãs, o Cáucaso e os países da Ásia Central.



Neste período, os EUA também lideraram a expansão da Otan na direção do Leste, contra a opinião de alguns países europeus.



E mais recentemente, os EUA e a UE apoiaram a independência do Kosovo, aceleraram a instalação do seu “escudo anti-mísseis” na Europa Central, e estão armando e treinando as forças armadas da Ucrânia, da Geórgia e dos países da Ásia Central, sem levar em conta que a maior parte destes países pertenceu ao território russo durante os últimos três séculos.



Em 1890, o Império Russo, construído no Século 18, por Pedro o Grande e Catarina II, tinha 22.400.000 Km2 e 130 milhões de habitantes, era o segundo maior império contíguo da história da humanidade e uma da cinco maiores potências da Europa.



No Século 20, durante o período soviético, o território russo se manteve do mesmo tamanho, a população chegou a 300 milhões de habitantes e a Rússia se transformou na segunda maior potência militar e econômica do mundo.



Pois bem, hoje a Rússia tem 17.075.200 km2 e apenas 152 milhões de habitantes, ou seja, em apenas uma década, a década de 1990, a Rússia perdeu cerca de 5.000.000 km2 e cerca de 140 milhões de habitantes.



A maior parte dos analistas internacionais que se dedicam a prever o futuro se esquecem — em geral — que os grandes vitoriosos de 1991 não foram apenas os EUA.



Foram os EUA, a Alemanha e a China. Numa virada histórica onde só houve um grande derrotado, a URSS, cuja destruição trouxe de volta ao cenário internacional uma Rússia mutilada e ressentida.



A Alemanha e a China ainda tomarão muitos anos para “digerir” os novos territórios e zonas de influência que conquistaram, nas últimas décadas, na Europa Central e no Sudeste Asiático.



Enquanto isto, o desaparecimento da União Soviética colocou a Rússia na condição de uma potência derrotada, que perdeu um quarto do seu território e metade de sua população, mas que ainda mantém de pé o seu armamento atômico e o seu potencial militar e econômico, junto com uma decisão cada vez explícita “de desfazer a derrota e jogar por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos (em 1991), retomando seu lugar na hierarquia do poder mundial”.



Por isto, neste início do Século 21, a Rússia é um desafio e uma incógnita para os dirigentes de Bruxelas e de Washington e para os comandantes militares da Otan, quando, na verdade, o mistério não é tão grande — se Hans Morghentau estiver com a razão, se trata de um segredo de Polichinelo: a Rússia foi a grande perdedora da década de 90 e, ao contrário do que diz o senso comum, será a grande questionadora da nova ordem mundial, qualquer que ela seja, até que lhe devolvam – ou ela retome – o seu velho território, conquistado por Pedro, o Grande, e Catarina II.



Por isso, a atual guerra na Geórgia não é uma guerra antiga, pelo contrário, é um anúncio do futuro.


 


José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007).