Maria Nazareth Ferreira: “Fidel é imorrível”

Admiradora, quase fã, de Fidel Castro, a professora Maria Nazareth Ferreira, da USP, enxerga no modelo cubano o futuro do socialismo. Para ela, Fidel nunca morrerá e, quando fisicamente o fizer, permanecerá vivo entre os cubanos com força suficiente pa

A professora Maria Nazareth Ferreira, uma estudiosa respeitada da realidade da América Latina, deixa poucas dúvidas quanto à sua admiração pelo político Fidel Castro e pelo modelo político que ele lidera há quase cinco décadas em Cuba, onde, inclusive, já morou por algum tempo. Para ela, Fidel nunca morrerá e, quando fisicamente o fizer, permanecerá vivo entre os cubanos com força suficiente para não permitir que o regime socialista acabe.


 


Nada fica sem resposta e o estilo enfático dela torna interessante cada manifestação em defesa do que acredita ser o futuro que os latino-americanos deveriam abraçar no encaminhamento das soluções para os seus graves problemas. Concorde-se ou não com o mérito, é agradável, em tempos de globalização e de discurso quase único, ouvir uma voz que aponta caminhos diferentes, que foge ao senso comum e que consegue, ao longo de um diálogo por telefone que se estende por quase uma hora, manter o mesmo ritmo de entusiasmo com o que acredita ser uma experiência política vitoriosa. Sua entrevista exprime o entusiasmo com Fidel, hoje parcialmente compartilhado com o que Chàvez faz na Venezuela, ao mesmo tempo em que indica a clara decepção em relação à experiência brasileira com Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Tenho feito grandes críticas ao governo Lula”, diz ela, autora de livros importantes sobre a América Latina e professora da Universidade de São Paulo (USP).


 


Como fica a situação de Cuba com a provável morte de Fidel Castro? Raúl Castro conseguirá manter o país sob o mesmo regime ou haverá a implosão do sistema?


 


Olha, eu acho que quando o Fidel Castro morrer, ele vai morrer fisicamente. Ele não morre. Ele é imorrível, eu diria. Ele está de tal forma dentro dos cubanos que não vai fazer falta. O Raúl Castro, provavelmente, vai seguir a mesma política que ele vem seguindo, não mudou nada. A ausência de Fidel não provocou nenhuma mudança. Eu acho difícil, muito difícil, o regime socialista cubano mudar. Porque é um regime que nasceu no meio do povo, cresceu com o povo, o povo tem grande vantagem com isso. E, na verdade, as ameaças que acontecem contra o povo cubano – por exemplo, dos cubanos que estão lá em Miami, que foram exilados para lá – não levam em conta o nível de entranhamento, de enraizamento que tem a luta revolucionária em Cuba. Eu acho que para mudar o regime em Cuba será preciso matar os cubanos.


 


 


No último discurso de Raúl Castro, em 26 de julho último, ele anunciou mudanças “estruturais” e de “conceitos” para resolver os problemas econômicos. A senhora não acha que seria uma sinalização para um regime no estilo chinês, ou seja, total abertura para a livre empresa, mas também fechamento político?


 


Eu não acho, não. O cubano, o homem normal, o homem comum cubano, ele tem um excesso de liberdade que eu acho que nem nós brasileiros temos. Quem quer sair acaba saindo, volta. Por outro lado, as mudanças estruturais que o Raúl anunciou jamais serão no mesmo molde do chinês. Porque no chinês, na verdade, existe o capitalismo de Estado. Em Cuba isso não existe. Existiu uma abertura para o mercado internacional, para as empresas internacionais, em termos econômicos, mas nunca, jamais, adquiriu o cerne da questão social. Eu acho difícil haver uma mudança nessa questão. Jamais a saúde e a educação serão privatizadas em Cuba. As empresas multinacionais que quiserem ir para lá, podem entrar. A informação em Cuba é extremamente controlada. Controlada no bom sentido. Está na mão do Estado, e o Estado não abre mão da saúde, educação, e da informação. Isso é fundamental. E nos países novos – não falo só do Brasil – se esses três aspectos fossem controlados pelo Estado, teriam um Estado muito forte.


 


 


Professora, 70% dos 11 milhões de cubanos nasceram depois de 1959. E três milhões de habitantes têm menos de 20 anos. É uma geração que não viu as mudanças históricas. Hoje eles têm outros tipos de problemas. Como ficam as aspirações dessa maioria da população que quer mais espaço de participação política?


 


Olha, eu tenho a impressão que isso o Fidel já deu, há tempos atrás, logo que saiu do período especial. Houve várias aberturas, inclusive para o capital internacional. Eu estava lá no auge da crise (dos anos 90). Houve, inclusive, mais abertura para o capital internacional. Agora, essas aberturas só incentivaram aquela juventude a querer mais coisas. Mas, na verdade, não é tanta gente assim. A grande maioria dos jovens pertence às milícias populares, um processo de militarização da sociedade que existe em Cuba. A pessoa, quando atinge determinada idade, é convidada a participar. Não é obrigada. Mas a maioria participa. Se sente orgulhosa. Leva arma para casa. É diferente. Às vezes, acontecem alguns desvios dessa ordem, mais violentos, dos que querem sair de Cuba. Mas na verdade não é tanta gente assim.


 


 


Professora, há uma situação também que se pode chamar de anormal, esdrúxula. Um empregado de hotel, com gorjetas, no setor de hotéis internacionais, pode ganhar em Cuba 20 vezes mais do que um médico. Até quando vai ser possível sustentar esse quadro?


 


Realmente, você tocou num problema que eu acho que é chato. Há pessoas que ganham gorjetas nos hotéis internacionais, bares e restaurantes. Eles são incentivadas a saírem de Cuba. Mas os que saíram e foram para Miami estão voltando. Voltando ou então, sei lá, penando depois que saíram…Mas você sabia que, na Venezuela, existem 20 mil médicos cubanos resolvendo problemas de saúde? Esses médicos são um exemplo para os que ficam. Eles (os médicos cubanos) estão na Bolívia e no Brasil também. Existe uma escola de medicina perto de Havana que tem 12 mil alunos, muitos deles de todos os países, inclusive 200 negros norte-americanos. É uma escola de medicina voltada para os pobres de todo o mundo. Eles até criaram problemas no Brasil porque vinham de lá com uma formação muito melhor e vinham dividir o mercado dos médicos brasileiros aqui. É um exemplo uma sociedade como essa. O médico cubano faz parte de um projeto muito mais amplo. O problema que as pessoas não entendem é a questão da ideologia. Por que esses médicos que vão morar em favelas em Caracas e na Bolívia, em lugarejos onde nem água corrente tem? Por que não vão para o Rio de Janeiro, São Paulo ou mesmo os Estados Unidos para ter uma vida melhor? O que faz eles viverem esse tipo de coisa é exatamente é a ideologia. É que eles sabem que estão trabalhando por uma causa maior. Não resta dúvida. Vou dar uma opinião sobre a vida. Eu acho que o capitalismo não tem solução para os problemas sociais. Criou uma grande fenda social. A solução é o socialismo mesmo. Eu também jamais iria para os Estados Unidos para viver uma situação melhor. Eu tenho um trabalho a fazer. E eles também têm um trabalho de longo alcance, de longo prazo, que é a revolução socialista mundial. É uma questão ideológica, que é difícil de ser entendida. Olhando no varejo você não entende, mas se você olhar no atacado, você vai entender.


 


 


A senhora não acha que a insistência dos Estados Unidos em monitorar os destinos de Cuba não está dificultando o diálogo entre os atuais dirigentes cubanos e os setores mais moderados dos exilados que desejam conviver pacificamente com o sistema cubano e retornar?


 


Com certeza. Os Estados Unidos fazem é aguçar essa contradição. O governo americano, principalmente os republicanos. Muitos cubanos que têm parentes em Miami não têm o menor interesse em ir para lá, acham que eles têm uma vida de cão lá, de ligações com criminosos. Não só entre os exilados cubanos. Criam lei para os exilados não mandarem mais dólares para lá (Cuba). Eles fazem uma campanha com os exilados neste sentido. Não só com os exilados cubanos, mas com toda a América Latina. Há quase 50 anos que eles têm um bloqueio contra Cuba. Veja o tamanho de Cuba. A União Soviética já acabou. Como é que aquela minúscula ilha desafia a maior economia do planeta?


 


 


A senhora acha que uma virada brusca para o capitalismo comprometeria esses avanços nos setores de educação, saúde, esporte, que Cuba vem alcançando através dos tempos?


 


Claro. Mas o povo cubano não é tão idiota. Haja visto o senhor Fernando Henrique, que, em oito anos, fez um desastre aqui no Brasil com as privatizações, a saúde, a educação e abertura e venda das grandes empresas. Pensa por exemplo nos países do leste europeu. Estão na miséria. O socialismo ruiu, não dá para comparar com o cubano. Porque o socialismo no leste europeu veio de cima para baixo. Ele foi imposto. Em Cuba não, ele veio de baixo para cima. O povo participou ativamente dos processos revolucionários cubanos. O que não aconteceu no leste europeu. O leste europeu está entregue à miséria, à embriaguez, aos vícios, às drogas, à bebida, à prostituição, ao jogo, às máfias. Tomaram conta de tudo aquilo que era o mundo soviético. Você acha que isso não é um espelho para algumas pessoas em Cuba? O capitalismo não engana mais ninguém, não. É muito difícil. Precisa ser muito cego para não ver. Essa maravilha do mercado, o consumismo, essa idéia do neoliberalismo de expansão do consumismo. É uma coisa que só atinge as classes médias. Os trabalhadores do mundo não estão nessa. Isso não serve de modelo para a gente pensar. E eu acho que os cubanos têm um pouco de consciência, mesmo os que andam pelo mundo. Você vê, eles vivem ganhando tudo que é coisa no mundo, apesar do boicote, apesar do período especial que fez uma grande derrota no socialismo, na ausência da União Soviética. Apesar de tudo isso, eles têm o exemplo da vida. Eles saem e ganham.


 


 


Como a senhora viu o episódio dos atletas que desertaram e foram entregues pelo governo brasileiro ao regime cubano?


 


Eles foram vitimas daquela idéia de destruição, porque, realmente, são importantes como atletas. Eles seriam um fruto muito cobiçado pelos empresários, que são pessoas que visam, acima de tudo, o lucro. Não estão preocupados com mais nada, a não ser o lucro próprio. Eles eram uma mercadoria que poderia dar muito lucro para os empresários. Eles foram, digamos, seduzidos por esses empresários inescrupulosos. Isso é uma prostituição, no sentido óbvio da palavra. Foi um tipo de prostituição o que tentaram fazer com os cubanos. E eu acho que o governo brasileiro tomou uma medida excelente. Bati palmas, apesar de eu ter grandes críticas ao governo Lula. Acho que foi uma ação idônea, uma posição legítima, uma posição legal, um exemplo para o mundo. Fazer o contrário do que fazem os norte-americanos, segurar os cubanos lá, prometer mundos e fundos para eles e depois chamar todos de marginais e delinqüentes.


 


 


Mas, tirando o lado ideológico, esses atletas não teriam direito, como pessoas, de procurar outra maneira de vida, até para ganhar dinheiro mesmo?


 


Eu tive muitos amigos que fugiram de Cuba, gente que foi meu aluno lá e que fugiu porque achava que o mundo (lá fora) era melhor. Depois não tiveram problemas de voltar e voltaram para onde estavam. Mas esses caras aí, na verdade, foram seduzidos por uma terceira pessoa, um terceiro personagem, que é sujeito que os convidou. Então, na verdade, eles foram seduzidos e enganados, porque, se eles quisessem ter saído, eles teriam saído, como outros saíram. O governo cubano não tem dinheiro para pagar passagem para essas pessoas saírem. Porque lá quem controla as divisas internacionais, que são necessárias para se sair do país, é o governo. Agora, se você quiser pagar a passagem de um cubano para ele sair de lá e ele quiser sair, ele pode. Ninguém proíbe ele de sair. Agora, ele não pode é querer voltar depois. Porque vai causar um prejuízo muito grande. Ele é o ser que custou o sangue de muitos cubanos que morreram por ele. Então não é justo ele sair de lá e voltar depois, com o rabinho no meio das pernas.


 


 


A questão da posição do governo brasileiro é que foi bastante criticada por algumas setores de direitos humanos, algumas organizações. É que acham que o chamado direito de ir e vir ficou prejudicado…


 


Eu acho que esses setores de direitos humanos às vezes se preocupam muito com algumas coisas que são politicamente ótimas para dar visibilidade para eles na imprensa. Na verdade, eles deveriam se preocupar mesmo é com outras coisas muito mais graves que acontecem no Brasil com os brasileiros e não se preocupar tanto com isso, não. Eles vão para as mídias, para as manchetes. Eu não acredito nessa história de direitos humanos, não. O direito humano mais sagrado, para mim, é o direito à vida, o direito ao trabalho, à educação, à saúde. Isso Cuba tem muito mais do que o Brasil. Então, acho uma perda de tempo discutir isso com relação ao Brasil e Cuba.


 


 


Em 2009, daqui a menos de dois anos, o regime cubano completa 50 anos. Quais as projeções da senhora para uma marca que está tão perto?


 


Meu amigo, eu não sou futurista, eu não sou adivinhona, mas eu espero, a minha esperança é que Cuba esteja cada vez melhor. Sabe por quê? Porque eu acredito no futuro do socialismo no mundo, acredito no futuro de Cuba, no futuro da Venezuela que agora está muito ligada à Cuba. A grande dificuldade que Cuba tinha em termos de energia a Venezuela está suprindo. Do mesmo jeito que a Venezuela tinha problemas com a educação e com a saúde, e Cuba está resolvendo. A Bolívia também. A América Latina está mudando muito. A América Latina inclui Cuba, inclui também o México. Existem grandes dificuldades, mas eu acredito seriamente na integração latino-americana passa por esses países que estão na vanguarda que, infelizmente, o Brasil não está. Está de bobeira, está perdendo o bonde da história. Deveria estar e não está. Eu acredito que o mundo socialista é o mundo do futuro. E a América Latina para surgir a igualdade e a integração latino-americana tem que passar pelo socialismo, passar por Cuba, pela Venezuela, pela Bolívia. Acho que esses caminhos estão abertos agora. Desde 1972 que eu estudo a questão latino-americana, já escrevi alguns livros sobre a integração, as diversas integrações que nós tivemos. Eu sou muito otimista com relação ao futuro não só de Cuba, como de toda a América Latina, incluído aí o Brasil também. Acredito na humanidade, acredito muito no ser humano. Acredito que o socialismo é o caminho da humanização do ser humano.


 


 


E como analisa o papel do Fidel Castro ao longo de todos esses anos?


 



Bom, para mim ele é o maior político do século. Duvido que apareça outro. Para mim, ele superou Lênin – Stalin nem conta. Superou os grandes nomes da história. Superou até o Che Guevara, que foi grande, mas não pôde, não deu para fazer. Ele entregou a vida dele para a revolução, mudou o país dele. E lutou com todas as forças do mundo inteiro capazes de prejudicar o seu trabalho. E lutou até o fim. Para mim ele é o grande político, o maior político desse século.


 


 


Quem poderia ser o sucessor de Fidel Castro? O Hugo Chávez?


 


Você diz em termos de liderança mundial?


 


 


Sim.


 


Eu acho difícil. Acho que por muito que o Chávez faça, o Fidel, para o povo cubano e para os revolucionários, não morre. Ele é “imorrível”. Ele não pode ser substituído. O Chávez será muito grande se ele conseguir fazer o que ele está propondo em termos da integração latino-americana, sul-americana pelo menos. Ele poderá fazer isso, mas está fazendo em condições diferentes do Fidel. O Fidel não tinha dinheiro, não tinha nada. O Chávez tem dólares, tem o apoio das forças armadas venezuelanas que são todas de esquerda.


 



*Maria Nazareth Ferreira é graduada em História pela Universidade de São Paulo, com especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado em Comunicação.


 


 


Fonte: Jornal O Povo