Paraguai: Favorito nas eleições, bispo reúne novos apoios

Herdeiro da Teologia da Libertação, o bispo Fernando Lugo sacudiu a cena política paraguaia liderando atos contra o governo do Partido Colorado. Nesta entrevista, ele fala sobre seu projeto, sobre como tem reunido novos apoios e expõe suas impressões sobr

O espectro da ditadura ainda assombra o Paraguai 18 anos depois da queda de Alfredo Stroessner e de sua morte, no ano passado. Assim como no Chile, onde ainda há quem venere o legado de Pinochet, neste país encravado no coração da América do Sul permanecem vivos os “filhos” do “Stroessnerismo” (1954 -1989), o regime que acolheu hierarcas nazistas nos anos 50 e, décadas depois, os fundos milionários do reverendo coreano Sun Myung Moon. O mesmo Paraguai que, também, se subordinava a Washington para coordenar, com as demais ditaduras da região, a Operação Condor, de perseguição a milhares de dissidentes políticos.



Herdeiro da Teologia da Libertação, o bispo Fernando Lugo sacudiu a cena política local liderando há um ano uma mobilização multifacetada contra o governo do Partido Colorado. Desde então, a imprensa o batizou como “o Hugo Chávez paraguaio”, embora ele recuse esta comparação e mostre ter mais afinidades com o presidente boliviano Evo Morales.



O certo é que a mera possibilidade de que Lugo chegue ao Palácio de López (sede do governo) incomoda Washington, onde permanecem os temores pela irrupção de um outro presidente rebelde visto potencialmente como um novo membro do “eixo do mal” na região. O Paraguai é um país de vital importância geopolítica: com seus 406 mil quilômetros quadrados, tem fronteiras com o Brasil, a Argentina e a Bolívia.



No último Natal, Lugo também desafiou o Vaticano, ao anunciar que abandonava a vida religiosa para disputar a Presidência do país. Foi admoestado severamente pelo papa Bento XVI, que ameaçou excomungá-lo se não desistisse de suas aspirações. “Vejo a política como uma missão, creio que devemos fazer algo pelas grandes maiorias deste país que sequer começou a transição para a democracia”, afirma Lugo, favorito para as eleições do próximo ano em todas as pesquisas de opinião.



Fernando Lugo deixou a batina, mas não os hábitos adquiridos: “Bispo se é para sempre”, diz este homem de gestualidade religiosa que nas quase duas horas de entrevista não abandonou a parcimônia nem quando confrontado com perguntas sobre o risco de sua própria vida. Lugo nos recebeu em Lambaré, um subúrbio bucólico localizado a 10 km de Assunção que ficou famoso quando nele se descobriram os “arquivos do terror”, quatro toneladas de documentos dos militares chilenos, argentinos, bolivianos, brasileiros e uruguaios que permitiram reconstruir os fios e caminhos da Operação Condor. Ele vive numa casa simples, de pátio amplo, dominado por uma mangueira frondosa, sob a qual são freqüentes as rodadas de tererê, o mate frio, e sucos de frutas, servidos numa cuia.



A seguir, os principais momentos da entrevista.


Quem é contra a sua candidatura?
Fernando Lugo – Há aqueles que querem fazer desaparecer a esperança do povo, a busca de justiça e de eqüidade. Querem que os excluídos percam a esperança de ter um lugar na sociedade. Creio que o poder trabalha para impedir de chegar ao governo. Detectamos quatro roteiros possíveis para se contrapor à candidatura de Fernando Lugo. O primeiro já está em marcha, é a impugnação de minha candidatura com a cumplicidade de uma justiça rendida aos pés do poder. O segundo seria deixar-me competir e recorrer à fraude, com a mesma máquina de cooptação e adulteração das urnas que sempre se usou no Paraguai. O terceiro seria gerar um clima de insegurança e violência para não me entregar o poder. E se as anteriores fracassam, eles não descartam a eliminação física.



Quem teria interesse em matá-lo?
Os que estão no poder, os que não querem abrir mão de seus privilégios, é a máfia ligada ao poder da ocasião. O narcotráfico está por trás disso, o tráfico de armas, que têm uma força econômica bastante significativa e está muito ligado a um partido político…



Os militares continuam mandando no Paraguai?
As forças armadas foram um pilar do regime, mas hoje em dia não são as mesmas das décadas da ditadura, estão completamente desarmadas e desorganizadas. Mas há militares dedicados ao comércio, ao contrabando, outros à política e isso deve ser investigado. Mas na realidade hoje a maioria são os institucionalistas, que querem limpar os quartéis. Creio que se deve começar um processo de depuração.



O sr. tem sido visitado permanentemente por líderes políticos de todas as colorações e também por militares.
Estamos dispostos a dialogar com uma atitude pluralista e é certo que muitos militares institucionalistas foram forçados injustamente a passar para a reserva e querem ser reabilitados. Há gente honesta que sabe que as forças armadas foram manipuladas por interesses diversos.



Como pensa abrir caminho num ambiente político tão viciado?
Com o apoio do povo. Me apóiam vários movimentos, como o Tekojojá (Igualdade, em guarani), as cinco centrais sindicais, o Partido Revolucionario Febrerista, um setor do Partido Liberal, as bases do Partido Colorado, o Paraguai Possível, a Democracia Cristã, duas coordenações indígenas, os movimentos camponeses e as bases da Unace, o general Oviedo.



É possível disputar a Presidência sem uma estrutura partidária?
Creio que sim.



Não lhe parece messiânico apostar apenas em sua popularidade?
Eu me considero uma pessoa reflexiva e as convicções que orientaram minha decisão permanecem firmes. Não quero ser messiânico, mas creio que o Paraguai precisa de uma prática política diferente devido a uma série de fatores, como a crise dos partidos e a crise de liderança. Talvez tudo isso contribua para que nas pesquisas cresça a adesão a Fernando Lugo.



O sr. tem fé na política?
Eu creio que a política é um instrumento da santidade e uma forma de caridade, creio que se deve por mística na política ter força militante para fazer o bem comum para as grandes maiorias. Mas devemos ter uma proposta realizável, sem cair em utopias muito distantes. Para mim a política não é algo estranho, tive três irmãos exilados nos tempos de Stroessner. Um deles morreu na Suécia no ano passado. Meu pai foi preso 20 vezes. Atualmente um dos meus irmãos continua no exílio, na França, e o outro, Pompeyo, está trabalhando comigo. Venho de uma família de colorados dissidentes, minha mãe e meus irmãos são filiados ao partido. Além disso, sou sobrinho de Don Epifanio Méndez Fleitas, um grande líder colorado, poeta e músico, que morreu exilado na Argentina. Nasci e dormi na cama de D. Epifanio, na casa de minha avó Catalina Fleitas, a matrona da família.



Voltemos à política atual: aceitaria o apoio do general Lino Oviedo [que foi preso por tentativa de golpe e outros delitos].
Fernando Lugo tem o apoio das bases pobres dos partidos tradicionais e do oviedismo, e não porque seus líderes o digam.



Mas isso significa que o aceitaria…
No novo Paraguai que se deve construir todos têm algo a contribuir, mesmo os partidários de Oviedo e até de Stroessner.



Pode sintetizar sua proposta sociopolítica?
O Paraguai é uma ilha de abundância para umas 500 famílias rodeada por um mar de miseráveis. Por isso falo de um crescimento com eqüidade, não falamos de um socialismo igualitário. Depois de percorrer o país lhe digo que se nota a falta da presença do Estado e também de inversões privadas. Não creio no estatismo nem no capital que busca a completa desregulamentação.



O sr. se incomoda quando é comparado com Hugo Chávez e com Evo Morales?
Há quem queira desqualificar minha figura associando-a à de Chávez, mas creio que somos diferentes desde nossas raízes. Ele é um militar, eu venho de uma formação social e eclesiástica. Sobre Evo digo que ele pode ser muito válido na Bolívia, mas eles têm uma porcentagem muito alta de população indígena, e no Paraguai isso não ocorre. Creio que Evo rompe com o paradigma político tradicional e é importante fazer uma leitura correta do que isso significa. Ao mesmo tempo não se pode ser presidente só dos indígenas num país pluricultural e pluriétnico. De todo modo, me parece importante que o ingrediente étnico, que esteve tanto tempo esquecido, marque o governo de Evo. Estamos no século das grandes maiorias esquecidas pelos regimes oligárquicos que marcaram todos os nossos países e creio que a política é um processo, não creio nas torpezas irracionais. Creio que a flexibilidade não é sinal de fraqueza, mas de busca da verdade.



Quanto à religião, o sr. se vê como o novo Leonardo Boff da América Latina?
Não precisamente. Tenho uma suspensão canônica que de alguma forma me tira o ministério religioso, que é o que eu pedira. E assim fiz porque no Paraguai é proibido que ministros de qualquer religião ou culto possam se candidatar. Eu deixei esse ministério conscientemente.



Como julga a atitude do Papa?
Creio que o Papa é o campeão da liberdade de consciência. Creio que este Ratzinger já não é o Secretário da Teologia e da Fé, atualmente o Sumo Pontífice deve acentuar seu caráter de pastor universal.



O sr. se considera um religioso da Teologia da Libertação?
Sim, creio que foi a maior inspiração que tive em minha formação. Foi a ajuda científica e intelectual fundamental que me acompanhou em minha opção. Eu creio que a teologia da libertação e as comunidades eclesiais de base são instrumentos de aproximação com o povo e criam um tipo de padre que está próximo da vida cotidiana, sem divórcio entre a fé e a vida. Sempre quis levar isso adiante em minha vida religiosa em São Pedro, onde trabalhei com os camponeses e em outros lugares onde me coube trabalhar. O próprio Papa João Paulo II faz um reconhecimento da Teologia da Libertação como um patrimônio da Igreja universal, em sua carta aos bispos brasileiros.



Neste sentido, que lhe trouxe a visita a Chiapas, no México?
Tive a sorte de estar em Chiapas com Tatic Samuel Ruiz no encerramento de seu sínodo diocesano, em 1995. Essa viagem me trouxe uma nova perspectiva sobre a riqueza intercultural que chega à Igreja quando ela se incultura, quando se faz indígena. Creio que Samuel deixou um grande ensinamento que na vida dessa gente está o Cristo encarnado, o Cristo salvador, libertador.