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Guilherme Scalzilli: “A questão da nomenclatura”

Clóvis Rossi qualifica seus críticos como “debilóides do lulo-petismo”. Augusto Nunes prefere “subespécie”, “idiotas” e “cretinos”. Outros usam “chimpanzés”, “raça maldita” e “imbecis”. Se esse jargão demonstra independência ou ignorância, cabe ao públ

A pauta política dos grandes veículos obedece à cronologia da conveniência.
Os assuntos perdem relevância quando seus desdobramentos contrariam as motivações que inicialmente justificaram a exploração dos fatos. Portanto, antes que
outros motes ocupem as atenções gerais, é necessário impedir que a cobertura
jornalística sobre a aviação civil mergulhe na obsolescência. Talvez assim
entendamos melhor um dos tantos episódios sombrios da história da imprensa
brasileira.


 


Nasce uma crise


 


A propaganda maquiada de jornalismo inventou o esgotamento
infra-estrutural fulminante. Enquanto no resto do planeta fenômenos semelhantes
são processos longos e cumulativos, nossa crise aérea floresceu em apenas
quatro anos. E o sucateamento do transporte ferroviário? E o Plano Diretor
para a Infraero, de 1982, que já sugeria a ampliação de Cumbica e a limitação
do movimento de Congonhas? Por que Viracopos foi subutilizado por duas décadas?
Não importa. Antes dos gestores petistas, incompetentes e corruptos, voar
no país era supimpa.


 



No entanto, ainda que se concorde com a premissa do colapso, ele não explica
todos os eventos identificados com o “caos aéreo”. Quem associou a paralisação
dos aeroportos à administração federal foram os próprios controladores amotinados.
A imprensa usou-os como bodes expiatórios para inaugurar a crise, legitimando
suas reivindicações, e depois criticou a demora das autoridades em puni-los.
O movimento acabou em março e o tráfego foi normalizado, mas a simbologia
do infortúnio permaneceu. Quando rompemos as mistificações do noticiário,
descobrimos que os problemas nos aeroportos são superdimensionados e embaralhados para transmitir a falsa impressão de uma crise generalizada e ininterrupta.


 



A maioria dos vôos realizados nos últimos cinco meses transcorreu normalmente,
exceto sob condições atmosféricas inadequadas. Entretanto, mesmo atrasos
de poucos minutos e problemas causados por neblina ou tempestades entram
na conta do “apagão”.


 


O governo criminoso


 


Para o colunista Ricardo Daudt, o governo “assassinou mais de duzentas pessoas”, porque “sabia” que os acidentes iriam ocorrer. Reinaldo Azevedo concordou: “As mortes têm mesmo a ver com o governo federal”, que é “assassino culposo”, pois fabricou “360 mortos”. Diogo Mainardi ressaltou o “descaso criminoso” e a “barbárie aérea”. Mesmo quando não chega a esse nível de insensatez, a maioria dos analistas afirma que as tragédias teriam sido evitadas em outro contexto administrativo.


 



Mentira. O choque do Boeing da Gol com o jato Legacy foi causado por erros
dos controladores de vôo e dos pilotos estadunidenses. A explosão do airbus
da TAM originou-se numa falha mecânica, provavelmente agravada por imperícia
do piloto. O governo federal não influenciou as fatalidades, cuja relação
causal com um suposto “apagão” é nula. Crises aéreas não desligam transponders,
não travam reversos nem pousam com manetes em posição errada.
Apenas cínicos e insensíveis culpam governos por acidentes dessa natureza,
politizando terríveis perdas humanas, manipulando a comoção pública e desprezando
o rigor apurativo. Até desabafos indignados estão sujeitos aos limites da
decência e da legalidade – por isso nenhum idiota saiu gritando que FHC e
seus tucanos eram culpados pela queda do Fokker 100 da Tam, em 1996.


 



O mais preocupante dessas deturpações é que elas contribuem para a sobrevivência
dos problemas reais. As empresas aéreas, eternas causadoras de transtornos,
aproveitam a tolerância da mídia (afinal, são grandes anunciantes) para incrementar
sua rotina de abusos e desrespeitos contra os passageiros. Funcionários grosseiros,
overbooking, filas intermináveis e aeronaves defeituosas viraram sintomas
da enfermidade petista. Previsivelmente, assim que as práticas lesivas receberem
punições merecidas, o governo será acusado de planejar a falência das companhias.


 


 


Terminologias


 


Cerca de duas mil pessoas morreram nas estradas paulistas desde outubro, quando o tal “apagão” surgiu. Cinco vezes o número de mortos nos acidentes aéreos. Na capital, o trânsito vive em colapso permanente, escancarando a saturação dos transportes públicos. Há décadas, todo dia, milhões de cidadãos enfrentam congestionamentos gigantescos, com média de absurdos 111 km nos horários de pico.


 



O excesso de veículos está para os congestionamentos como o aumento de passageiros para o caos nos aeroportos. A falta de verbas que justifica uma ridícula
malha metroviária também explicaria a escassez de terminais e pistas. As
mesmas chuvas que param o trânsito impedem pousos e decolagens. Mas por que
ninguém enxerga um “apagão dos transportes” em São Paulo?


Os defensores da mídia oposicionista argumentam que essa polêmica se resume
a um estéril debate sobre nomenclaturas. E talvez estejam certos. A essência
das coisas independe do vocabulário utilizado.


 



Se existe quem equipare saguões tumultuados às sobretaxas, racionamentos
e blecautes do governo FHC, é razoável que alguém veja na “crise aérea” uma
invenção midiática. Se “apagão” não define uma calamidade que afeta diariamente
uma população proporcional à da Bélgica, a prudência aconselha não ver apagões
em lugar algum. “Golpista” representa apenas um adjetivo possível para uma
imprensa que se desvia de suas atribuições constitucionais com o objetivo
de ludibriar o (e)leitorado. Chamá-la “democrática” não modifica sua natureza.


 



O mesmo vale para os comentaristas. Clóvis Rossi qualifica seus críticos
como “debilóides do lulo-petismo”. Augusto Nunes prefere “subespécie”, “idiotas”
e “cretinos”. Outros usam “chimpanzés”, “raça maldita” e “imbecis”. Se esse
jargão demonstra independência ou ignorância, cabe ao público avaliar. O
fato é que a expressão “apagão aéreo” encaixa-se perfeitamente no repertório
dos seus divulgadores.


 


*Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Autor do romance “Crisálida” (editora Casa Amarela). www.guilherme.scalzilli.nom.br.


 


Fonte: Revista Caros Amigos