O legado de Hipólito

Neste ano, a imprensa brasileira completa 200 anos. Duzentos anos de História da imprensa. É pouco? Sim, muito pouco, se compararmos noções do tempo histórico. Afinal, o que são 200 anos? Pois foi exatamente há dois séculos que nascia a imprensa no Brasil

Corria o ano de 1808 e aqui aportava, fugida de Portugal, a Família Real portuguesa. D. João VI e sua gente trocavam Portugal pela terra dos papagaios, com medo das tropas de Napoleão. Antes disso, o livro e o jornal já eram realidade em muitos países europeus, nos Estados Unidos e até nas colônias espanholas – México e Peru. No Brasil, até aquela data, eram pecados. Pecados de morte, suscitando maldições e condenações.


 


Mesmo com a chegada de D. João VI, as coisas não foram fáceis para quem ousasse se dedicar à divulgação de idéias através da palavra. Mas o rei tinha que divulgar para seus súditos notícias do seu reino. Foi assim que tivemos nosso primeiro jornal, “A Gazeta do Rio de Janeiro”. Começou a circular em 10 de setembro de 1808, em máquinas trazidas da Inglaterra. Como não poderia ser diferente, só imprimia notícias favoráveis ao Império. Laurentino Gomes, no seu livro “1808”, resgata uma observação do historiador Johon Armitage sobre a publicação: “A julgar-se o Brasil pelo seu único periódico, seria um paraíso terrestre, onde nunca se tinha expressado uma só crítica ou reclamação”.


 


Entra em cena então outro jornalista, Hipólito da Costa. Três meses antes da estréia da “Gazeta”, no Rio de Janeiro, Hipólito lançou o seu “Correio Braziliense”. Só que a milhares de milhas daqui: em Londres. Logo que leu o jornal áulico, Hipólito teria reclamado: “Como se gasta tão boa qualidade de papel em imprimir tão ruim matéria e que melhor empregaria se fosse usado para embrulhar manteiga?”.


 


Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça era natural da colônia do Sacramento, Cisplatina, território integrado ao Uruguai. D. Rodrigo de Souza Coutinho, então ministro de D. João VI e futuro Conde de Linhares, encarregou Hipólito da Costa de uma missão que marcou profundamente o jornalista: uma longa viagem de prospecção industrial e agrícola aos Estados Unidos. Deslumbrado, Hipólito filiou-se à maçonaria. Foi preso em Portugal e, depois, fugiu para Inglaterra, sob a proteção do amigo e filho do rei, o duque de Sussex. Um calo para nosso rei bonachão.


 


O jornal de Hipólito era publicado em forma de livro. Tinha 100 páginas. Como visionário, o jornalista dividiu seu jornal em sessões – como as editorias temáticas dos jornais de hoje. Assim, organizou sua publicação em vários compartimentos: política, comércios, literatura, ciências e miscelânea.


 


Em “O Nascimento da Imprensa Brasileira“, a jornalista e historiadora Isabel Lustosa defende o patrono da imprensa brasileira como um jornalista que abriu importantes debates para o nosso incipiente processo civilizatório. Mesmo cobrindo acontecimentos internacionais, todas as notícias que imprimiam no “Correio” tinham como alvo o Brasil e seu possível público leitor. “Era para informar os brasileiro do que se passava no mundo, para influir sobre seus espíritos direcionando-os no sentido das idéias liberais, para chamar a atenção para o caráter daninho do absolutismo ou de qualquer forma de despotismo que Hipólito escrevia”.


 


O mundo era outro. A primeira globalização estava em curso. A revolução industrial, principalmente, começava a movimentar o mundo em torno do liberalismo. Todos queriam comercializar seus produtos e buscar outros em terra estrangeira. França e Inglaterra davam as cartas. Dom João VI, depois de enganar Napoleão, aliou-se com os ingleses. Aliança que perdurou até a derrubada do Império. Aqui, mandavam a Igreja, o Império e a Inglaterra. Talvez, por isso, o historiador Nelson Werneck Sodré, apesar de reconhecer a importância de Hipólito, questiona alguma de suas posições em ´História da Imprensa no Brasil´.


 


— Até onde teria influído, realmente, o “Correio Braziliense” na opinião brasileira do tempo? É problema sobre o qual algo se pode deduzir, mas não se pode afirmar muito. Desde logo, é preciso frisar quão pouco seria a gente capaz de ler um periódico desse tipo, o doutrinário, no Brasil dos primeiros lustros do Século XIX. Depois, é ainda necessário se verificar, ou estimar, quais os grupos, camadas ou classes sociais receptivos à pregação de Hipólito. Parece evidente que, sendo o problema fundamental, na época, o do rompimento do regime de monopólio, a que o “Correio Braziliense” dera a sua adesão desde o início, refletindo os interesses da burguesia inglesa mais do que os daqueles grupos, camadas ou classes no Brasil, haveria aqui, pelo menos em potencial, elementos capazes de receber e assimilar a doutrinação mensal que lhes era oferecida. Disso não parece restar dúvidas.


 


Um jornal para a elite


 


Werneck defende que a classe dominante brasileira, a dos grandes proprietários, a mais interessada no livre comércio, constituía o público potencial do órgão editado em Londres. Talvez por isso Hipólito tenha incomodado tanto a D. João VI. Ora, o atraso da imprensa no Brasil devia-se a dois pontos: ausência de capitalismo e ausência de burguesia.


 


Laurentino Gomes narra, em “1808”, vários episódios envolvendo Hipólito e D. João VI. Conta, por exemplo, uma pitoresca história, quando da declaração dos índios botocudos, que infernizavam a vida de fazendeiros e colonos na antiga Província do Espírito Santo. “O príncipe regente publicou uma proclamação na qual convida os índios a habitar nas aldeias, a se fazerem cristãos, prometendo-lhes, se viverem em boa inteligência com os portugueses, que seus direitos serão reconhecidos e, como os outros vassalos, gozarão da proteção do Estado, mas se persistirem em sua vida bárbara e feroz, os soldados do príncipe terão ordem de lhes fazer guerra de extermínio.”


 


Sabendo do episódio, Hipólito ironizou a medida num editorial do correio Braziliense: “Há muito tempo não leio um documento tão célebre; e o publicarei quando receber a resposta de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botocudos”.


 


As ironias de Hipólito eram muitas e atingiam diretamente a administração de D. João VI. Quando a corte aqui chegou ao Brasil, D. João enfrentou seu primeiro grande problema. Não havia habitações para os milhares de acompanhantes da corte. O Rio de Janeiro contava apenas com 60 mil habitantes e, por ordem do conde dos Arcos, criou-se “o famigerado sistema de ‘aposentadorias’, pelo qual as casas eram requisitadas para uso da nobreza”. Conta Laurentino que os endereços escolhidos eram marcados na porta com as letras PR, iniciais de Príncipe Regente, “que imediatamente a população começou a interpretar como ponha-se na rua”. Hipólito, sabendo do problema, disparou sua metralhadora quanto a tal atitude. Dizia que o sistema de aposentadoria “medieval, era um ataque direto ao sagrado direito de propriedade, que poderia tornar o novo governo no Brasil odioso para o seu povo”.


 


Com suas críticas ferinas, Hipólito tanto incomodou que nosso príncipe regente o corrompeu até certo ponto. A Coroa portuguesa fez um acordo secreto com o jornalista em 1812. Reza tal acordo que o governo compraria um determinado número de exemplares do jornal. E mais: daria um subsídio para o próprio jornalista, “em troca de moderação nas suas críticas contra a monarquia”, assinala Laurentino.


 


Num despacho oficial de Londres, o embaixador português, D. Domingos de Sousa Coutinho, avaliava os resultados do acordo.


 


— Eu tenho contido Hipólito da Costa em parte até aqui com a esperança da subscrição que pede. Eu não sei outro modo de o fazer calar.


 


Ainda segundo o livro de Laurentino, o historiador Oliveira Lima, ao avaliar essa relação secreta, dizia que Hipólito José da Costa, “se não fosse propriamente venal, não foi todavia incorruptível, pois se prestava a moderar seus arrancos de linguagem a troco de considerações, de distinções e mesmo de patrocínio oficial”.


 


Imprensa e poder


 


Imprensa e poder sempre andaram de mãos dadas. Tanto em 1808, quando em 2008. Servindo aos interesses ingleses ou não, recebendo ou não dinheiro da Corte portuguesa para arrefecer seus comentários, Hipólito da Costa foi o primeiro jornalista brasileiro a tecer críticas ao medieval Império brasileiro. Com isso abriu caminho para outros jornais e jornalistas independentes que começaram a aparecer no Brasil com a partida de D. João para Portugal durante a revolução do Porto, em 1820. Segundo Isabel Lustosa, dentre os liberais brasileiros Hipólito mais se identificou com José Bonifácio e seus projetos para o Brasil. Werneck tem outra interpretação. Com a Independência e o desaparecimento do “Correio Braziliense”, segundo Werneck, o pensamento de Hipólito tornou-se claro.


 


— Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas a ninguém aborrece mais do que nós que sejam essas reformas feitas pelo povo. Reconhecemos as más conseqüências desse modo de reformar. Desejamos as reformas, mas feitas pelo governo, e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo.


 


As palavras são de 1811, assinala Sodré, mas Hipólito da Costa permaneceu fiel ao que elas traduziam de conteúdo político. “Essa era, sem dúvida, também a posição da classe dominante, no Brasil e na época. Mas esta evoluiu, progressivamente, esposando, em 1822, a solução da independência. Hipólito da Costa não a esposou; aceitou-a. Foi ultrapassado pelos acontecimentos e, portanto, pela parte mais importante de seu público. E o “Correio Braziliense” perdeu a razão de existir, por isso mesmo”.


 


Mas na esteira de Hipólito da Costa e do seu Correio Braziliense ou Armazém Literário, surgiram jornais mais conservadores e liberariais, colocando na mesa do poder questões que não ficavam apenas no Fico ou na Independência do Brasil, mas sim assuntos que mobilizavam o povo em torno de um País livre de amarras tanto da Inglaterra, quanto do jugo português. Surgiram novos nomes, muitos hoje esquecidos: Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, Cipriano Barata, João Soares Lisboa, Líbero Badaró, Tavares Bastos, Rui Barbosa, entre muitos outros. Em 2008, nossa liberdade de imprensa ainda é muito relativa. Muito devemos a Hipólito. E muito ainda as novas gerações têm que fazer para alcançarmos um jornalismo realmente engajado com os reais problemas brasileiros.


 


 


Fonte: Diário do Nordeste