Kassab é contestado: as sujeiras na “Lei Cidade Limpa”

Confira a reportagem “Detritos da cidade limpa”, publicada na edição desta semana da CartaCapital. De autoria de Rodrigo Martins, o texto sustenta que “faltou debate na lei que regula a publicidade externa em São Paulo”.

Esse strip-tease não parece interessante. Desde que a proibição da publicidade exterior em São Paulo passou a valer, há cerca de seis meses, os outdoors, painéis luminosos e telões eletrônicos começaram a desaparecer. Aos poucos, os moradores da maior cidade da América do Sul descobrem a nova feição da capital paulista, revigorada em alguns pontos turísticos e bairros da população abastada, e completamente suja e deteriorada na maioria do espaço urbano.


 


Não se discute a necessidade de regulamentar os anúncios e evitar a degradação do município. Notável é a forma autoritária e arbitrária com que a medida foi adotada, depois de aprovada a toque de caixa na Câmara dos Vereadores. Na contramão de grandes cidades européias e norte-americanas, que impuseram restrições à publicidade, sem expurgá-la das ruas, a prefeitura de São Paulo optou pela eliminação definitiva dos anúncios em imóveis públicos e privados.


 


Apenas as placas com o nome das lojas sobreviveram à investida, embora com tamanho bastante reduzido. Os empresários de mídia exterior tiveram apenas três meses para cancelar todos os contratos de outdoors e procurar outros mercados, ou abandonar a atividade. “É um absurdo. Barcelona, sempre citada como modelo de cidade que conseguiu vencer a poluição visual, ofereceu um período de adequação de até dez anos”, protesta Rubens Damato, presidente da Federação Nacional de Publicidade Exterior.


 


A propaganda no mobiliário urbano (como bancos de praças, abrigos de ônibus e relógios digitais) ainda é permitida, mas os atuais contratos de concessão vencem até o fim do ano. Depois disso, resta a promessa de uma nova lei para regulamentar a exploração desses espaços.


 


Radicalismo


 


O Projeto da Lei Cidade Limpa, como foi batizado, é de autoria do prefeito Gilberto Kassab (ex-PFL), que entregou pessoalmente a proposta à Câmara dos Vereadores em junho de 2006. Com amplo respaldo dos parlamentares, a aprovação ocorreu em tempo recorde: pouco mais de três meses. A proibição dos outdoors passou a vigorar a partir de 1º de janeiro.


 


Os comerciantes tiveram um prazo pouco maior, puderam adequar as fachadas até 31 de março. Para impor a determinação, estabeleceu-se severa multa de 10 mil reais aos “transgressores”. Até agora, foram registradas 833 infrações, que resultaram na arrecadação de 26,4 milhões de reais.


 


O radicalismo da proposta praticamente extinguiu o mercado de mídia exterior na cidade, setor responsável por 20 mil postos de trabalho e com faturamento superior a 250 milhões de reais por ano, de acordo com o Sindicato das Empresas de Publicidade Exterior (Sepex).


 


Mas o prefeito Kassab assegura que o objetivo da política de “tolerância zero”, como gosta de enfatizar, não é erradicar a propaganda da capital paulista, e sim discipliná-la. “Agora, está tudo proibido. Depois, vamos analisar as exceções e ver onde é possível permitir anúncios. Eventualmente, poderemos ter regiões como a Times Square, em Nova York.”


 


Quando e como isso poderá acontecer, nem o prefeito sabe. “Antes, temos de limpar a cidade.” Apesar da vontade manifestada por Kassab, o secretário municipal das subprefeituras, Andrea Matarazzo, diz desconhecer o plano para flexibilizar a lei. “Não fui comunicado de nada. Vamos continuar a fiscalização e retirar todos os outdoors. Os empresários do setor podem mudar de atividade ou continuar em outros municípios, não aqui.”


 


Com a perda abrupta de receita, boa parte das cerca de 200 empresas de publicidade exterior na cidade dão sinais de que caminham para a falência. “Não adianta simplesmente mudar para outro lugar, 70% do mercado nacional está concentrado na capital paulista”, afirma Gian de Miccolis, presidente da Meta Painéis.


 


Até o fim do ano passado, a companhia tinha 47 funcionários e um faturamento anual de 1 milhão de reais. “De janeiro para cá, perdi todos os contratos, não entrou nenhum centavo. Ao contrário, tive de demitir todo o pessoal e arcar com os custos trabalhistas.”


 


''Na vala comum''


 


A Central dos Outdoors também sofreu impactos. Em 2006, as 12 empresas afiliadas tinham mais de 5 mil painéis espalhados pela cidade. Atualmente, restam pouco mais de 800, protegidos por decisões judiciais. No entanto, no começo de julho, o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou todas as 55 liminares contra a Lei Cidade Limpa. Os fiscais da prefeitura apenas aguardam a publicação da sentença para retirar os outdoors ainda afixados. Estima-se que sobraram mil peças nessas condições.


 


Cláudio Roberto Pereira, diretor-executivo da central, reconhece a poluição visual na cidade, provocada pela concentração exagerada de anúncios. Mas pondera que o caos dos últimos anos é resultado da proliferação de peças irregulares, tanto nas fachadas do comércio como na mídia exterior. “O problema é que colocaram todos os empresários numa vala comum. Pagamos o preço do descaso das autoridades com a fiscalização.”


 


De acordo com a prefeitura, havia cerca de 10 mil painéis de publicidade na capital paulista em 2006. Do montante, ao menos 60% eram anúncios irregulares. A arrecadação da taxa de fiscalização cobrada das empresas de mídia exterior é superior a 17 milhões de reais por ano, mas a verba parece ser insuficiente para a tarefa.


 


“Desde a gestão do ex-prefeito José Serra, intensificamos o combate aos ilegais, mas o esforço não conteve a voracidade do mercado. Retiramos 6 mil outdoors nos últimos dois anos, mas as peças voltavam a aparecer”, justifica Matarazzo.


 


A arquiteta Regina Monteiro, diretora de Meio Ambiente e Paisagem Urbana da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), participou da elaboração do Projeto Cidade Limpa e aponta falhas na legislação anterior. “Se a prefeitura não avaliasse os pedidos em 30 dias, as empresas poderiam instalar outdoors sem autorização. O texto tinha mais de 90 artigos, com brechas jurídicas que permitiam a obtenção indiscriminada de liminares.”


 


A prefeitura paulistana poderia criar regras mais claras, restringir os anúncios a determinadas regiões e limitar o número dos outdoors. Exemplos de experiências bem-sucedidas ao redor do mundo não faltam. Em Lisboa, a legislação proíbe placas próximas de locais de interesse cultural e arquitetônico.


 


Barcelona e Roma também criaram restrições semelhantes, mas permitem campanhas em toldos que recobrem construções, incluindo restaurações de prédios históricos financiadas pelos anunciantes. Em Nova York, além do mobiliário urbano, a mídia exterior é permitida em bairros específicos. Os edifícios da Times Square são obrigados a conceder espaço à publicidade e se transformaram em pontos turísticos.


 


Exemplos brasileiros


 


Também é possível encontrar casos semelhantes no Brasil. Em Florianópolis, a lei estabelece um padrão de tamanho e conteúdo para os anúncios, proíbe a instalação de painéis em áreas de proteção cultural e paisagística e estabelece uma distância mínima entre os outdoors com mais de 15 metros quadrados.


 


Curitiba proibiu o uso de peças em áreas públicas, como calçadas e praças, e intensificou a fiscalização sobre a mídia irregular, com redução de 70% da publicidade nos locais não permitidos.


 


A maioria dos exemplos consta em um relatório da consultoria Tendências, encomendado pelo Sepex em meados de 2006 e encaminhado aos vereadores paulistanos. “Pena que a Lei Cidade Limpa recebeu aprovação tão rapidamente, sem um debate mais amplo”, alfineta Rubens Damato.


 


O vereador tucano Gilson Barreto, líder da bancada governista na Câmara à época da votação, rebate a insinuação: “Realizamos três audiências públicas, com participação ativa dos parlamentares. O projeto foi aceito quase por unanimidade (45 votos a 1)”.


 


A exploração do mobiliário urbano permitirá a volta dos anúncios, agora sob o monopólio da prefeitura. Mas ainda não há prazos para realizar a nova licitação desses espaços, uma vez que o governo municipal ainda não estruturou um grupo de trabalho para desenhar o edital.


 


Algumas empresas de mídia exterior da cidade temem não poder disputar o contrato no futuro. Além de perder a receita dos outdoors, elas acreditam ser necessário ter um elevado capital para vencer uma licitação desse porte. Lembram o exemplo da espanhola Cemusa, que conquistou a concessão do mobiliário urbano de Nova York por 20 anos, em troca de US$ 1 bilhão. “Nenhuma companhia nacional pode investir tanto dinheiro”, reclama Miccolis, da Meta Painéis.


 


Nem mesmo empresas estrangeiras, como a americana Clear Channel, com presença em 64 países, festejam os resultados da Lei Cidade Limpa. “As multinacionais terão mais condições de sobreviver, mas devem avaliar com cuidado os riscos envolvidos na operação. O que garante que os contratos do mobiliário urbano serão respeitados em São Paulo se, em menos de dez anos, a legislação de mídia exterior foi modificada três vezes?”, indaga Emílio Medina, presidente da subsidiária brasileira.


 


A arquitetura medíocre


 


A última alteração antes do projeto proposto por Kassab aconteceu há quatro anos, durante o governo de Marta Suplicy. À época, a prefeitura desenvolvia um projeto para restringir a publicidade exterior, quando os empresários do setor conseguiram aprovar outra proposta de lei na Câmara dos Vereadores.


 


“Tivemos de negociar a partir de um texto com regras muito permissivas. Houve um retrocesso, que resultou nesse caos”, diz o urbanista Jorge Wilheim, secretário de Planejamento Urbano na gestão petista.


 


Wilheim destaca que, apesar do radicalismo, a atual lei é positiva. “Talvez ela pudesse permitir uma quantidade mínima de outdoors. Mas isso pode ser feito no futuro, a conta-gotas.” O urbanista ressalta que a iniciativa permitiu desnudar o descaso com a conservação dos edifícios.


 


“Sem as placas, nos deparamos com a arquitetura medíocre, as paredes descascadas, as pichações. Inevitável pensar que, em alguns casos, 16 metros de Gisele Bündchen não era tão mal assim.”


 


O prefeito Kassab reconhece que a ausência de publicidade ajudou a ver com mais clareza a degradação do município e enumera as iniciativas para modificar o cenário: “Encaminhamos um projeto de lei para oferecer abatimentos no IPTU aos comerciantes que reformarem as fachadas. Também firmamos um convênio com a Associação Comercial para recuperar os imóveis de 31 ruas-modelo”. Quanto ao desemprego provocado pela lei, garante que outros postos de trabalho foram criados em empresas envolvidas na adequação das placas comerciais.


 


De acordo com Matarazzo, cerca de 85% das lojas paulistanas estão com a fachada regularizada. “É um resultado promissor para uma lei que começou a ser aplicada há tão pouco tempo. Isso revela a aprovação e o empenho da população em contribuir com o combate à poluição visual”, afirma o secretário.


 


Pelo diálogo


 


O presidente da Associação Brasileira dos Anunciantes, Rafael Sampaio, contesta a avaliação dos gestores públicos. Para o executivo, as empresas preferem evitar atritos com o governo municipal, por isso passaram a anunciar em outras mídias.


 


Os pequenos comerciantes seriam a exceção, uma vez que não têm condições de aparecer em jornais, revistas ou na televisão, mídias mais caras que a cartolina exposta na porta da loja.


 


“Os empresários erraram ao veicular publicidade exagerada, mas a prefeitura também foi omissa na fiscalização. Espero que, em pouco tempo, seja restabelecido um diálogo sensato para permitir a volta da mídia exterior.”