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Marcos Domich e a desesperada direita boliviana

A direita desespera com o referendo do dia 10 de agosto e tudo faz para o torpedear. Mas com a inevitabilidade do referendo e o marco que o seu resultado pode representar, “há a esperança de que a mudança seja cada vez mais profunda e mais precisa nos

Há anos que um círculo juvenil de esquerda em Cochabamba reunia regularmente numa chichería [1]. Embalados pela boa chicha discutiam tudo, até filosofia.



Acabaram por chamar à chicharía “O 18 Brumário”. Numa das frequentes tertúlias um deles sustentava as teses de Avenarius e Mach e afirmava que a vela que tinha à frente não existia, que o que existia “era a sensação da vela”. Os outros, muito dialéticos e materialistas, replicavam que a vela “era uma realidade existente fora da consciência”. Tão acalorada foi a discussão que interveio a dono da chicharía, temendo pela ordem na sua venda. Dirigindo-se ao idealista subjetivo disse-lhe: Ai, rapaz, como podes dizer que a vela não existe, põe-lhe o dedo em cima!…” O senso comum impôs-se de forma rápida e concludente.



Um cálculo pior que o do idealista subjetivo da chicharía domina agora uns direitinhas em franco estado de confusão mental. Não querem o referendo revocatório e agarram-se a qualquer argumento, por disparatado que seja, e acabam por ignorar e aniquilar a legalidade vigente. É certo que não leram o “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, mas por instinto, por olfato de classe repetem a frase que Marx punha nos lábios da burguesia francesa: “Acabar com esta legalidade que nos mata”, replicam como eco almocreves do Oriente, quase 150 anos depois. Não vêem as caixas quadradas das urnas, vêem ataúdes.



A opinião pública nacional e também a internacional estão informadas, até à saciedade, que Evo Morales e as forças políticas e sociais que o apoiam consideram que há que esgotar as formas democráticas de confrontação da luta em curso. Já escrevemos com meridiana clareza que esta pode ser a última oportunidade que se concede à direita, aos adeptos de sempre da violência, para que o sangue não transborde. Mas o desespero liqüida a compreensão e nesse estado de confusão, quando se esgotou a lucidez, quando a ignorância e torpeza perturbam a razão, qualquer desenlace é possível.



Se destroçaram a legalidade (referendos ilegais, desacato das leis, bloqueio do referendo, desinformação e mentira por todos os lados), que deve fazer a esquerda, o povo organizado? A única saída que resta é pendurá-los à cinta e responder taco a taco. Nisso consiste dominar todas as formas de luta política.



Mas há algumas coisas a esclarecer. Há uma premissa. O apoio a Evo Morales é um apoio a uma política de mudança, transformada num imperativo histórico. Há a esperança de que a mudança seja cada vez mais profunda e mais precisa nos seus fins. Que seja uma mudança para a frente. Nesse sentido, parece-nos que fazer da trajetória e da vida de Evo uma hagiografia e não um elemento da propaganda da mudança progressista e avançada a que preside comporta alguns riscos que é melhor esconjurá-los a tempo. Insistimos em que o referendo deve converter-se na alavanca que ajude a remover os erros, que ajuda ao esperado “golpe de leme”.



Nota do tradutor
[1] Local onde se vende chicha, bebida alcoólica feita, normalmente de milho.



Marcos Domich é escritor, Professor da Universidade de La Paz, diretor da revista Marxismo Militante e dirigente do PC da Bolívia.