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Chile: Eleições, neoliberalismo e o futuro da Concertação

Comparativamente, a economia chilena está situada entre as mais sadias e fortes do continente. Entretanto, sempre é conveniente lembrar que as fortalezas do país seguem baseando-se na produção e exportação de bens primários, ou seja, o Chile ainda tem

A atual crise mundial, que atinge centralmente as economias mais desenvolvidas e que repercute sem discriminação em todos os paises do planeta, também tem afetado o Chile através do aumento do preço dos combustíveis e dos alimentos (especialmente grãos e lácteos). A inflação é o sintoma mais claro de uma crise que ameaça o conjunto dos países, e a receita tradicional – e quase automática para combatê-la – é reduzir o gasto público e desestimular o consumo por meio do aumento dos juros. O Chile não é uma exceção da regra. O país registra uma inflação de 6,7%, que supera em mais que o dobro a projetada para 2008, algo inacreditável há muito pouco tempo atrás, segundo a maioria dos economistas oficiais.



Pelo mesmo, a “autoridade econômica”, ou seja, o Conselho do Banco Central, decidiu agir do modo mais previsível: aumentar a taxa de juros de 6,75 a 7,25% anual, o nível mais alto desde janeiro de 1999.



Com sua decisão, o Banco Central busca reduzir a demanda interna, a qual, segundo diz no comunicado, continua crescendo a taxas elevadas, sobretudo em produtos importados. A medida sem dúvida aprofundará a desaceleração que vinham mostrando os créditos de consumo, pela redução da oferta bancaria e pela menor demanda das pessoas, em função do encarecimento dos empréstimos.



Vulnerabilidades



O diagnóstico da conjuntura nacional indica que o novo cenário da inflação responde a um fenômeno mundial que provoca aumentos de preços dos bens energéticos (petróleo e seus derivados, gás e eletricidade) e dos alimentos. De fato, tanto na sua matriz energética quanto na relação com a segurança alimentar, o Chile possui vulnerabilidades difíceis de contornar no curto prazo. Na disponibilidade de petróleo e gás natural, o país é altamente sensível às flutuações dos preços internacionais e, especificamente, no caso do gás natural, ele é muito dependente dos envios que possa realizar a vizinha Argentina. Já no que diz respeito a certos produtos da cesta alimentar, o Chile não possui auto-suficiência em determinados bens básicos, como o trigo, arroz e leite, entre outros.



Em resumo, o aumento de preço de serviços e artículos básicos, a inflação e o insuficiente reajuste do piso salarial (salário mínimo) têm gerado uma sensação de cansaço e descontento por parte da população chilena. Pelo menos isso é o que parece transparecer das pesquisas de opinião que foram realizadas neste último período.



Popularidade de Bachelet



Segundo dados divulgados recentemente pelo Centro de Estudos Públicos (CEP), 52% dos consultados desaprovam o desempenho econômico do governo, enquanto 48% reprovam os resultados obtidos pela gestão do atual gabinete da presidente Michelle Bachelet.



Reagindo aos resultados obtidos pela enquete, o ministro da Casa Civil, José Antonio Viera-Gallo, declarou que, se não existisse a crise internacional, a aprovação do Executivo teria sido bem mais alta. De acordo com a autoridade, uma das razões mais evidentes desse desconforto deve-se às funestas conseqüências que representa o aumento dos juros numa população que possui um alto endividamento, em grande parte devido a estímulos e facilidades de credito para consumo. Nas palavras do ministro: “Acredito que se haveria produzido um aumento notável se não tivéssemos a crise internacional. A maior preocupação pela inflação e pelos aumentos de preço que golpeia o bolso das famílias é o que determina a má percepção dos eleitores.”



Ainda que aceitemos que a crise internacional tem inevitáveis impactos sobre o desempenho da economia nacional, uma explicação desse tipo para justificar a insatisfação da cidadania com a atual administração é visivelmente insuficiente. A nosso entender, esses problemas são meramente coadjuvantes ou agravantes de circunstâncias que, da mesma forma que a crise mundial, tem uma causal estrutural. Uma observação mais apurada sobre a situação em que se encontra a grande maioria das nações – e o Chile em particular – nos demonstra que quase todas elas convivem com deficiências endêmicas: pobreza humilhante, desigualdade, ausência de proteção social, vulnerabilidade, risco, insegurança urbana, descaso do sistema de saúde, exploração excessiva e abusiva da força de trabalho, atividades predatórias das empresas, desrespeito pelos direitos das minorias, falta de perspectiva da juventude, etc.



Atribuímos, portanto, a queda na popularidade do atual administração a aspectos de longo prazo, relacionados com a forma como os diversos governos da Concertação têm lidado com a herança da ditadura e seu estigma neoliberal. A esta altura, está suficientemente demonstrado como os problemas da desigualdade no Chile explicam-se principalmente pelas condições estruturais da sociedade: a concentração da propriedade, a frágil organização social e sindical, a propagação de hábitos de consumo nas classes medias e altas próprias de países industrializados, os baixos níveis de educação e capacitação técnica, e o atraso tecnológico. Pode-se dizer que estamos ante aquilo que Antonio Gramsci diferenciava entre o que é permanente e o que é “ocasional”, entre o que é “orgânico” e o que é contingente. Para ele é fundamental estabelecer esta distinção na hora de efetuar uma analise da realidade social e ter claro o que é essencial na estrutura e o que só está lá por circunstância.



Decepções



Agravado por estes déficits “orgânicos”, a atual gestão de Bachelet esta defraudando as enormes expectativas que existiam no inicio do seu mandato: governo cidadão, paridade e fim à histórica discriminação das mulheres, combate às desigualdades, mudança cultural e substituição das antigas elites. Por exemplo, a crise provocada pela implementação de um novo sistema de transporte público na capital – o Transantiago – tornou-se mais virulenta porque o desenho e a execução do programa realizaram-se sem a participação da sociedade civil. E não é trivial que isto tenha acontecido precisamente sob um governo fundado, enfaticamente, num discurso no qual salienta sua empatia e aproximação com os cidadãos.



A promessa de avanço em matéria de proteção social como a grande tarefa desta administração ainda está para ser cumprida. A idéia da mudança cultural aparece associada ao primeiro governo presidido por uma mulher no Chile, que, justamente, alentou muitas expectativas entre as minorias. O fato de ser uma mulher simbolizava o ingresso dos excluídos secularmente na administração dos assuntos políticos.



Além disso, os temas relativos aos direitos das mulheres e a superação da moralidade conservadora têm sido crescentemente polêmicos no Chile pós-ditadura (por exemplo, a lei do divorcio e o uso dos métodos contraceptivos). Muito poucos duvidavam que, durante seu governo, se produziria uma expansão dos direitos civis e, sem dúvida, seriam as mulheres as principais beneficiarias. Hoje vigora o desencanto frente a esta possibilidade. Adicionado à dificuldade para se fazer cargo de novos conflitos e impasses que emergem na sociedade, deve-se ter em conta a erosão de legitimidade que representa não possibilitar a discussão de temas considerados perturbadores para a estabilidade nacional.



Nuvens cinzentas no horizonte eleitoral



Junto a esses problemas internos e às restrições impostas pela atual conjuntura econômica mundial, se adiciona uma situação inédita que está colocando em risco a continuidade da aliança entre os partidos que conformam a base do governo. É que nas eleições municipais de outubro próximo dois partidos do conglomerado (Partido por la Democracia e Partido Radical Social-democrata) decidiram unilateralmente concorrer em lista separada para a escolha dos vereadores. Isto poderia significar a fratura definitiva da coalizão – que vai cumprir 20 anos com o fim do atual período – no caso de que estes mesmos partidos decidam levar um candidato próprio para a contenda eleitoral de 2009.



O racha também pode vir pelo lado da Democracia Cristã, que já tem anunciado não abrir mão de levar um candidato do seu partido, considerando que os últimos dois presidentes representaram a ala socialista. Para eles, não respeitar a alternância de partidos significa desconhecer os acordos mínimos que se definiram antes da formação do bloco.



Parece evidente que a possibilidade de triunfo eleitoral com uma divisão dentro desta aliança é muito improvável, considerando que nas últimas três eleições a Concertação só conseguiu vencer em segundo turno graças ao apoio dos partidos do Bloco Juntos Podemos (Comunistas e Humanistas), e mesmo assim com uma porcentagem não muito expressiva.



Enquanto se mantenha o fracionamento da intencionalidade do voto entre uma direita com remanescentes pinochetistas e uma opção democrática de centro-esquerda, os partidos do conglomerado de governo deveriam manter a vantagem demonstrada até hoje. Se este último setor se divide, as possibilidades de sucesso eleitoral são realmente mínimas. Mas será que no horizonte concertacionista interessa somente ter sucesso eleitoral para impedir que a direita assuma as rédeas do governo nos próximos anos?



Neste ponto é valido fazer também a pergunta a respeito do que pode oferecer hoje a Concertação para continuar liderando os destinos do país. Ou, em outras palavras, o que diferenciaria este novo projeto com o já realizado por esta coalizão em quase 20 anos de gestão?



Parece-me prioritário, nesta etapa, consolidar e renovar alguns aspectos programáticos que surgem de uma autocrítica no interior do conglomerado governista. Nesse sentido, seria preciso repor uma lógica política coerente com o projeto democrático que dá sentido a esta coalizão. Para isso, é fundamental fortalecer uma equipe dotada de um mandato claro e de todas as faculdades necessárias para cumprir esta agenda, que entre suas tarefas prioritárias aborde o desafio de ampliar o campo democrático e a participação efetiva da cidadania, a superação dos entraves estruturais da desigualdade e o fortalecimento da proteção social (emprego e salários dignos, educação de qualidade e sem fins de lucro, segurança alimentar, saúde pública universal, previdência solidária, moradia social digna, reforma tributaria com carga progressiva).



Por sua vez, é fundamental recuperar aquela mística que caracterizou este pacto na época da sua formação, quando foi pensado para lutar pela recuperação da democracia na chamada Concertação de partidos pelo “Não”, convocatória feita para concorrer no plebiscito que pretendia dar continuidade à ditadura militar.



Esse espírito foi perdendo força com o transcorrer dos anos. Tanto os militantes quanto os funcionários dos governos concertacionistas abdicaram da dimensão ética em suas práticas cotidianas, chegando a exercer as formas mais corrosivas da ação política. Por isso mesmo, nos últimos tempos é moeda freqüente presenciar atos de falta de probidade, corrupção, má uso dos recursos fiscais e outras modalidades de decomposição da função pública. Em suma, é preciso reorganizar um novo ethos e um novo projeto histórico concertacionista, fundado na recuperação de uma cultura de centro-esquerda.



Daqui surge uma nova pergunta. Poderão os setores mais progressistas do Partido Socialista conciliar e negociar esta agenda de mudanças substantivas em diversos âmbitos, com os setores defensores do status quo seja no interior da Democracia Cristã, ou com os outros partidos da aliança?



Difícil é ter uma resposta precisa a esta interrogante, mas temos certeza que uma renovação do projeto desta coalizão deve sustentar-se principalmente naqueles aspectos que representam aquilo de mais progressista que existe neste conglomerado, quer dizer, o compromisso em torno de um programa de governo que se proponha superar as restrições “orgânicas” que impedem construir uma sociedade mais eqüitativa e democrática.



Em síntese, os partidos da Concertação não só devem conseguir capturar o entusiasmo e adesão da maioria dos chilenos como há 20 anos atrás, mas também precisam convocar os cidadãos na construção de um projeto para o futuro, reencantando especialmente aos jovens, que ate agora não acharam seu lugar no imaginário nacional, de conceber o Chile como uma comunidade de destino em que todos podem ser incluídos. Pensamos que estes são os requisitos mínimos que permitirão assegurar a continuidade do governo, pois do contrario, certamente, o êxito do seu próximo desafio eleitoral estará seriamente comprometido.



* Fernando de la Cuadra é chileno, sociólogo e membro da Rede Universitária de Pesquisas sobre América Latina (RUPAL)



Fonte: Agência Adital