Firmino Holanda: Desmontando e revelando os Brasis

Por que não se fornecem câmeras para a alta burguesia ou a elite política registrarem seu cotidiano, em suas próprias ´comunidades´?

Em princípio, projetos promovendo o audiovisual, junto a quaisquer segmentos da sociedade brasileira, são sempre bem-vindos. Revelando os Brasis, em sua primeira edição, resultou em 40 vídeos de curta metragem produzidos em cidades de, no máximo, 20 mil habitantes. Nós, cearenses, talvez conheçamos vagamente Icapuí e Croatá. Porém, é muito improvável que, antes desse projeto, tivéssemos noticia de algum documentário e, menos ainda, de um vídeo ficcional produzidos nessas localidades.


 


Mas, respectivamente, isso sucedeu, com trabalhos de Sidnéia da Silva (´Uma Pescadora Rara no Litoral do Ceará´) e de José Welliton Moraes (´Esperança´). E essa questão nem diz respeito propriamente ao fato de se fazer um curta digital. Hoje, até mesmo um simples aparelho de telefonia celular capta imagens em movimento. Com todas as limitações de som e imagem, assim mesmo, permite-se a expressão de idéias. E certos festivais de cinema até criaram categorias de premiação para trabalhos dessa natureza.


 


Mas o projeto do MinC, aqui discutido, implica uma seleção entre centenas de propostas; implica oficinas de roteiro, produção e direção; e a exibição nacional dos trabalhos. Isto significa financiamento e condições profissionais para realizadores noviços. É algo estimulante e urgente, pois longe se vão os dias em que para inserir-se no mundo bastaria ao indivíduo se alfabetizar e saber as quatro operações aritméticas. Hoje, outras aptidões se impõem. A mais recente é o domínio, por menor que seja, dos fundamentos da informática. Desnecessário aqui me estender sobre essa ultradiscutida ferramenta contemporânea.


 


A outra aptidão, historicamente situada após o ´bê-a-bá´, seria a inserção verdadeira no terreno do audiovisual (cinema e vídeo). Nesse, de fato, todos nós já estamos assentados. Mesmo famílias pobres dispõem de televisor, ou, de algum modo, vêem televisão. O computador também é tela aberta para o mundo. Existe,de modo latente, uma motivação para qualquer pessoal vocacionada desenvolver seu interesse real em criar imagens. Mesmo desconhecendo regras mínimas da expressão unindo som e imagem, mesmo sendo uma ´analfabeta´ nessa linguagem.


 


O professor Arlindo Machado reivindica a necessidade de se ensinar nos colégios matéria acerca da televisão. Ela domina nossas vidas com teledramaturgia, shows, futebol, além da propaganda de mais diversas matizes É um terreno propício para mentira de maior ou menor grau, pois a construção da imagem é e sempre foi um processo de manipulação, uma construção ideológica. Montar trechos significa criar brechas para se inserirem verdades e inverdades. Nem sempre isso se dá com plena intenção de quem as fabrica. Mas a manipulação existe. Caberia a pergunta: o espectador distinguiria nas ´entrelinhas´ o fosso existente entre as imagens, entre os planos, naquilo que o corte das imagens omite ou desvirtua?


 


Feito esse parêntese, retornemos ao Revelando os Brasis. Trata-se de algo interessante, chegando à sua terceira edição. O projeto pressupõe atender a um público sem familiaridade com a construção da imagem. Por isso, a partir de uma boa idéia — argumento ficcional ou documental — essa gente terá a chance de colocá-la na tela. Para isso, os selecionados fazem as citadas oficinas com cineastas experientes. Há uma preocupação necessária no que tange à formatação do produto final. Afinal, fazer um vídeo implica noções técnicas de roteiro, edição, organização do trabalho etc. , que são complexas, mesmo em produções mais modestas.


 


Direcionamento?


 


Revelando os Brasis promove quem é notoriamente amador e habita lugares sem chances de se obter maiores conhecimentos técnicos da prática do audiovisual. Mas, expandido-se um pouco a presente reflexão, as tais oficinas implicariam inevitável direcionamento estético? Aí adentramos outro terreno, onde mais sutilmente discursos tradicionais se manifestam. Queira-se ou não, o ganhador do prêmio vai se adequar a normas narrativas que assegurem o mínimo de ´comunicação´ do seu trabalho. Dir-se-ia que essas normas obedecem a um ´bom senso comum´, às regras do ´começo-meio-fim´, por exemplo. Existiria uma forma correta ou ideal para atingir melhores resultados? E, antes disso, os critérios de seleção já favoreceriam algo direcionado para essa forma mais previsível?


 


Além de tudo, considere-se que, ao se aventurar na prática do vídeo, os iniciantes já têm considerável carga de informação audiovisual. Já se encontram impregnados de imagens cine-televisivas – mesmo em Anori (AM), Urussanga (SC), Jacaraú (PB) ou Cordeiro (RJ). Mas o problema é dispor de visão sistematizada e crítica sobre as mesmas. Aí reside nosso ponto de reflexão. Onde estaria a informação crítica necessária para superação de tais discursos já cristalizados? Aí voltamos ao que dissemos acima: discutir televisão é fundamental, pois aprendemos a distinguir o discurso que se imiscui nas brechas da linguagem. Quem disso tem maior consciência há de pensar melhor na hora de escrever um roteiro, de captar imagens com a câmera e de editá-las no computador. Quem dispõe de menor informação e menor massa crítica há de referendar, portanto, a ideologia dominante.


 


Simultaneamente à capacitação técnica, é necessária a capacitação filosófica, histórica, política, cultural, sociológica sobre o assunto em pauta. Mas não idealizemos. Numa oficina endereçada a amadores, não se espera aprofundamento de coisa nenhuma. Ensina-se o básico da comunicação audiovisual. Nesse projeto, os selecionados enviam um texto, de um fato real ou imaginário, motivado pelo universo de onde vêm. É improvável que nas ligeiras oficinas de roteiro se levem as idéias propostas a um campo de reflexão mais aprofundado. Improvável também que em termos de construção de imagens (da captação à edição) ocorra maior entendimento do que significa esse processo lingüisticamente.


 


Revelando os Brasis atrai idéias como ´descentralização´ e ´democratização´ da produção do audiovisual no Brasil, notória e historicamente mais desenvolvidas no eixo Rio-São Paulo ou em grandes capitais. E isso é necessário (o professor Paulo Emílio Salles Gomes, paulista, já preconizava um cinema fora dos centros hegemônicos do país, que, segundo ele, se desvincularia de um olhar-padrão de nossa múltipla realidade). E o projeto atrai também clichês do tipo ´uma câmera na mão e uma idéia na cabeça´. Mas, por outro lado, pode também atrair críticas em torno do que imaginamos ser ´o povo´, esse mito da burguesia. Dar-lhe uma câmera seria um gesto de inclusão no universo audiovisual, antes privilégio de poucos. Colonizadores davam espelhos para os índios se olharem. As instituições e ONGs dão câmeras para se produzir o mesmo efeito. O povo continua tutelado nesse gesto? Por que não se fornecem câmeras para a alta burguesia ou a elite política registrarem seu cotidiano, em suas próprias ´comunidades´? Parafraseando o nosso pioneiro cineasta Humberto Mauro, a prosperidade não seria ´fotogênica´? Não há interesse antropológico em torno dos que vivem acima da linha pobreza?


 


Olhar e identidade


 


Quem somos nós, os brasileiros? Que idéia podemos construir acerca de nossa nacionalidade? Questões como essas, envolvendo fundamentalmente identidade, são perseguidas desde meados do século XIX. Historiadores e sociólogos brasileiros importaram teses cientificistas, no intuito de decifrar nossa face e de colocá-la na perspectiva futura. Aceitas, discutidas, negadas ou renegadas, constituíram um duro campo de prova, pois estavam minadas de determinismo racial, de ideologia eurocêntrica. Mas, por outro lado, a ideologia que pode impregnar a linguagem audiovisual (refiro-me mais precisamente ao que vai da captura de imagem-som à montagem desse material) é algo mais sutil para se colocar em discussão.


 


Uma coisa são teses afirmando que certa formação craniana indica tendência criminosa do indivíduo; ou ainda especulando o quanto a geografia brasileira induz à indolência. Outra coisa é entender que enquadramentos de câmera ou, ainda, estilos de montagem audiovisual têm funções narrativas específicas e ideologicamente determinantes (conforme suas relações com outros elementos de linguagem, é claro). Por conseguinte, uma coisa é a tradição acadêmica em torno da palavra ,escrita ou falada, que permite uma compreensão mais transparente das contradições e dos erros argumentativos daquelas teses. Outra coisa é o cinema. Com mais de um século de existência, apesar de toda a teoria crítica sobre tal expressão, a influência dessa linguagem é mais sutil e subliminar. Mas a carga ideológica nela persiste e, como ´osmose´, vai preenchendo corações e mentes. Visões de mundo se firmam a partir daí, eventualmente sob a roupagem da pura e simples diversão.


 


Não se trata, aqui, de nenhuma teoria da conspiração. No Estado Novo, criou-se o Departamento de Imprensa e Propaganda. O nome já diz tudo. Em seus cine-jornais, procurava-se não só afirmar os atos do ditador Getúlio Vargas, mas também forjar uma idéia de nacionalidade. Por exemplo: Jacaré e seus companheiros de jangada, reivindicando direitos para sua categoria, eram nos filmes do DIP exaltados como heróis do mar, prova da pujança do brasileiro. Aí, atenuava-se o sentido político daquela ação popular. Na época, inocentes filmes de Humberto Mauro, com música de Villa-Lobos e eventuais idéias de Roquette Pinto, eram rodados no Instituto Nacional do Cinema Educativo. Também forjavam uma idéia de Brasil, com seus cantos de trabalho, seus feitos científicos e sobretudo com sua ´alma´.


 


Hoje, são entregues câmeras ao povo provinciano, do ´Brasil profundo´, dos grotões, sob a chancela do Ministério da Cultura. Os projetos são julgados por professores e profissionais da área do cinema. Nenhuma ironia crítica nisso, pois não há outra forma de se tocar o projeto. Alguém tem que escolher o que julgar melhor. Nem todos podem vencer. Mas há de se convir: esse Brasil recôndito, com suas melhores e reveladoras histórias, é uma construção a partir de critérios de especialistas das metrópoles detentoras do saber dominante do pensamento audiovisual (da escolha do argumento à oficina, chegando-se ao apoio técnico especializado na hora da realização do trabalho). Isto se vê também em filmes de indígenas ou de moradores de favelas, animados por ONGs. As minorias terminam adotando o código narrativo da elite. Não constroem seus próprios códigos e nem há tempo hábil para isso. Nem tempo de se elaborar uma crítica a esse mesmo código. O jeito é ler seu próprio mundo provinciano através do olhar emprestado por quem é de fora. Assim, a linguagem adotada não carregaria em si mesma o vírus de uma ideologia ´centralizadora´ – apesar do intuito de se ´descentralizar´ a produção? Mas tudo não deixa de ser uma experiência interessante para ambos os lados – desde que vivida em plena consciência de que o processo sempre será desprovido de uma idealizada espontaneidade. E esse foi o motivo dessas palavras sobre Revelando os Brasis.


 


 



Firmino Holanda é professor de cinema da Universidade Federal do Ceará.