Direitos humanos: os crimes argentinos nas Malvinas

Duas décadas e meia depois da guerra das Malvinas, funcionários e ex-soldados da Argentina apresentaram pela primeira vez à justiça uma denúncia coletiva contra militares por crimes de assassinatos e torturas contra sua própria tropa em combate.
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“Temos 23 testemunhos sobre um soldados fuzilado por um cabo, de outros quatro ex-combatentes mortos por inanição e de, pelo menos, 15 casos de conscritos (recrutas em fase de instrução de seu serviço obrigatório) que foram estaqueados”, resumiu à IPS Pablo Vassel, subsecretário de Direitos Humanos da província de Corrientes.



O assunto ficou praticamente fora dos tribunais por 25 anos e não apenas pelo temor dos veteranos em descumprir as ordens de manter um suposto segredo militar. É que aconteceram assassinatos que ficaram impunes porque os casos foram ocultados pelos superiores e informados aos familiares como “mortos em combate”, explicou Vassel. A denúncia, que apresenta testemunhos de ex-soldados de Corrientes, foi apresentada à justiça federal da Terra do Fogo, a província mais austral da Argentina que inclui em sua jurisdição as ilhas Malvinas, 600 quilômetros a leste dessa costa do Atlântico e em poder da Grã-Bretanha.



Os britânicos ocuparam as Malvinas em 1833, e desde então mantêm um conflito com a Argentina por sua soberania. Em 1982, a ditadura militar argentina (1976-1983) invadiu o arquipélago em uma tentativa de recuperá-las à força, mas a campanha fracassou e nos 74 dias de guerra morreram 635 argentinos e 255 britânicos. Do total de vítimas argentinas, 323 faleceram no afundamento do cruzador General Belgrano, navio de guerra emblemático na época. Mas, além dos que tombaram em combate, as associações de veteranos registram cerca de 350 suicídios posteriores ao conflito armado. O último sobrevivente que se matou foi Miguel Boyro, que se enforcou no dia 10 deste mês.



Inúmeros casos de maus-tratos
Desde o fim da guerra são conhecidos testemunhos isolados de práticas de maus-tratos por parte de oficiais argentinos contra seus subordinados, mas, até agora nenhuma autoridade havia assumido essas denúncias para iniciar um processo. “O Estado sempre se fez de distraído”, admitiu Vassel. Somente foram divulgados livros e filmes com narrações a respeito. Agora, as denúncias individuais apresentadas em outras cidades podem derivar para o mesmo julgamento. Duas delas estão nos tribunais da cidade de Mar del Plata, onde o veterano Rubén Gleriano denunciou, no ano passado, que foi estaqueado nas Malvinas por roubar alimentos e quase morre de hipotermia.



Gleriano contou que estava há dois dias e meio sem comer quando decidiu caminhar dois quilômetros para evitar uma guarda de seus superiores e alcançar um depósito de alimentos. Ao voltar, foi estaqueado. Este castigo consistia em atar o “prisioneiro” com estacas no chão, de costas, algumas vezes nu, outras coberto com uma manta, e deixá-lo ali durante oito horas ou mais à mercê das baixas temperaturas que imperam nas ilhas, dos fortes ventos, da neve e do fogo inimigo.



Uma denúncia semelhante foi feita na mesma cidade por Walter Salas, que foi chutado e estaqueado por seus comandantes. Outros casos de maus-tratos foram revelados por ex-soldados de La Plata, a capital da província de Buenos Aires. Os veteranos dessa cidade se preparam para acrescentar elementos ao processo aberto por seus colegas de Corrientes, que foram os que chegaram mais longe até agora na sistematização das denúncias.



Isso ocorre porque em Corrientes é difícil ignorar algo relacionado com a guerra. “Para esta província é um assunto sensível, porque é a que mais soldados enviou para as Malvinas em proporção ao número de habitantes, a primeira a declarar feriado o dia 2 de abril – data da invasão – e a primeira a conceder pensões aos veteranos”, destacou Vassel. Por essa razão, há dois anos este funcionário, junto com o Centro de Ex-soldados Combatentes de Corrientes, iniciou uma investigação. Do total de 800 efetivos desse distrito que participaram do conflito, 230 ainda vivem na província. “O restante morreu ou se mudou”, afirmou o subsecretário.



Testemunhos
Entre os que ainda vivem em Corrientes, o governo colheu uma centena de testemunhos que foram gravados em dez horas de vídeo. Além disso, foi preparado um informe de 200 paginas sobre denúncias de diversos tipos de torturas e até assassinatos, com a correspondente identificação das vítimas e dos responsáveis. Ali está o relato de Juan de la Cruz Martins, que foi enviado às Malvinas pesando 62 quilos e voltou com 29. Martins denunciou um tenente de sobrenome Baroni por maus-tratos e recordou a morte de um companheiro por inanição.



Outro que deu seu testemunho foi Oscar Núñez, que lembra do soco que recebeu nas costas dado por um oficial de sobrenome Malacalza. Núñez contou que o soco e ser estacado por oito horas foi o castigo que mereceu por roubar uma ovelha para comer após ver morrer de fome o conscrito Secundino Riquelme. Também há um testemunho de Germán Navarro em que descreve ter presenciado a rajada de metralhadora do cabo de sobrenome Cabrera que matou um soldado da mesma tropa, depois de ter discutido com ele.



“É um assunto complexo porque, nas guerras, o direito internacional humanitário protege contra os abusos do inimigo, mas não há nada previsto para os casos de maus-tratos sistemáticos contra a própria tropa”, disse o funcionário. Os documentos foram apresentados ao Ministério da Defesa às vésperas do dia 2 deste mês, que marcou os 25 anos do início da guerra, junto com o pedido para que o governo do presidente Nestor Kirchner forme uma comissão que recolha as denúncias em todo o país e prepare um único processo contra militares por violações dos direitos humanos nas ilhas.



Vítimas coletivas
Mas, enquanto aguardam uma resposta, os denunciantes recorreram à justiça. “Somos as últimas vítimas coletivas da ditadura”, afirmou à IPS Orlando Pascua, do Cntro de Ex-combatentes de Corrientes, que também viajou à Terra do Fogo para a denúncia. O ex-soldado revelou ter visto um oficial da Marinha de guerra ordenar o estaqueamento de um soldado no continente por um suposto ato de indisciplina. “Também houve o estaqueamento de um soldado no continente, bem antes de seguir para as Malvinas, por chegar tarde para a formação, o que demonstra que se tratava de uma instrução operacional muito clara”, destacou Vassel. “Por isso dizemos que a ditadura tratou os soldados nas Malvinas do mesmo modo que os civis no continente”, acrescentou.



Vassel se referia, assim, às graves violações dos direitos humanos registradas durante o regime militar em todo o país. Segundo organismos humanitários, foram 30 mil desaparecidos forçados entre 1976 e 1983, quando funcionaram 500 centros de detenção clandestinos em todo o país. Pascua lembra que entre os militares que abusaram de sua autoridade alguns são acusados por crimes de lesa-humanidade contra civis. É o caso do oficial Julio Binotti, do ex-coronel Horacio Losito, dos ex-marinhiros Alfredo Astiz e Antonio Pernías, do ex-general Mario Benjamin Menéndez. Os testemunhos coincidem em afirmar que a maioria dos soldados passava fome e frio.



“Os que faziam o serviço militar nas províncias do sul – as mais frias – iam com a roupa adequada, mas os que chegavam do norte (onde o clima é muito mais quente) foram para a guerra com o mesmo uniforme que usavam o ano todo”, contou o ex-soldado. Do mesmo modo, a comida faltava ou era escassa para os que permaneciam dia e noite nas trincheiras. De fato, muitos dos castigos por suposta indisciplina eram aplicados aos conscritos que roubavam alimentos ou gado para sua sobrevivência. E nos casos mais graves, houve soldados que morreram por inanição.



“O que é mais aberrante e causa indignação é que foi como um extermínio planejado porque o chamado Informe Rattenbach (elaborado por uma comissão militar presidida por um oficial com esse sobrenome que investigou a atuação dos militares durante a guerra) revela que a invasão era planejada há um ano e meio”, afirmou. “Isto comprova que não foi algo improvisado, por isso falamos de crime de lesa-humanidade”, ressaltou o ex-soldado.