O impacto da Revolução Cubana sobre a esquerda brasileira

Em entrevista concedida ao historiador Augusto Buonicore, o pesquisador Jean Rodrigues afirma que as convergências entre a esquerda brasileira e a Revolução Cubana eram inevitáveis no início dos anos 1960, pois os setores mais progressistas no Brasil já l

Jean é um pesquisador da história do PCdoB e da influência da revolução cubana na esquerda brasileira. Esses, respectivamente, foram os temas de sua dissertação de mestrado e da tese de doutorado, defendidas na Unicamp. Jean também fez doutoramento na Universidade de Borgonha (França) sobre o Partido Comunista Francês, e atualmente faz pós-doutorado na USP.



Leia abaixo a entrevista:



A Revolução Cubana foi um dos fatos que mais influenciaram na definição dos rumos da esquerda brasileira no início da década de 1960. Fale um pouco sobre esse impacto.
Em primeiro lugar, é necessário lembrar que nos anos 1960 havia um debate intenso no Brasil, e em toda a América Latina, a respeito da necessidade de uma profunda transformação nas condições socio-políticas do continente. Nessa discussão, havia diversas propostas para a efetivação das mudanças necessárias, indo desde aquelas que apontavam para um alinhamento estreito com os EUA, passando pelos projetos das correntes nacionais democratas, até os programas dos grupos de influência socialista. A Revolução Cubana incide diretamente neste debate e logo atrai a atenção de todas as correntes políticas. Contra ou a favor, todos se posicionaram a respeito do caminho trilhado pelo movimento liderado por Fidel Castro.



Vale lembrar que, para muitos, as primeiras ações dos revolucionários cubanos (reformas agrária e urbana, alfabetização em massa, controle da inflação e dos preços dos gêneros de primeira necessidade, etc.) concretizavam bandeiras que estavam sendo levantadas por nossas esquerdas. Assim, a simpatia e a convergência com os revolucionários cubanos eram inevitáveis.



No plano ideológico, também a revolução cubana influenciou o debate da esquerda brasileira de orientação comunista, que no princípio dos anos 1960 vivia um momento de diversificação, marcado pelo surgimento de organizações como o PCdoB, a ORM-POLOP, a AP, entre outras, que questionavam teórica e praticamente a hegemonia do PCB. Nessa situação, o exemplo revolucionário cubano aparecia no centro do debate ideológico.  



O primeiro grupo a fazer curso político-militar em Cuba foi organizado pelas Ligas Camponesas em 1961, ainda no governo Jânio Quadros. O que levou esse grupo a optar por um curso de guerrilha em pleno regime democrático e sob um governo que tinha relações amistosas com Cuba?
De fato, diferente do que se tem sido apontado pela historiografia, a opção de uma parte da esquerda pelo caminho armado antecede o golpe de 1964. As Ligas Camponesas, por exemplo, que surgiram no interior de Pernambuco, em 1955, foram fortemente influenciadas pela revolução cubana.



Inicialmente, as Ligas defendiam uma proposta de reforma agrária feita através dos preceitos da lei, chegando, no máximo, a propor mudanças na Constituição para que a reforma agrária se tornasse viável. Em seguida, sob forte impacto da Revolução Cubana, o grupo radicalizou a sua proposta e passou a defender a palavra-de-ordem “Reforma Agrária: na lei, ou na marra!”. Ao mesmo tempo, alguns militantes fizeram treinamento guerrilheiro em Cuba e iniciaram os preparativos para a organização de campos de treinamento guerrilheiro no Brasil. Os planos foram descobertos e desbaratados pelo Exército.



A justificativa para tal ação se assentava na análise de que o Brasil, desde os anos 1950, havia presenciado várias tentativas de golpes militares, como o que foi ensaiado em 1961 para impedir a posse de Jango. Nessa situação, era necessário que houvesse um dispositivo militar para resistir a uma possível ação golpista da direita.



Ao contrário do que geralmente se pensa, a primeira grande inspiração do PCdoB pós-1962 foi a revolução cubana e não a chinesa. O PCdoB, por exemplo, foi a primeira organização de esquerda brasileira a editar o livro Guerra de Guerrilhas, de Guevara. O que você sabe dessa relação entre os cubanos e o PCdoB naqueles anos?
Em minhas pesquisas eu tenho chamado a atenção para o erro de querer pensar a história do PCdoB a partir de sua relação com a China. A meu ver, o PCdoB, por sua própria tradição internacionalista, estava inserido dentro do debate do mundo comunista. A sua relação com a China era uma, entre outras, que influenciaram a sua trajetória política. Assim, por exemplo, o partido foi um dos primeiros a se colocar claramente ao lado da proposta revolucionária cubana. Se pegarmos o jornal A classe operária entre 1962 e 1964, em praticamente todas as edições há referências à Revolução Cubana.



Do mesmo modo, a partir de 1966, com a cisão sino-soviética de um lado, o golpe militar no Brasil e a tentativa dos cubanos de irradiarem para a América Latina uma estratégia revolucionária baseada no foquismo, de outro, o PCdoB foi um dos maiores críticos dessa política em território brasileiro.          



Mas existe também uma bibliografia que absolutiza a influência externa sobre a esquerda brasileira. Como se as opções políticas e ideológicas e as cisões no interior da esquerda fossem meros reflexos, sem mediação, dos conflitos internacionais do movimento comunista. O que isso tem de verdade?
Realmente durante muito tempo a historiografia brasileira tentou explicar a trajetória das organizações comunistas brasileiras a partir de influências externas. O maior exemplo é a equivocada análise que tenta explicar o surgimento do PCdoB como reflexo do cisma sino-soviético no Brasil, sem considerar tanto a situação política nacional, quanto o debate no interior do próprio Partido Comunista no Brasil.



Por outro lado, penso que não se pode cair em armadilha oposta, ou seja, a de negar que, pela própria tradição do internacionalismo proletário, os eventos internacionais ligados ao mundo comunista influenciaram o comunismo brasileiro. Seria possível, por exemplo, examinar a história do comunismo brasileiro nos anos 1950 sem fazer referência ao XX Congresso do PCUS? Tenho certeza que não.



Nesse caminho, é necessário buscar um equilíbrio entre as influências internacionais e os condicionamentos nacionais na trajetória das organizações brasileiras. Por exemplo, é evidente que a opção feita pelo caminho da luta armada contra a ditadura militar por muitas organizações dos anos 1960 foi fruto do debate da própria esquerda brasileira diante da situação aberta com o golpe de 1964. Ao mesmo tempo, isso não invalida a constatação que a influência do exemplo cubano se fez sentir fortemente entre os setores que pegaram em armas contra os militares.        



Neste sentido podemos afirmar que o golpe militar, fator interno, teve um impacto até maior que a Revolução Cubana nas definições da esquerda brasileira. Vários dirigentes comunistas e socialistas a partir da derrota sofrida passaram a criticar o reformismo e aderiram à luta armada, via experiência cubana. Como se deu esse processo no interior do Partido Comunista Brasileiro, o PCB?
Certamente foram as condições internas que levaram parte importante da esquerda brasileira a aderir à luta armada. Exemplo maior disso é que, entre 1959 e 1964, Cuba aparece como modelo afirmativo do caminho revolucionário dentro do debate político e ideológico da esquerda. Poucos propunham, a partir da experiência cubana, a luta guerrilheira como caminho imediato de luta política no Brasil no conturbado período de governo de João Goulart, ainda que alguns, como as Ligas Camponesas, o tenham feito. Ora, após o golpe, com a necessidade de se pensar em novos caminhos de atuação, e com o paulatino fechamento do regime militar, o caminho armado aparece com possibilidade. Nesse momento, a discussão sobre o exemplo cubano apareceu como natural para muitos.



No caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a opção de parte de sua militância pelo caminho armado se deu de forma dramática. O partido era o mais importante entre as esquerdas no início dos anos 1960, estando na direção de importantes movimentos sociais, urbanos e rurais. Tendo, até, certa influência junto ao governo. Com o golpe de 1964, a sua militância foi acometida de forte decepção política e ideológica. De uma hora para outra, deixou-se de lado uma política voltada para a atuação em amplas frentes políticas, trilhada por um caminho pacífico, para uma proposta de luta armada clandestina contra a ditadura militar. Nesse movimento, o PCB perdeu parte considerável de sua militância e dirigentes históricos como Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Marighella, entre outros.


 


Qual o papel da Conferência da Organização Latino Americana de Solidariedade (OLAS), ocorrida em Cuba em 1967, e de Carlos Marighella na opção de setores da esquerda brasileira pela luta armada e pelo foquismo?
O Marighella, como dirigente histórico do PCB, tinha uma influência sobre a militância partidária, sobretudo os mais jovens. Vale lembrar que ele foi um dos primeiros a criticar internamente a orientação pacifista do PCB pela derrota de 1964. Ao mesmo tempo, atestaria de forma simbólica a sua disposição de lutar contra a ditadura no episódio em que resistiu à prisão em um cinema do Rio de Janeiro, ocasião na qual foi preso e torturado, o que relataria no livro Por que resisti à prisão. O fato de ter sido expulso do PCB enquanto participava da reunião da Olas em Cuba determinou muito do vínculo que a futura organização por ele criada, a Ação Libertadora Nacional (ALN), estabeleceria com os cubanos e com o foquismo. Em sua esteira, a maioria das organizações surgidas nos anos 1960, a partir de, ou em oposição ao legado do PCB, foram influenciadas pelo foquismo.   



No mesmo período desenvolveu-se um outra proposta de ação revolucionária, que se contrapunha ao foquismo, e que era a alternativa chinesa da guerra popular prolongada, defendida então pelo PCdoB. O que diferenciava estes dois modelos revolucionários?
De fato, nos anos 1960, grande parte da esquerda que pegou em armas contra a ditadura militar era influenciada pelo foquismo. Da maneira com se disseminou no Brasil, esse modelo pressupunha a possibilidade de se desencadear um processo revolucionário, em certas condições, a partir da ação de um pequeno núcleo de combatentes. Já o PCdoB defendia a idéia da guerra popular prolongada, que pressupunha um trabalho político que aglutinasse as massas camponesas, em aliança com os operários, para o desencadeamento da luta contra a ditadura. Foi esse o modelo que o PCdoB procurou implantar na região do Araguaia.   



No filme O que é isso, companheiro? do diretor Bruno Barreto, e em outras publicações, os jovens que participaram da luta armada são apresentados como ingênuos ou lunáticos, pessoas sem projeto político definido. Pelo que você estudou isso corresponde a realidade?
De fato o filme do diretor Bruno Barreto apresenta uma visão bastante estereotipada da luta empreendida pelas organizações que pegaram em armas contra a ditadura militar. Os militantes são apresentados como bem intencionados, mas ingênuos em sua impossível luta contra o regime militar. Já os torturadores, aparecem como bons cidadãos, que sofrem fortes dores de consciência por “terem” de obedecer “ordens”, temas que foram tratados no livro Versões e ficções: o seqüestro da história.



Entre outras coisas, o maior dano dessa visão é a de esvaziar o caráter político da luta daquelas organizações que pegaram em armas contra a ditadura. Não se trata de defender ou concordar com as proposta e os caminhos seguidos pela esquerda revolucionária, mas sim da necessidade ética, que faltou no filme, de não desqualificar as idéias das quais você discorda e sim debatê-las criticamente.