''Jongos do Brasil'' – Ao Pai do Samba

Por Dalwton Moura


Um apanhado de 12 comunidades em que o jongo sobrevive. É o que oferece “Jongos do Brasil”, livro do jornalista e músico carioca Marcos André.

Dança de roda e canto, herança e continuidade, matriz e reinvenção. O jongo (ou caxambu, nome derivado de um dos tambores utilizados para marcar o ritmo) chegou ao Brasil com os negros da nação banto, da região do Congo-Angola, os primeiros que, feitos escravos, desembarcaram para uma vida de trabalho forçado, principalmente nas fazendas de café que tomavam a paisagem de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Aceito pelos senhores como uma diversão para os dias dos santos católicos de cada região, o jongo cumpria a função de aliviar dores e banzos, assentar a revolta com a vida no cativeiro, promover festa e confraternização entre gente que prescindia de ser tratada como tal.


 


Um apanhado de registros contemporâneos – visuais, verbais e sonoros – do jongo em 12 comunidades do Rio e de São Paulo ajuda a compreender a riqueza do ritmo e sua contribuição para a música popular brasileira, principalmente sua festejada contribuição para o desenvolvimento do samba. Em “Jongos do Brasil”, um dos projetos aprovados pelo segundo edital nacional do Natura Musical (mesma iniciativa que por aqui viabilizou projetos como o “Sexta de Música”, do Theatro José de Alencar), o jornalista e músico Marcos André registra uma síntese de suas pesquisas em comunidades e terreiros de jongo. Contando com belas fotos de Bruno Veiga, o livro de pouco menos de 100 páginas traz ainda um CD com 28 jongos amealhados ao longo das andanças por paragens em que o ritmo e a dança, praticados em pleno terceiro milênio, adquirem variadas feições.


 


“Vale a pena ressaltar a rica diversidade do jongo. Praticamente, nenhuma comunidade dança ou toca o jongo igual a outra. Umas mais parecidas com outras, mas cada um a seu jeito”, assinala Marcos André, frisando que, apesar das especificidades de cada grupamento, “o observador atento poderá reparar quais são os traços que unem a todas elas numa grande família jongueira”.


 


Sobre o trabalho de pesquisa, o autor admite a surpresa ao constatar a riqueza de manifestações contemporâneas do jongo. O interesse pessoal pela musicalidade africana foi despertado ainda na infância, freqüentando o centro de Umbanda mantido pelo avô no subúrbio do Rio de Janeiro. “Mais tarde, em 1995, à procura das matrizes do samba, encontrei o lendário Mestre Darcy, que me convidou para participar do seu grupo de jongo, no bairro de Santa Teresa, dando início a essa longa jornada de jongueiro”, conta Marcos André. “Nesse começo, não imaginava que, no interior do Vale do Paraíba, existiam tantos grupos de jongo em atividade. Fiquei surpreso ao saber que, nas regiões das fazendas de café, famílias que lá haviam permanecido após a Abolição continuavam dançando o jongo da mesma maneira que os seus ancestrais o dançavam na época da escravidão.”


 


Seguiu-se um trabalho de divulgação que, de acordo com o autor, ajudou a transformar o jongo de “coisa do passado” para “coisa do futuro”, em muitas comunidades. “Com todo o destaque que o ritmo obteve nos veículos de comunicação, antigos grupos que haviam se desfeito começaram a ressurgir. E até mesmo comunidades de afro-descendentes que nunca dançaram o jongo começaram a pesquisar o ritmo junto aos grupos antigos e a criar novos grupos”, afirma. “É impressionante o número de jovens interessados na tradição, provando que a cultura do bisavô – antes considerada por muitos deles sinônimo de vergonha, fracasso e escravidão – passou a ganhar cores de orgulho.”


As comunidades


O painel da presença atual do jongo se inicia pelo Quilombo São José, localidade do interior fluminense onde, para Marcos André, pouca coisa mudou desde a Abolição. “O Jongo do Quilombo São José permaneceu intacto desde os tempos do Brasil Colônia. O grupo de aproximadamente 200 negros é a sétima geração desde os primeiros escravos comprados para trabalhar nas lavouras de café”, situa, mencionando também os diversos projetos sociais e culturais mantidos pela comunidade, o calendário de festas locais, um apanhado de bens e manifestações culturais da região e orientações de como chegar ao local.


Fechando a obra, as letras dos 28 jongos registrados a partir das performances das próprias comunidades. Uma bela amostra do instrumental (geralmente composto pelo caxambu, tambor grave e pelo candongueiro, tambor mais agudo, feitos de couro e tronco de árvore e esquentados em fogueira para pegar afinação) e do canto do jongo, cantado em versos livres e improvisados por um solista, com o refrão respondido por todos da roda. Unindo ao português reminiscências do quimbundo, dialeto banto, os pontos do jongo cantam em sotaque de preto-velho a natureza, o trabalho, a revolta com a opressão.


Os pontos vão da abertura da roda à louvação do local, da demanda para o desafio entre jongueiros ao encante para enfeitiçar o outro. “Quem recebesse um ponto enigmático tinha que decifrá-lo na hora e respondê-lo, desatar o ponto. Caso contrário, ficava enfeitiçado, amarrado”, menciona Marcos André, sobre os registros de ligações entre o jongo e o místico. “Os jongueiros trocam o sentido das palavras, criando um novo vocabulário, passando a conversar entre si por meio dos pontos de jongo”.


TRECHO


A festa e a dança


O jongo é uma dança dos ancestrais, dos pretos-velhos escravos, do povo do cativeiro, e, por isso, pertence à ´linha das almas´. Contam que aquele que tem a ´vista forte´ é capaz de enxergar um antigo jongueiro falecido se aproximar da roda para relembrar o tempo em que dançava o caxambu. Contam também que alguns jongueiros, à meia-noite, plantavam no terreiro uma muda de bananeira que, durante a madrugada, crescia e dava frutos distribuídos para os presentes.


(…)


Os negros montam uma fogueira e iluminam o terreiro com tochas. Do outro lado, armam uma barraca de bambu para os pagodes, um arrasta-pé onde os casais dançam o ritmo do calango ao som da sanfona de oito baixos e pandeiro.


 


Fonte: DN