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Mercosul, alavanca para a integração continental

A opinião é de José Reinaldo Carvalho, secretário de Relações Internacionais do PCdoB. Para ele, o Mercosul ''é útil numa estratégia de luta por um novo modelo econômico voltado para o desenvolvimento'' e, por isso, diz que ''não deveríamos considerá-lo c

Estamos observando neste momento uma espécie de  retomada da iniciativa norte-americana para a América Latina, que a Casa Branca vem chamando de política “de povo para povo”. Como você vê essa nova tentativa de intervenção política no continente e que medidas devem ser tomadas para evitar que os EUA aumentem sua influência na América Latina?


A Casa Branca proclamou 2007 como “ano do engajamento na América Latina”. Trata-se de uma tentativa de retomar o controle da situação, depois de seguidas derrotas eleitorais de candidatos das oligarquias pró-estadunidenses e do fracasso do plano neocolonialista da ALCA. A América Latina está vivendo um período singular em sua história, com a instauração de governos progressistas em muitos países, uma conquista política ainda a consolidar. Em um caso particular, a Venezuela, a idéia do antiimperialismo, da revolução e do socialismo volta à ordem do dia e isto influencia fortemente o rumo dos acontecimentos. Na raiz desse fenômeno está o esgotamento do modelo neoliberal e da capacidade de as classes dominantes locais estruturarem um sistema político que possa conter as lutas populares. Os Estados Unidos  nada têm a oferecer aos povos da América Latina.  Bush já é tratado como “pato manco”, está em fim de mandato e já não tem a credibilidade necessária para agir num cenário tão complexo. O expediente a que recorrem agora é essa tentativa de explorar as diferenças políticas entre os processos venezuelano e brasileiro. O “engajamento” de Bush com a América Latina é uma tentativa de recobrar influência política, mas tende ao fracasso, pois os problemas sociais na região são muito graves para encontrar uma solução fácil na chamada política “de povo para povo”, que distribui migalhas e corrompe governos, lideranças e organizações não governamentais. A sede de justiça e progresso social não será satisfeita com discursos vazios, lisonjas e esmolas. Ao esforço de Bush para aumentar a influência norte-americana na América Latina, as forças progressistas têm de responder com a luta antiimperialista, da qual faz parte o fortalecimento das formas propostas de integração – Alba, Unasul, Mercosul.


 


 


A imprensa vem noticiando a existência de uma “briga” entre Lula e Chavez, por conta dos últimos desentendimentos entre o presidente venezuelano e o congresso brasileiro. Que tipo de riscos o desentendimento entre os dois chefes de Estado poderia trazer para a integração latino-americana? Como esfriar o clima que se instalou? Qual o significado desta ofensiva da direita neoliberal contra a Venezuela, o Mercosul e a integração latino-americana?


Não vejo a situação criada como uma “briga” entre Lula e Chavez nem como um antagonismo entre o Brasil e a Venezuela. É preciso encarar o conflito que se estabeleceu entre o presidente Chavez e a direita brasileira com naturalidade. E ter clareza sobre o lado em que devemos estar. Doravante, contenciosos como este farão parte do cenário político, porquanto a Venezuela emite claros sinais de que avançará no caminho da luta antiimperialista e isto vai gerar reação. Quanto à direita brasileira já a conhecemos bem, é a expressão política e ideológica de uma classe dominante retrógrada cujos interesses se confrontam não apenas com os do movimento antiimperialista geral, mas em primeiro lugar com as aspirações do povo brasileiro. Os fatos demonstram que a direita brasileira, através da mídia e de algumas lideranças políticas no Congresso Nacional, decidiu pôr o governo do presidente Chavez na sua alça de mira. E o fez da pior forma, ultrapassando os limites do respeito à soberania nacional. É a mesma direita que tentou decretar o impedimento do presidente Lula durante a crise política de 2005. O presidente Chavez reagiu à sua maneira e de vítima foi transformado em culpado. Quando as coisas pareciam estar se acomodando, depois de declarações conciliatórias dos dois presidentes, eis que a aprovação do ingresso da Venezuela no Mercosul pelo Senado passou a ser condicionada a um pedido de desculpas. Esta foi a origem do chamado ultimato, que foi também uma reação do presidente venezuelano a uma exigência impertinente. Se há problemas envolvendo interesses comerciais determinando que se tenha mais paciência e mais tempo nas negociações até que amadureçam as condições para a completa incorporação da Venezuela no Mercosul,  creio que a diplomacia, o elevado nível das relações bilaterais e os mecanismos do Mercosul são suficientes para encontrar e encaminhar  soluções. É normal que existam dificuldades objetivas, que residem em interesses concretos de setores empresariais dos dois países e nas assimetrias entre as  economias dos países do Mercosul. Há dificuldades também relativamente às estratégias de médio e longo prazos de ambos os governos e às opções de caminhos distintos de como se inserir na ordem mundial. Isto se reflete em concepções divergentes sobre a integração. Mas as duas partes não podem fugir de uma evidência: o Mercosul é uma alavanca importante para promover a integração continental e é útil numa estratégia de luta por um novo modelo econômico voltado para o desenvolvimento. Não deveríamos considerar o Mercosul com a mesma ótica das classes dominantes, cujo valor consistiria apenas em “cativar” mercados. Um Mercosul restrito aos aspectos meramente mercantis já não corresponde às exigências da luta pelo desenvolvimento com soberania e progresso social.  A integração deve ter abrangência política, econômica, cultural e social, deve ser uma opção verdadeiramente estratégica e não um expediente conjuntural. É sobre esta base que os dois governos deveriam se entender. E eu acredito que se entenderão. A atitude de rixa que alguns senadores adotaram, contrastada com esses objetivos maiores, não terá maior significado, ficará apenas como a expressão do caráter mesquinho de quem a adota.


 


 


A população norte-americana já deixou claro que deseja a retirada das tropas americanas do Iraque. O Congresso do país, de maioria democrata, também tem pressionado Bush. Já começam a aparecer em círculos do Partido Republicano e em setores do governo Bush avaliações de que os EUA estão sendo derrotados no Iraque. No entanto, Bush continua obstinado em sua posição de manter suas tropas de ocupação no país. Como você analisa este cenário?


Nada que os Estados Unidos façam alterará a dura realidade. A ocupação do Iraque, assim como a do Afeganistão pelo imperialismo estadunidense,  e também os ataques israelenses no Líbano e na Palestina, inscrevem-se no quadro da política chamada de “reestruturação do Oriente Médio”, que por sua vez serve o objetivo dos Estados Unidos de controlar essa região estratégica rica em recursos energéticos. Em seu afã de assegurar a hegemonia planetária, os Estados Unidos não se detêm, fazem-no percorrendo prioritariamente o caminho das guerras de agressão, acarretando grandes sofrimentos para os povos e tornando letra morta as noções de soberania nacional, diplomacia, multilateralismo e direito internacional. Com o que não contavam era a encarniçada Resistência dos patriotas iraquianos, como Israel não contava com a Resistência dos patriotas libaneses. Achavam que seriam recebidos no Iraque como libertadores, mas estão sendo escorraçados como agressores e inimigos da paz e da liberdade. Agora a situação chegou ao impasse. Se os quase 160 mil soldados norte-americanos permanecerem no Iraque, só continuará aumentando o número de mortos, o que causa profunda consternação e revolta na população estadunidense,  maior resistência no terreno e o aumento da consciência antiimperialista em todo o mundo. Se baterem em retirada, como ponderáveis setores políticos e da opinião pública dos Estados Unidos exigem, a humilhação será evidente. Está patente que, por mais brutal e poderoso que seja, o imperialismo não é invencível.


 


 


Em relação à Palestina, a crise se agravou nas últimas semanas, com a profunda divisão entre o Fatah e o Hamas e a interferência direta de Israel em favor do líder M.Abbas e atacando as forças do Hamas na Faixa de Gaza Em sua opinião, qual a evolução possível para essa crise?


O problema palestino só encontrará solução justa com a criação do Estado Nacional, com governo próprio, Forças Armadas nacionais, soberania sobre um território íntegro, repatriamento dos refugiados e devolução dos territórios ocupados à força pelos sionistas israelenses. As trágicas divisões entre as forças palestinas, estimuladas pelo imperialismo, têm a ver com perspectivas e estratégias distintas de libertação nacional. Nada têm a ver com luta entre secularistas e fundamentalistas. Todos os planos de “paz” apresentados pelo imperialismo constituíram uma burla dos interesses desse povo. Do mesmo modo, as pregações “democráticas” dos Estados Unidos, que pressionam para que se realizem eleições, mas não aceitam o veredicto das urnas. A questão de fundo é saber se haverá uma paz justa ou  uma contrafação de paz e de estado nacional.  A unidade das forças palestinas contra o inimigo comum sionista e imperialista é necessária e decisiva para o êxito da causa nacional.


 


 


A “crise dos mísseis” na Europa é mais uma etapa das dificuldades crescentes que o imperialismo vem enfrentando. E uma das conseqüências  dessa tentativa dos Estados Unidos de instalar mísseis na República Tcheca e na Polônia foi a volta da Rússia ao cenário político internacional com uma posição de força, de certa forma colocando em cheque a unipolaridade criada desde o final da guerra fria. Que desdobramentos podem surgir disto?


A rigor, salvo no momento da capitulação, sob Gorbatchev, e durante o governo de Boris Yeltsin, a Rússia nunca deixou de exercer algum protagonismo na cena internacional. O ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, um dos principais formuladores da política externa republicana, chegou a dizer que não bastava derrotar o comunismo, era necessário impedir a existência de uma Rússia forte. Ora, apesar das diferenças políticas e ideológicas, tudo o que Vladimir Putin fez foi fortalecer a Rússia e sua posição no cenário mundial. Hoje a Rússia tem uma parceria estratégica com a China, no quadro da Organização de Cooperação de Xangai. Tal como se apresenta o tabuleiro mundial, as contradições geopolíticas, algumas de natureza interimperialista, são inevitáveis. Um dos aparentes paradoxos dos dias que correm é que os Estados Unidos querem impor pela força uma política unilateral num mundo em que objetivamente já existem em gestação outros pólos de poder. Mesmo entre os aliados dos Estados Unidos, há forças emergentes que contestam a hegemonia de Washington. Essas contradições ajudam a minar o poderio do imperialismo. Mas, na luta por um mundo de paz, democracia, cooperação, desenvolvimento e respeito à soberania nacional, não se pode ter a ilusão de que a existência de vários pólos de poder em competição entre si vá “domesticar” o imperialismo e de que o mundo que vem será a expressão  do equilíbrio de poder, de interdependência recíproca, de boa governança, de políticas multilaterais, de vigência do direito internacional ou de coexistência tranqüila  entre o imperialismo e as forças antiimperialistas. Ao contrário, quanto mais os Estados Unidos sentirem ameaçada a sua hegemonia, tanto maior será sua agressividade. Os Estados Unidos têm em conta dois cenários para o exercício da sua hegemonia. Ou o fazem de maneira unilateral, como agora, ou através do que chamam de multilateralismo assertivo, sob sua liderança. O que não cogitam é o compartilhamento da hegemonia, o que por si só gera conflitos.