Breves conversas com Paulo Dantas

Por André Cintra
Das muitas lacunas que devo me lamentar como jornalista, agora me ocorre não ter entrevistado Paulo Dantas. Ele tinha mais de mais de 80 anos quando o vi pela primeira vez, na tarde chuvosa de 25 de março de 2006, em encontro da Academ

Paulo já aparentava boa parte de suas debilidades. Precisava de ajuda para andar e, por isso, não pôde ir imediatamente à mesa quando lhe chamaram. A sessão parou por pouco mais de um minuto. Bengala de um lado, enfermeira de outro, o escritor se deslocou lentamente, sentando-se enfim ao lado dos outros acadêmicos e convidados.


 


A espera mais que valeu. Os depoimentos de Paulo nunca eram menos que impressionantes, ainda mais naquela academia – e naquela cidade – onde ele se sentia tão à vontade. Mais que membro, Paulo podia orgulhar-se de ocupar a cadeira que, um dia, foi de Manuel Bandeira.


 


Eu conhecia minimamente a relação entre Bandeira e Campos do Jordão, mas não sabia de quem se tratava naquela tarde. Não sabia que Paulo Dantas havia sido amigo íntimo de Bandeira, filho de criação de Monteiro Lobato, confidente de Guimarães Rosa. Jamais havia lido nada a seu respeito.


 


Tuberculose


 


Ao voltar de Campos, ato contínuo, fui a uma lan house perto de casa. Busquei informações sobre Paulo Dantas e comecei a entender o pequeno gigante. “Ele é um escritor singularíssimo, porque tem uma vida especialíssima, sobre manejar o verbo como poucos escritores vivos”, registrou Jayme Vita Roso, talvez a última pessoa a quem Paulo concedeu uma longa entrevista.


 


Paulo Dantas, continuou Roso, era singular, “mais ainda, porque já sobrepujou, com serenidade, sérias, seriíssimas, moléstias com galhardia. E, numa delas, teve no seu amigo, Monteiro Lobato, não só o conforto espiritual de que carecia, para vencê-la, mais ainda, o apoio financeiro, necessaríssimo para curar-se”. A doença, neste último caso, era tuberculose, a “peste branca”.


 


Na tarde em Campos, vim a descobrir mais detalhes dessa história. Paulo, para tratar uma dilacerante tuberculose, hospedou-se nas serras de Campos de Jordão e descobriu ali um mundo à parte, triste, traumático.


 


Como escritor, lembrou e adaptou diversas dessas dificuldades, inclusive as sexuais, em dois livros – Cidade Enferma e As Águas não Dormem. Seus relatos, secos, expunham o abandono e a falta de perspectiva. Definia-se como “gato castrado em porão escuro”.


 


Fiquei surpreso ao descobrir que Paulo Dantas sofria de depressão. Quando me cumprimentava – nunca pelo nome, sempre como “jornalista” -, ele era simpático e atencioso. Muitas vezes eu comprava um livro e pensava no Paulo: “Será que ele conhece?”. Eu gostava e tinha o hábito de ir ao encontro dele para contar as novidades.


 


Risos


 


Belo dia, fomos ao aniversário da Academia Estudantil de Letras (AEL) Padre Antônio Vieira, na zona leste de São Paulo. Assim que vi Paulo, contei de minha visita à casa de Manuel Bandeira, no Recife, onde eu havia passado alguns dias. E contei do lançamento de um CD em que Bandeira recitava seus próprios poemas – uma dessas gravações que ficam perdidas no tempo e reaparecem.


 


Foi então que me veio a idéia: “A gente podia marcar uma entrevista, não?”. Paulo pareceu reticente, mas foi só impressão minha. Ele estava rindo logo depois – e pareceu mais alegre ao saber que eu estava acompanhado. “Quê que é?”, perguntou. “Namorada ou noiva?”


 


Por coincidência, eu o vi pela última vez justamente em Campos do Jordão – na posse de Maria Lúcia López. Cobrei a entrevista, disse que estava ansioso para ouvi-lo, e ele me passou o telefone de sua casa. “Você anota, jornalista?”. Anotei o número e também anotei um lamento seu: os jovens acadêmicos da AEL não estavam presentes.


 


No final de sua palestra, microfone a mão, Paulo havia declarado que sentia falta “daquelas crianças”. Crianças de ensino fundamental, tão jovens ainda – e tão precoces -, que já cultivaram a companhia de Paulo e se aventuravam no estudo da literatura, especialmente da poesia. Paulo Dantas era um guru para todos eles e também para mim.


 


Amante da literatura, pessoa amiga que recebeu 18 cartas de Lobato e outras 25 de Guimarães Rosa, Paulo ainda escreveu a biografia de três escritores – Aluísio de Azevedo, Coelho Neto e Tobias Barreto. Tinha uma memória invejável para datas e lugares, além de histórias e curiosidades aos montes sobre a vida literária do Brasil.


 


Brilhante


 


Em 26 de abril, quase um ano após eu conhecê-lo, Paulo participou da fundação de outra academia estudantil de letras, mais uma AEL, também na zona leste. O nome: Monteiro Lobato. Fui convidado, mas, de última hora, não pude comparecer. Depois soube, por duas pessoas, que Paulo brilhou na palestra – estava inspiradíssimo.


 


Pelo tema e pelo palestrante, confesso que eu não esperava menos. Como também não esperava que fosse uma de suas últimas aparições públicas. Paulo Dantas morreu há na manhã de 11 de junho. Suas cinzas irão para Campos do Jordão em 4 de agosto – mesmo dia em que a poetisa  Maria Lúcia López ministra a palestra “Paulo Dantas de Corpo Presente”.


 


A notícia da morte de Paulo me chegou por e-mail. Na hora, após uns palavrões de lamento, comecei a pensar nos jovens acadêmicos que não o teriam mais ao seu lado. A entrevista não-marcada nem passou pela cabeça.


 


Mas lembrei, uma vez mais, o depoimento de Paulo Dantas a Jayme Vita Roso, de 20 de julho de 2005. A certa altura, o escritor diz: “Não persigo a glória. Espero que ela me conquiste. Quando eu morrer, enterre meu coração à sombra de um pinheiro em Campos de Jordão”.