Massacre de fiéis do Caldeirão faz 70 anos

O Sítio Caldeirão, do beato José Lourenço, foi destruído em 1936, mas o massacre aconteceu só no ano seguinte

Crato. 10 de maio de 1937. Um barulho quebrou o silêncio da Chapada do Araripe, assustando os camponeses. Com medo, eles tentavam se esconder entre as árvores, enquanto aviões da Força Aérea Brasileira cruzavam os céus do Cariri, no sul do Ceará. Homens, mulheres e crianças se embrenhavam de mata adentro a procura de uma proteção. O desespero foi ainda maior quando os aviões começaram a metralhar. Muitos ali devem ter sussurrado o derradeiro Pai-Nosso e gritado: “Valei-me meu Padim Ciço”… Outros nem tiveram tempo de fazer a última oração. Embaixo, em terra firme, a Polícia Militar do Ceará encenava a mais vergonhosa peça teatral. Destruía as últimas famílias sobreviventes do Sítio Caldeirão, uma comunidade religiosa, liderada pelo beato José Lourenço.


 


Do outro lado da serra, um jovem de 14 anos, acompanhado dos pais, assistia em silêncio, o desmonte de seus sonhos, utopias e ilusões construídas ao lado do beato, com muita oração e trabalho. É o agricultor Antônio Inácio da Silva, hoje, com 85 anos, um dos remanescentes da primeira investida dos policiais, em 1936, quando cerca de dois mil sertanejos foram expulsos do Sítio Caldeirão. Naquela oportunidade não morreu ninguém. “A Polícia acabou com tudo, mas, felizmente, nós estamos aqui para contar a história”, lembra Inácio, esclarecendo que a matança de gente aconteceu no ano seguinte em cima da serra, na localidade denominada de “Mata dos Cavalos”, ou Serra do Cruzeiro, e não no Caldeirão, como alguns escritores afirmam.


 


Ali sim, a Polícia deixou um rastro de sangue, incêndios e destruição de casas, espancamento de crianças, mulheres e velhos, saques; e ainda, luta corporal de populares usando facões, ferrões e cacetes contra soldados da Polícia bem protegidos; mulheres enfrentando policiais armados de fuzis, homens furando cerco de rajada de metralhadoras, execução de prisioneiros, fuzilamento. Foram mais de 300 corpos de trabalhadores rurais estendidos, dados extra-oficiais, numa das maiores resistências das populações camponesas nordestinas contra os proprietários rurais latifundiários. Inácio diz que, o beato anteviu o massacre. Ele advertiu que, “quando os aeroplanos aparecessem, fazendo fumaça, todos se deitassem no chão, protegendo a cabeça”.


 


No início de 1937, as autoridades do Ceará receberam denúncias sobre o pessoal de José Lourenço, que após a dissolução da comunidade vivia clandestinamente nas matas da Chapada do Araripe. Corriam boatos de que ex-integrantes do Caldeirão, chefiados pelo mensageiro Severino Tavares, atacariam o Crato.


 


Ciente disso, o capitão Bezerra e 11 soldados da Polícia de Juazeiro foram até lá para checar as informações e entraram em conflito com um grupo de camponeses. Nesse embate, morreram o capitão e três praças. Do outro lado, foram cinco perdas, entre elas, Severino Tavares. Após a divulgação daquele conflito, fortes contingentes militares partiram de Fortaleza à caça dos remanescentes do Caldeirão, determinados a vingar a morte do capitão Bezerra.


 


Retorno


 


Em 1938, José Lourenço retornou ao Sítio Caldeirão e ali permaneceu por dois anos, até ser novamente expulso pelo procurador dos padres salesianos, proprietários da fazenda. Seguiu então para Exu, no lado pernambucano da Chapada, onde montou outra comunidade, no Sítio União, comprado com os 7 contos de réis recebidos como indenização por uma parte dos bens do Sítio Caldeirão.


 


O advogado do beato tentou mover uma ação contra o Estado para recuperar a totalidade das perdas do arraial do Caldeirão, todavia o pedido não foi atendido.


 


O beato José Lourenço morreu em 12 de fevereiro de 1946 no Sítio União, como vítima de peste bubônica.


 


Decorridos 70 anos da chacina, Antônio Inácio revê o passado com um sentimento de saudade e tristeza. Sentado no terreiro de sua casa, no Sítio Ramada, município de Santana do Cariri, a cerca de 20 quilômetros do Caldeirão, Inácio recorda que todos viviam como irmãos, rezando e trabalhando, sob o comando de Zé Lourenço que era tratado como “Padim”. “Aquilo era um paraíso em cima da terra”, recorda, ao mesmo tempo em que carrega dentro da alma o que ele chama de “injustiça praticada pelos homens do poder”.


 


A veneração ao beato é manifestada na foto de Zé Lourenço, colocada na parede da sala de orações da casa, ao lado do Padre Cícero e do Coração de Jesus. Durante mais de 50 anos , Antônio Inácio viveu no anonimato, intocado no meio da Serra do Araripe que constantemente era vasculhada por policiais a procura dos renascentes do Caldeirão.


 


Hoje, a sua casa virou ponto turístico. De vez em quando, aparece um escritor querendo saber a história do Caldeirão. O bispo do Crato, dom Fernando Panico, já celebrou uma missa em sua casa e prometeu que, ainda este ano, participará de outra cerimônia religiosa.


 


Baixa Dantas


 


José Lourenço, nascido nos sertões da Paraíba, trabalhava com sua família em latifúndios. Deixou tudo para trás e foi para Juazeiro, onde conheceu Padre Cícero e ganhou sua simpatia e confiança. Em Juazeiro conseguiu arrendar um lote de terra no Sítio Baixa Dantas, no município do Crato. Com bastante esforço de José Lourenço e os demais romeiros, em pouco tempo a terra prosperou, e eles produziram bastante cereais e frutas. Diferente das fazendas vizinhas, lá eles dividiam tudo igualmente. Todos tinham acesso à produção.


 


José Lourenço torna-se líder daquela gente, e se dedicava à religião, à caridade, e servia ao próximo. Mesmo analfabeto, era ele quem organizava tudo, dividia as tarefas e ensinava agricultura e medicina popular. Para o Sítio Baixa Dantas eram enviados, por Padre Cícero, os assassinos, os ladrões e os miseráveis, pessoas que precisavam de ajuda para trabalhar e obter sua fé.


 


Na década de 1920, Padre Cícero entregou aos cuidados de José Lourenço um boi, e os inimigos de Padre Cícero, se aproveitaram disso espalhando boatos de que as pessoas estariam adorando o boi como a um Deus. O boi foi morto e José Lourenço foi preso durante 18 dias, sendo solto pelo próprio Padre Cícero.


 


Sociedade igualitária


 


Em 1926, o Sítio Baixa Dantas foi vendido e o novo proprietário exigiu que todos da comunidade saíssem de suas terras. Com isso, Padre Cícero resolveu alojar o beato e os romeiros em uma grande fazenda denominada Caldeirão dos Jesuítas, situada no Crato, onde começaram todo trabalho novamente, criando uma sociedade igualitária e tendo como base de tudo a religião. Tudo produzido no Caldeirão era dividido igualmente, o excedente era vendido e, com o lucro, investiam em remédios e querosene.


 


 


No Caldeirão cada família tinha sua casa e órfãos eram afilhados do beato. Na fazenda também havia um cemitério e uma igreja, tudo construído por eles mesmos, e a comunidade chegou a ter mais de mil habitantes. Com a grande seca de 1932, esse numero aumentou, pois lá chegaram muitos refugiados. Após a morte de Padre Cícero, muitos nordestinos passaram a considerar o beato José Lourenço como sucessor do sacerdote.


 


Nova comunidade


 


Devido a muitos grupos de pessoas começarem a ir para o Caldeirão e deixarem seus trabalhos árduos, pois viam aquela sociedade como um paraíso, as autoridades ficaram temerosas e uniram-se para destruir o aglomerado. A fazenda foi invadida, destruída e os sertanejos expulsos.


 


Homens de confiança de José Lourenço foram presos e conduzidos a Fortaleza. Retornaram ao Crato após 14 dias e encontraram pessoas da comunidade vivendo na Serra da Conceição, na Chapada do Araripe. Com o decorrer dos dias, surgiu na mata uma nova comunidade, a qual, um ano depois, foi vítima do massacre. Os sobreviventes se esconderam no meio da floresta, onde passaram a viver como índios. Aos poucos, voltaram ao convívio da sociedade. A maioria, entretanto, morreu no isolamento.


 


Atualmente, a única família residente no sítio é a do agricultor Raimundo Batista. Mesmo não sendo remanescente, sabe que ali havia fartura, ao contrário de hoje.


 


Fonte: Diário do Nordeste